A notícia mais relevante dos últimos tempos não veio dos já tradicionais vazamentos seletivos da Operação Lava-Jato, nem do processo de impeachment da Presidenta Dilma, nem da raivosa perseguição midiática ao ex-presidente Lula, nem da ocupação das ruas de São Paulo pelo Movimento Passe Livre em mais uma empreitada contra o recente aumento das tarifas de transporte público. A notícia mais importante veiculada recentemente, entretanto, diz muito sobre tudo isso: sobre a conjuntura brasileira e o que ela significa no contexto mundial contemporâneo; sobre como no presente se constrói um futuro de hecatombe ou de nova sociedade global.
A notícia a que me refiro dá conta de que o sistema capitalista, em plena crise econômica global que já se arrasta por alguns anos, conduz a um novo limite a sua capacidade de agressão à humanidade, através na nova vaga do modelo neoliberal. Confirmou-se, nesse início de ano, a previsão feita em 2015, de que 1% dos mais ricos do planeta detém a mesma riqueza que os 99% restantes. Os dados são de um estudo da organização não-governamental Oxfam que se baseia nos dados do Banco Credit Suisse de 2015 . O estudo foi dirigido aos líderes que se reuniram em Davos para o último Fórum econômico mundial, tendo sido o assunto debatido também no Fórum Social Mundial.
O resultado revela o nível paroxístico da desigualdade de um sistema que, a menos que seja revolucionado, levará o mundo à destruição; e à galope, muito antes do que podemos imaginar hoje. Mais do que um fato econômico, a equiparação de riquezas entre o 1% mais rico e o restante da população do planeta é um fato ético e político que atesta cabalmente que uma grande parte da humanidade hoje parece ser completamente descartável. O que há de importante nessa notícia é, sobretudo, o fato de que ela tem o condão de não nos fazer deixar de pensar o futuro, embora haja tantas tarefas de curto prazo e tantas lutas urgentes para se lutar.    
Pensemos um pouco sobre a situação de exaustão social e ecológica a que nos levou este sistema que se sustenta sobre a desigualdade e a reproduz convulsivamente . A aparência de longevidade e de inexorabilidade do capitalismo deveu-se sempre a um sem-número de mecanismos ideológicos que o sustentaram como o modo de produção onde se “realizaria a verdadeira humanidade possível”. Todo o mais seria ou atraso ou déficit de humanização ou “repressão das liberdades individuais”. O capitalismo, nessa perspectiva hegemônica, que funcionou de forma mais perfeita na fase apologética da burguesia, seria o espaço da liberdade, da plenitude da vida, da conquista da prosperidade social e individual, da justiça, da riqueza, da tecnologia e do progresso. Nesses termos, o sistema acena aos homens como a única forma de prover a humanidade de um sentido de avanço capaz de assegurar que a vida seja vivida sempre “mais” e com “mais qualidade”.

Favela de Tondo, em Manilla (Filipinas), em 2014.

Toda essa traquitana ideológica reproduzida pelo sistema, através de seus porta-vozes, asseclas, lacaios e jagunços, nas diversas partes do mundo, são engrenagens de ilusão barata. O que estamos verificando hoje, entretanto, com a já referida nova vaga neoliberal, é o caráter descartável dessas assertivas ideológicas, no contexto do alto capitalismo financeiro global que balança sem ruir ao sabor dos sismos da crise. O capitalismo contemporâneo, assim, parece firmar-se tendencialmente prescindindo de uma ideologia que o justifique “humanamente” para a razão e para o sentimento dos homens. De substância cínica ou irônica, a linguagem dessa ideologia tem se tornado a mais pura descaração. Antes a desumanização capitalista precisava de um discurso capaz de convencer os homens de que o sistema, como processo de exploração e exaustão das possibilidades humanas, prometia uma adiada reconciliação com a plenitude da vida (que se dá, na verdade, apenas e tão somente através do consumo pedestre). Agora esse discurso é cada vez menos necessário. Tudo está reduzido ao cínico, sintético e brutal lema neoliberal: “Não tem jeito. É preciso aderir à cartilha da austeridade. Vocês vão sofrer, mas é melhor viver sem conquistas que morrer à míngua e rapidamente.”  Essa é a “legenda” da luta de classes no contexto atual do sistema mundo.
