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Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro, de Marilena Chaui

Belo Horizonte: Autêntica Editora | Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. 294 p.

Escritos de Marilena Chaui, v. 2 (Organizador André Rocha)

Vem em boa hora a publicação, pelas editoras da Fundação Perseu Abramo e Autêntica e sob a organização de André Rocha, da coletânea de ensaios e artigos de Marilena Chaui, intitulada Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Produzidos entre fins dos anos 1970 e os anos 2000, os textos aqui publicados – alguns dos quais acrescidos com notas da autora para esta edição – constituem uma contribuição ímpar ao estudo da história do Brasil, cuja atualidade salta aos olhos.

Cabe de início advertir: não se tratam de trabalhos de historiografia, no sentido próprio do termo. Renomada historiadora da filosofia, Chaui esforçou-se por oferecer uma interpretação das interpretações do Brasil. Para tanto, amparou-se em trabalhos de historiadores e cientistas sociais, no que se incluem pesquisas empreendidas na época em que os textos foram escritos. Daí a razão pela qual estes textos merecem ser vistos como parte de uma corrente de pensamento no interior do chamado pensamento social brasileiro.

A coletânea contém dois ensaios de fôlego – a saber, Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira, publicado originalmente em 1978, e Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, de 2000 –, artigos publicados em diferentes momentos e uma entrevista realizada pelo organizador.

O que confere unidade a estes escritos? Todo o esforço de Chaui converge para a defesa de uma ideia-força: o autoritarismo brasileiro não é um desvio, nem tampouco um fenômeno meramente político, mas um traço marcante da sociedade brasileira, nela deitando raízes, expressando-se como violência praticada “em todas as esferas da vida social”2 . Nesse sentido, e não obstante o rigor acadêmico com que foram produzidos, os escritos em questão são, antes de tudo, textos de combate. É a ideologia que visa a encobrir as raízes sociais do autoritarismo o alvo da autora, cujo trabalho intelectual em seu conjunto pode ser, com justeza, sintetizado como um esforço de crítica da ideologia.

O discurso ideológico não é aquele que se opõe ao discurso verdadeiro e científico, mas “um discurso lacunar e feito de silêncios encarregados de ocultar a realidade, de tal maneira que, se tentamos preencher as lacunas e os silêncios, ele não se converte num discurso verdadeiro, mas se autodestrói”3 . No caso brasileiro, a ocultação produzida pelo discurso ideológico reside na recorrente e disseminada prática de conceber o Brasil pela ótica da falta, da privação, do desvio, quando na verdade somos uma totalidade que deve ser encarada, compreendida e explicada como tal.

Presente tanto na representação que os brasileiros fazem de si mesmos como também nas ciências sociais e na historiografia, essa prática manifesta- -se em vários momentos da história, à direita – o caso emblemático examinado por Chaui é a ideologia integralista – e à esquerda:

[...] enquanto para os integralistas o autoritarismo deve ser a solução para os problemas do ‘Brasil real’, para os intérpretes liberais e marxistas o autoritarismo teve que ser a solução encontrada pela classe dominante, impossibilitada de exercer por conta própria a hegemonia4 .

Trata-se de uma concepção demiúrgica da história do Brasil, que esconde a luta de classes5 . Se Chaui oferece uma contribuição original à interpretação do Brasil, pensamos ser essa, uma vez que toca na base mesma de parte importante da historiografia brasileira.

Essa contribuição foi formulada de maneira mais consistente em Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira, no qual Chaui mostra que o discurso integralista opera com “certezas prévias”, “decretadas antes do pensamento e fora dele”, em suma, com a fixação de pressupostos a partir dos quais o pensar deve submeter-se6 . No que se amparam tais pontos fixos? Em imagens “facilmente reconhecidas na experiência cotidiana, [...] espelhamento ampliado e iluminado da experiência imediata, dotadas da capacidade de unificar aquilo que nesta última aparece fragmentariamente”7 .

Segundo Chaui, operando com justaposições, associações livres e traduções, esse discurso “não só permite economizar a reflexão acerca dos processos históricos, mas permite, sobretudo, assegurar ao destinatário um suposto conhecimento” prévio da realidade, com base na reafirmação e repetição de preceitos tomados de antemão, de modo que o discurso tenha “força persuasiva e até mesmo constrangedora”8 .

O aspecto político dessa operação reside exatamente na exclusão da reflexão: “Unido e disperso, a imagem, espelho dos dados imediatos, exclui a reflexão e, simultaneamente, cria a ilusão de conhecimento, graças ao seu aspecto ordenador”9 . Ora, a exclusão da reflexão é o signo da inversão entre sujeito e predicado, da redução do sujeito à condição de coisa. Daí Chaui sustentar estarmos diante de uma forma autoritária de pensar.

Quais são os pontos fixos mobilizados pelo discurso integralista? O brasileiro e a nação. Mobilizando afeitos passivos que engendram a identificação nacional – quem, afinal, não sente orgulho de ser brasileiro? –, essas imagens ocuparão tal lugar, posto que apareçam “acima e além das contradições”10, e conformarão a ideologia do verdeamarelismo, “elaborado no curso dos anos pela classe dominante brasileira como imagem celebrativa” da unidade nacional11. Como podemos ver, nem tudo em 2015 é novo.

