O maior poeta e dramaturgo socialista do século XX nasceu no dia 10 de fevereiro de 1898, numa pequena cidade ao sul da Alemanha. Apesar de ter vivido toda a sua infância em um bairro operário, ele não pertencia às classes populares. Era filho de um respeitado diretor de uma grande fábrica de papel. A condição familiar do pequeno Bertolt indicava-lhe um destino nada honroso. Nascera para ocupar um lugar no mundo na produção ao lado dos exploradores. Mas, desde cedo, sentiu que aquele não era seu destino. Em vez de produzir papel, preferia nele escrever – transformando folhas brancas em poesias e as poesias em armas contra a sua própria classe. Mais tarde, escreveu: “Eu cresci como filho/ De gente abastada. Meus pais/ Me colocaram um colarinho, e me educaram/ No hábito de ser servido/ E me ensinaram a dar ordem/ Mais tarde, olhei em torno de mim/ Não me agradavam as pessoas de minha classe,/ Nem de dar ordens, nem de ser servido./ Então deixei a minha classe e me juntei/ À gente pequena./ Assim criaram um traidor …”.

 

Entre a guerra e a revolução
 

Dois grandes acontecimentos marcaram a infância e a juventude de Brecht: a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Socialista na Rússia. Em 1914, eclodiu a guerra e toda a Alemanha foi tomada pela febre belicista. Até mesmo o Partido Social-Democrata Alemão (PSDA) aderiu ao espírito chauvinista da grande burguesia. Apenas uma pequena fração daquele partido resistiu e se posicionou contra a carnificina. Esta ala, dirigida por Karl Liebknecht e Rosa de Luxemburgo, fundou a Liga Espartaquista e depois o Partido Comunista da Alemanha.

O jovem Brecht também, a seu modo, resistiu à onda militarista. Ainda no colégio, quando solicitado para que elaborasse uma redação sobre o título É doce e honroso morrer pela pátria, escreveu: “a máxima de morrer pela pátria é uma proposição tendenciosa, apenas os imbecis podem levar tão longe esta verdade”. Tal ousadia enfureceu os professores e quase lhe custou a expulsão.

Os tempos eram sombrios. E a guerra continuou devorando milhões de homens, em especial operários e camponeses. Em outubro de 1917, alguma coisa de novo parecia estar acontecendo. Na Rússia, os trabalhadores, dirigidos pelos bolcheviques, haviam tomado o poder. Finalmente a revolução triunfava sobre a guerra. O caminho estava aberto.

As boas novas vindas do leste caíram como uma bomba na velha Alemanha dos junkers. No front, os soldados se confraternizavam, nas cidades começaram a eclodir grandes greves e surgiram conselhos de operários e soldados – como na Rússia. O governo e a monarquia foram colocados contra a parede pelas massas insurgentes. Em 9 de novembro de 1918, irrompeu a rebelião em Berlim e o próprio PSDA foi obrigado, pela pressão dos operários em armas, a aderir ao movimento. A revolução venceu e foi proclamada a República.

O novo governo, dirigido pela direita social-democrata, buscou, através de todos os meios, impedir que a revolução democrática se transformasse numa verdadeira revolução socialista. A luta ganhou outro patamar. A burguesia agora se escondia por trás de um “partido operário”, o social-democrata.

Na ocasião, Brecht cursava a faculdade de medicina e atendia em um hospital militar. E nesta condição, acompanhou o processo revolucionário de 1918. Afirmou ele, dirigindo-se aos soviéticos: “eu tinha 19 anos quando ouvi falar de vossa grande revolução. Tinha 20 quando vi os reflexos deste grande incêndio em minha cidade natal. Eu era então enfermeiro num hospital militar (…). A velha cidade foi tomada por uma nova população vinda dos bairros operários e ocorreu uma animação que estas ruas burguesas (…) não tinham nunca conhecido”.

No início de 1919 estourou um novo levante revolucionário. Desta vez, ele foi dirigido pelos comunistas. Os operários tomaram o parlamento alemão, o Reichstag, mas foram desalojados pelo exército. Depois de cinco dias de violentos combates, a insurreição foi derrotada. No dia 15 de janeiro, Rosa e Liebknecht foram sequestrados e assassinados. Em silêncio, sem cerimônias, homens sem rostos atiraram os dois corpos nas águas frias do canal Landwer. Era preciso não deixar provas do horrendo crime, mas as mãos dos assassinos os denunciavam. Brecht escreveu no seu Epitáfio 1919: “A Rosa Vermelha também desapareceu./ Ninguém sabe onde repousa seu corpo./ Disse a verdade aos pobres/ E por isso foi morta pelos ricos”.