Entretanto, se o capitalismo atual tende a multiplicar-se prescindindo de uma ideologia humanizadora, condenando-nos, sem mediação edulcorante, ao ethos da reificação, do fetichismo e do terrorismo do “não tem jeito”, ele também nos está dando um sinal importante, que é preciso saber ler. O centro tétrico deste sinal reside no fato de que o capitalismo do século XXI progressivamente prescinde de uma parcela cada vez mais significativa da humanidade. Para se reproduzir e gerar a concentração de riqueza satisfatória, ele precisa apenas de si mesmo e cada vez menos da exploração do trabalho de um contingente significativo da população, ou seja, o capitalismo contemporâneo precisa de uma humanidade menor, e, se possível, mais narcisisticamente igual a si mesma. Avizinha-se, como todos sabemos, um grave (e talvez irreversível) problema ambiental, cuja decorrência será, fatalmente, o contragolpe colérico da natureza à exaustão provocada pela sua exploração cruel, desmedida e desordenada.
É comum dizer que o planeta não suportaria se todos os seus 7,1 bilhões de habitantes tivessem o mesmo nível de vida do norte-americano médio. Uma das saídas para evitar o colapso ambiental, seria mudar o mundo do consumo, adaptando-o a um tipo novo patamar de exigências e de necessidades. Outra saída, mais viável e sustentada pelo economicismo desumano neoliberal, é simplesmente deixar perecer uma parcela importante da população mundial, a fim de que se adie o colapso planetário por mais algum tempo. A verdadeira ideologia do capitalismo contemporâneo é, portanto, o desprezo descarado pela humanidade. Não há perspectiva de futuro para essa ideologia do “não tem mais jeito”, além, é claro, de terríveis fantasias apocalípticas, aliás alardeadas de modo compulsivo pelo cinema americano, como que nos anestesiando para a possibilidade de catástrofe que destruirá uma parcela significativa da humanidade . A era do fim das utopias é, pois, a era da construção de uma utopia negativa.

Bairro de Boca la Caja próximo ao distrito de negócios na Cidade do Panamá, em 2013.
Voltemos à questão da desigualdade. A despeito da crise global, a riqueza não mudou de mãos, concentrando-se ainda mais em quem já a detinha. O estudo do Credit Suisse referido acima mostrou que a riqueza de 1% da população mundial alcançou, no ano de 2015, a metade do valor total de ativos. Isso quer dizer que 1% da população mundial, que possui um patrimônio avaliado em U$ 760.000, tem tanto dinheiro líquido e/ou investido quanto o 99% restante da população do planeta. Para essas pessoas e para os seus lacaios, a humanidade, com sua pobreza, suas guerras, seus conflitos étnicos, sua miséria, é mesmo descartável. Os endinheirados do planeta podem se dar ao luxo de no máximo relacionar-se com o restante da humanidade apenas através de ações de caridade cujo fim inapelável é apenas o abono das suas consciências e a retroalimentação do sistema. A desigualdade já fora um gatilho para o crescimento do PIB das nações; vinha até algum tempo atrás na esteira da criação de empregos que possibilitassem a produção, aumentassem o consumo e fizessem a economia dos países girar. Na situação atual, progressivamente, tornam-se descartáveis os homens, seja como força explorada para a produção da riqueza, seja como consumidores. O que o aumento da desigualdade prova é que o grau de desumanidade do capitalismo não um limite ético, há sempre uma nova fronteira de infâmia a se ultrapassar.