Dirigido à classe média urbana12, o integralismo procurou oferecer uma interpretação do papel primordial dessa classe no processo político brasileiro. Assim, enquanto Plínio Salgado louva o “espírito elevado da classe média”13, Miguel Reale forjará, inspirado em Hegel, a justificativa filosófica do integralismo: “essa é a classe que faz a revolução porque é portadora da Ideia”14.

Segundo Chaui,

A literatura de inspiração marxista tem mostrado que as esperanças políticas depositadas na atuação possível da classe média são “expectativas-mitos”. No Brasil, trabalhos recentes têm-se ocupado em demonstrar que, tanto do ponto de vista histórico efetivo quanto do ponto de vista da posição estrutural, a classe média não pode ser portadora de um projeto político autônomo e que, pelo contrário, mesmo quando suas propostas divergem daquelas defendidas pela classe dominante, a divergência não chega a constituir sequer um antagonismo real, de sorte que, bem ou mal, as classes médias estão atreladas à classe dominante ou a reboque dela. Fundamentalmente, mostra-se que a heterogeneidade da composição, a ambiguidade ideológica, a “despossessão” econômica, o medo da proletarização e o desejo de ascensão social fazem da classe média não apenas uma classe conservadora, mas visceralmente reacionária15.

Como a ideologia do autoritarismo opera com a imagem de uma sociedade una, coesa, indivisa e harmônica, quando os conflitos fogem do controle “surge uma ideia-chave, panaceia de todos os males, uma explicação irrecusável daquilo que ‘efetivamente’ estaria ocorrendo no real: a imagem da crise”16 e, com ela, a imagem do perigo17. 365

Nomeando os conflitos para melhor escondê-los, “a crise é imaginada como um movimento da irracionalidade que invade a racionalidade do social e do político, gera desordem e caos e precisa ser conjurada para que a racionalidade (anterior ou outra, nova) seja restaurada”18. Argumenta Chaui:

A crise é usada para fazer com que surja diante dos agentes sociais o sentimento de um perigo que ameaça igualmente a todos, dá-lhes o sentimento de uma comunidade de interesses e de destino e os leva a aceitar a bandeira da salvação da sociedade supostamente homogênea. [...] A crise serve, assim, para dissolver todas as diferenças e contradições, empenhando todos os agentes sociais na tarefa da reorganização da nação19.

Tudo o que aqui dissemos são apenas alguns elementos de uma densa contribuição ao pensamento social brasileiro. Densa nos dois sentidos: pelo rigor analítico e pelo tamanho da produção. Aliás, as editoras foram felizes em ter organizado outros três títulos20 nos quais, direta ou indiretamente, Chaui aborda o Brasil, e que merecem ser lidos ao lado de Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro.

Um último ponto: é imperativo insistir que a crítica à ideologia posta nessa obra vai além de suas manifestações à direita – o que não deve surpreender, afinal, seu argumento central diz exatamente que o autoritarismo está enraizado na sociedade e manifesta-se no cotidiano, chegando mesmo às relações pessoais. Nestes termos, lidos em conjunto, os escritos de Chaui sobre o Brasil deixam em evidência a coerência de um pensamento que, sendo engajado e tomando lado – o da esquerda –, não poupa a crítica às suas manifestações também à esquerda. É uma atitude intelectual que não se vê na direita brasileira. Sua obra não só merece como deve ser lida nessa chave.

 

NOTAS

1. Bacharel em filosofia, aluno do doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Escreveu “Sociedade autoritária e crítica da ideologia”, dedicado à obra de Marilena Chaui (Mulheres intérpretes do Brasil. Organizadores: Marcos Silva e Lincoln Secco. São Paulo: Boitempo, no prelo). Contato do autor: [email protected].

2. CHAUI, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora | Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. 294 p. Escritos de Marilena Chaui, v. 2 (Organizador André Rocha), p. 242.

3. Ibidem, p. 292.

4. Ibidem, p. 14.

5. Ibidem, p. 21.

6. Ibidem, p. 27-8.

7. Ibidem, p. 33-4.

8. Ibidem, p. 34-5.

9. Ibidem, p. 34.

10. Ibidem, p. 35.

11. Ibidem, p. 20-1.

12. Ibidem, p. 40.

13. Ibidem, idem.

14. Ibidem, p. 41.

15. Ibidem, p. 45-6. Sugerimos ler com atenção a nota de rodapé 47 (Ibidem, p. 47).

16. Ibidem, p. 99.

17. Ibidem, p. 100.

18. Ibidem, 99.

19. Ibidem, p. 100-1.

20. Contra a servidão voluntária (2013), Conformismo e resistência (2014) e Ideologia da competência (2014). A estes, podemos acrescentar ainda dois outros livros da autora, editados pela Editora da Fundação Perseu Abramo: Cidadania cultural (2006) e Simulacro e poder (2006).

Publicado na Revista Perseu no. 11 (leia a íntegra da publicação)