 

Boêmia, expressionista e a crítica à indiferença

 

As consequências da guerra foram desastrosas para a Alemanha. A carestia de vida e o desemprego martirizavam a classe operária. A fome e a morte rondavam os bairros pobres. A revolução foi derrotada, mas ainda havia esperanças de um novo despertar. Brecht apresentava, em versos, a resposta operária para a crise: “O nosso desemprego/ Não será solucionado/ Enquanto nossos Senhores não/ Ficarem desempregados”.

O jovem Brecht alimentava um profundo desprezo por tudo o que a burguesia representava. Detestava o militarismo alemão e nutria uma simpatia, ainda que ingênua, por todas as vítimas da sociedade capitalista: desempregados, mendigos, prostitutas, pequenos meliantes – personagens de várias de suas obras; nelas, sempre buscou mostrar a íntima ligação entre o submundo da sociedade capitalista e o “honroso” mundo oficial dos grandes negócios. Brecht, neste primeiro período, embora tivesse grande simpatia pelos comunistas e olhasse com bons olhos a construção do socialismo na URSS, não era um marxista. Seu socialismo era quase intuitivo, movido pelo seu ódio à hipocrisia burguesa.

No início da década de 1920, ele se aproximou – sem nunca a ele aderir integralmente – do movimento expressionista, que neste período ganhava parcelas consideráveis da intelectualidade progressista da Alemanha – atraídas pela sua postura cultural de oposição ao processo de fascistização da sociedade alemã. No entanto, o expressionismo era fruto de um tempo de desagregação e de incertezas, nascido da derrota da revolução e marcado pelo avanço gradual do nazismo. O próprio Brecht reconheceu mais tarde que “para o expressionismo o mundo não mais existiria se não como uma visão de uma estranha ruína, criação de algumas almas angustiadas (…) tornou-se incapaz de esclarecer o mundo, enquanto prática humana”.

Neste período, escreveu poemas e canções, que declamou e cantou nos bares da cada vez mais reacionária Munique. Em 1920, ainda dentro de uma perspectiva expressionista escreveu a peça Baal. Logo em seguida, Tambores da noite. Segundo o autor, esta foi a primeira obra baseada na luta de classes. Nela, retratou as relações entre as classes, o heroísmo e a covardia, a neutralidade e o engajamento numa única noite: a noite do levante dos espartaquistas. O autor refletindo posteriormente sobre o conteúdo dessa obra disse: “Os meus conhecimentos não eram suficientes para que compreendesse a sério o que foi a insurreição do proletariado na Alemanha”. Este limite não invalida o conjunto da peça, uma bela página da dramaturgia mundial.

Brecht ganhando o prêmio Stalin da paz

 

Em 1928 leu O Capital de Marx e redigiu a Ópera dos Três Vinténs, na qual retomou o tema das relações existentes entre os pequenos crimes, as pequenas corrupções e os grandes e respeitáveis crimes da alta sociedade. O seu conteúdo pode ser traduzido na fala de um de seus personagens: “o que é o assalto a um banco comparado à fundação de um banco?”.

O que mais indignava Brecht era a indiferença dos homens diante das injustiças. O poeta se levantava contra todos aqueles que achavam que a opressão era algo natural e, portanto, eterna. Por isso clamava um dos personagens criados pelo autor: “Nós pedimos com insistência:/ Não digam nunca: isto é natural!/ Diante dos acontecimentos de cada dia./ Numa época em que reina a confusão./ Em que corre sangue/ Em que se ordena a desordem./ Em que o arbitrário tem força de lei./ Em que a humanidade se desumaniza./ Não digam nunca: isso é natural.”

A convicção, trazida pela dialética marxista – segundo a qual, nada era eterno e, portanto, o mundo poderia (e devia) ser transformado, e o entendimento da arte como um instrumento a serviço das transformações revolucionárias –, serviu de suporte para toda a produção artística de Brecht. Mesmo nos dias mais difíceis, estas grandes ideias jamais o abandonaram e continuaram a alimentar a sua prática cultural e política. “Enquanto você estiver vivo, nunca diga/ nunca!/ O regime vigente não é seguro. Não é/ imutável …/ Os vencidos de hoje são os vencedores de/ amanhã./ E o “nunca” se transforma em hoje!”.