A pesquisa do Credit Suisse que projetava a equivalência 1% / 99%, ora confirmada, apresentava como justificativa para o aumento da disparidade a “boa saúde” dos mercados financeiros, ou seja, a riqueza de quem tem mais é sensível a subidas e quedas de preço de ações de empresas e outros ativos financeiros que a do restante da população. Sustentar essa riqueza não tem a ver com melhorar as condições de vida dos trabalhadores para que “produzam mais”, não tem a ver com criar um conjunto de distrações para os mais pobres verem a vida passar enquanto não retornam a fábricas ou escritórios, não tem a ver com negociar com nações taxas de impostos para aumentar produção… Ou seja, sustentar essa riqueza, não precisa de outra ideologia a não ser a de dizer que “não tem jeito, é preciso aplicar a cartilha da austeridade” enquanto juros e maracutaias garantem a “boa-saúde” do sistema financeiro. Aí está um dilema ético que dificilmente incomoda as têmporas e os corações daqueles que aqui no Brasil esbravejam nas ruas e nas redes sociais contra a corrupção. Não há como negar: o grande dilema ético do capitalismo é o da existência da desigualdade indecente entre os mais pobres e os mais ricos, algo que lhe é fundamental, estruturante, e que se consubstancia como a natureza eminentemente corrupta do sistema e determina os mecanismos políticos da democracia burguesa.
Considerando este ritmo global, é ainda mais significativa a pequena, quase ínfima, redução da desigualdade registrada nas últimas décadas no Brasil. Se em termos globais houve mais concentração, o Brasil distribuiu renda. É claro: em um compasso mais lento do que todos que militam a favor de um mundo mais justo gostariam. No contraste, entretanto, o movimento ganha outro relevo e nos chama a atenção para a conexão entre as crises internas vivenciadas hoje, as quais são, ao final, expressão das lutas por interesses políticos entre as classes sociais. Há os emissários do medo e da austeridade, da dita utopia negativa neoliberal; e há os que desejam uma renovação das forças cívicas, em favor de uma nova quadra desenvolvimentista e de reforço à oferta com qualidade de serviços públicos que garantam dignidade aos desvalidos e progressivamente atuem na reversão do movimento amplificador das desigualdades.
Se a distribuição de renda vivida no Brasil viesse acompanhada de reformas estruturais, que, dadas as contingências atuais da nação, estão em suspenso ou adiadas, teríamos certamente um outro caminho sendo construído em reação ao fluxo geral de especulação perversa, descarte das ideologias contra-hegemônicas e, enfim, da própria humanidade.
Vislumbrar outro caminho, para o capitalismo, é sempre algo muito perigoso. Por isso, seus prepostos tupiniquins estão aí, há pelo menos dois anos, bagunçando o coreto, para que o processo neoliberal do “não tem jeito”, seja de vez implantado por aqui. Qualquer análise da conjuntura econômica e política brasileira que descarte a sua relação global com esse fluxo do capitalismo financeiro de descarte progressivo da humanidade estará vendo o problema apenas na superfície. Será preciso desmascarar a todo momento a desideologização do debate político-econômico, mostrando que, entre tantas outras, temos a tarefa urgente de defender a humanidade, e especialmente o seu lado mais fraco.
Não parece haver dúvida de que estamos próximos de uma nova idade das trevas, onde o fascismo do capital especulativo será a igreja onde alguns poucos e endinheirados tementes se ajoelharão, enquanto o resto da humanidade se entregará à fome e à doença. Diante disso, vai ficando mais óbvio que a mudança exigida não se dará apenas pela implantação da vontade política dos oprimidos. As futuras gerações entenderão inexoravelmente que essa vontade é indissociável da necessidade de sobrevivência da espécie humana. Por isso, o dever que quem vive hoje é ter o tino que o presente exige. É preciso colocar no centro de nossas ações políticas e culturais o fato de que o grande dilema ético que todos partilhamos é a abissal desigualdade e a iminente descartabilidade de uma parcela imensa da humanidade. Em cada movimento da nossa vida pública de cidadãos deve estar posto esse dilema; e a primeira resposta para ele é a massificação da ideia de que um outro mundo é possível e necessário. O longo prazo também é parte importante do combate a que se propõem as forças de esquerda. Sabemos que, dialeticamente, o futuro é construído dia após dia. Nos movimentos miúdos da política brasileira, esse futuro está em disputa e exige o nosso discernimento, nosso comprometimento, nossa capacidade de imaginar o distante e nossa energia cívica de atuar no agora. Sonhar um mundo liberto do jugo do capital nunca foi tão urgente, sob pena de que a vitória da utopia negativa do neoliberalismo seja a derrota da humanidade como um todo.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com