 

A longa noite nazista, os apelos à unidade operária, a perseguição e o exílio
 

De um lado, a extrema-direita se fortalecia, financiada pela grande burguesia; de outro, a esquerda, única capaz de deter o avanço do fascismo, estava dividida e desarmada. Tudo indicava que uma tragédia de grandes proporções se aproximava e Brecht gritava a plenos pulmões contra a ameaça nazista e pela aliança dos trabalhadores, acima das siglas partidárias. A política estreita adotada por comunistas e social-democratas jogava contra a unidade: uns dominados pelo esquerdismo e outros pelo oportunismo de direita, que afirmava ser preferível que Hitler subisse ao poder através de eleições “livres” do que através de um golpe de Estado. Relembrando estes trágicos dias, escreveu nosso autor: “Então dissemos aos camaradas da Social-Democracia/ Devemos aceitar que matem nossos camaradas?/ Lutem conosco numa União antifascista! (…) / Camaradas reconheçam que este/ “mal menor”/ Que ano após ano foi usado para afastá-los de/ Qualquer luta/ Logo significará aceitar os nazistas.”

          Poucos ouviram o apelo de Brecht e, em janeiro de 1933, Hitler assumiu o poder. Ironicamente (ou tragicamente) a contrarrevolução venceu através das urnas. Prisões e torturas passaram a compor o cotidiano da vida política e social alemã. Implantou-se o terrorismo cultural. Livros foram queimados em praças públicas. Aquilo era apenas o prelúdio de dias ainda piores, pois, como disse o poeta Heine, “onde se queimam livros acaba-se queimando homens”. E as fogueiras da intolerância cultural se transformaram mais tarde em fornos crematórios de comunistas, socialistas, judeus, ciganos e homossexuais. A Alemanha de Beethoven, Kant, Goethe, Hegel, Heine, Marx e Engels, a fina flor da cultura universal, transformou-se na Alemanha de Hitler, Goebbels, Goering e Rosemberg. Triste Alemanha! Brecht, no exílio, cantaria a sua vergonha: “Ó Alemanha, pálida mãe;/ Como apareces manchada/ Entre as nações./ Entre os imundos te destacas”.

Seu nome encabeçava diversas “listas negras” e, por isso, foi obrigado a abandonar o país e seguir para Praga. No peito do poeta ainda se alimentavam esperanças: o exílio seria breve e o nazismo rapidamente derrubado: “A última palavra ainda não foi dada”. Suas esperanças se traduziram em seus poemas: “Não ponha o prego na parede,/ Jogue o casaco na cadeira./ Por que fazer planos para apenas quatro dias?/ Amanhã você volta”.

Mas, ao contrário do que pensava o poeta, uma longa noite desceu sobre a Europa, obrigando-o a adiar os seus planos. Da Tchecoslováquia seguiu para a Áustria, depois para a Suíça, depois França e, por fim, Dinamarca. Era triste a canção do exílio: “Expulso do meu país, tenho que ver agora (…) / Vender o que possuo./ Tenho que voltar a percorrer velhos caminhos./ Para onde vou ouço: soletre o seu nome!/ Ah, este nome que já foi tão célebre.”.

Em 1935 escreveu Terror e Miséria no III Reich – um relato vivo da condição humana na Alemanha nazista. Os reflexos do terror e da repressão política no cotidiano alemão, através de pequenos episódios. A temática de quase toda a sua obra no período poderia ser traduzida em um verso: “Uma rima no meu poema/ Me daria quase uma impressão de insolência/ Em mim se enfrentam/ A exaltação quando vejo uma macieira em flor/ E o horror que me causa o discurso do pintor de paredes./ Mas somente o horror/ Me faz escrever”.

No ano seguinte, os fascistas de Franco tentaram derrubar o governo da frente popular na Espanha e teve início a Guerra Civil. Brecht escreveu a peça Os Fuzis da Senhora Carrar como forma de incentivar a resistência dos povos contra o nazi-fascismo. O centro do drama era a discussão entre a neutralidade e o engajamento em meio à revolução; retomava, em certo sentido, o tema já abordado por Gorki em sua obra A Mãe. Em 1938, escreveu outro clássico, A vida de Galileu, na qual discutia o papel do intelectual na luta contra o obscurantismo, a partir de um fato real, a abjuração de Galileu diante do Santo Tribunal da Inquisição.

 

A crítica aos processos de Moscou, a defesa da URSS e o enterro “sem discursos”

 

Brecht não olhou com bons olhos os Processos de Moscou e a dura repressão stalinista contra a oposição e a intelectualidade russa. Vários de seus amigos foram presos e executados. O poeta, num misto de perplexidade e desconfiança, lamentou: “Meu mestre/ este grande homem/, amigo,/ foi fuzilado,/ condenado,/ por um tribunal popular,/ Como espião./ Seu nome foi difamado./ Seus livros, destruídos./ Falar dele desperta suspeitas;/ todos se calam./ E se ele era inocente?”. Dúvida como esta era inconcebível num tempo de intolerância política e ideológica.

Em 1939, os exércitos de Hitler iniciaram sua marcha triunfal sobre a Europa, pareciam invencíveis. Ali não havia mais segurança para Brecht. Em 1941, refugiou-se na União Soviética e com o seu apoio partiu para os Estados Unidos. Entre 1941 e 1944, na Europa continental, apenas a URSS resistia aos exércitos nazistas. Isto aumentou muito o seu prestígio entre os povos do mundo – particularmente entre os trabalhadores e intelectuais progressistas.

Vivendo nos Estados Unidos no início da Guerra Fria logo foi convocado a se apresentar ao “Comitê de Atividade Antiamericanas” – versão moderna dos tribunais da Santa Inquisição – para prestar esclarecimentos sobre o seu envolvimento com o Partido Comunista. O fascismo parecia ter se transferido para a América. Triste América! Brecht acabou tendo que partir.

Depois de uma breve estada na Suíça, transferiu-se para a Berlim oriental, onde passou a residir até o final de sua vida. Ali fundou sua própria companhia de teatro, Berliner Ensemble. Em 1948, organizou uma campanha em favor do casal Rosemberg, condenado à morte nos EUA sob acusação de espionagem. A moderna inquisição americana fazia suas primeiras vítimas fatais.

Apesar de nutrir profundas simpatias pelo partido comunista, especialmente devido ao seu papel na luta pela paz mundial e o socialismo, não se filiou a ele. Isso não o impediu de escrever: “Mas quem é o Partido?/ Ele fica sentado em uma casa com telefones?/ Seus pensamento são secretos, suas decisões desconhecidas?/ Quem é ele?/ Nós somos ele./ Você, eu, vocês – nós todos./ Ele veste sua roupa, camarada,/ e pensa com a sua cabeça./ Onde mora é a casa dele, e quando/ você é atacado/ ele luta”.

Em junho de 1953 eclodiu uma revolta contrarrevolucionária, mas com apelo popular, em Berlim oriental. Brecht se colocou do lado do governo e contra a insurreição, mas sabia distinguir o elemento popular na confusão de um evento hegemonizado pela burguesia pró-imperialista. Por isto, corajosamente, enviou uma carta à direção do Partido Comunista alemão, na qual afirmou: “Espero agora que os provocadores sejam isolados e que suas redes destruídas; mas também espero que não se coloque no mesmo nível desses provocadores os operários que se manifestaram para exprimir o seu justo descontentamento, a fim de não perturbar a futura discussão tão necessária sobre os erros cometidos pelos dois lados”.

Dois anos depois, Brecht ganhou o prêmio Stálin pelos seus serviços prestados à causa da paz e do socialismo, e o governo da República Democrática Alemã (socialista) ofereceu-lhe um teatro para a sua companhia. Neste espaço, passou a desenvolver um intenso trabalho de formação cultural e política entre os jovens e operários da Alemanha e outros países. Mas ele já estava fraco e doente.

Em 1956, quase no fim de sua vida, escreveu: “se eu morrer, não quero que meu corpo seja exposto solenemente, nem que me exibam em público. Que não haja discursos no meu enterro”. Assim foi feito. No dia 17 de agosto daquele ano, três dias após sua morte, seu corpo foi enterrado perto do túmulo de Hegel, sem pomba, sem discursos. Em sua lápide apenas uma breve inscrição: “Brecht”.

 

 

Publicado originalmente na revista Debate Sindical, nº 27, de fev.-abr. de 1998.

 

Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.