“Que horas ela volta?” é um filme a que se assiste em agonia. Em sua delicada arquitetura, cheia de nuances muito complexas, exprime-se, em processo cotidiano, o tecido social brasileiro. A forma com que dialoga com o espectador é tão aguda que é difícil se entregar ao luxo do descomprometimento. Ao plasmar ficcionalmente uma situação que nos é cotidiana, torna impossível deixar de conscientemente perceber que ali na tela estamos nós mesmos, bem como parte da história brasileira que vivemos. Realidade e seu reflexo passam a ser um amálgama só, partilhando de uma linguagem comum, trivial e estruturante de psiquismos e movimentos da nossa sociedade. Daí o incômodo, a náusea, a inquietação que o espectador, mesmo o mais insensível, experimenta ao longo das quase duas horas de projeção. Se rimos é de nervoso, se choramos, é de comprometimento.
Um dos traços mais salientes da eficácia estética da obra é o seu princípio intensificador. Entenda-se aqui por intensificação a capacidade que o filme tem de condensar a experiência social brasileira, a nossa matéria específica, em seus diferentes aspectos de fatura: a luz, a fotografia, o som, os cenários, as interpretações, os diálogos, e, é claro, a estruturação narrativa do enredo. A intensificação é garantida pela atenção quase obsessiva ao detalhe, que deve, ele próprio, sintetizar todo o movimento de que faz parte, intensificando a axiologia estética e política do conjunto. Quando se diz intensificação, não se deve entender carregar de tintas, o que levaria a obra à tendência caricatural ou à melodramática, quase sempre maniqueístas. Ao contrário, o tom do filme de Anna Muylaert é de um realismo manso, minimalista e conseqüente. Assi,, chega-se ao um resultado primoroso exatamente porque põe em movimento valores que estruturam uma visão de mundo cujo endereço sabemos todos; uma visão a respeito dos homens, das coisas, dos outros e do trabalho ao mesmo tempo reiterada e contraposta no cotidiano brasileiro.
Ao colocar esse processo muito complexo em um formato de condensação vigilante, sempre à altura da complexidade que reflete, o filme faz uma pergunta e nos interpela a replicá-la. A pergunta do filme não é apenas aquela que se encontra (em modo caleidoscópico) plasmada no seu título; ela pode ser formulada utilizando a antiga sintaxe irônica e tisnada de impulso brechtiano que fazia Roberto Schwarz ao final da década de 1980: “Que horas são?”. Não custa lembrar que o conjunto de ensaios de Schwarz que levava esse título, fazia um belo amálgama entre reflexões a respeito da tradição literária brasileira com questões mais recentes e urgentes de nossa cultura em novíssima fase de país democrático. Juntando análises de Machado, escritor que melhor do que ninguém representou o país da escravidão, com impasses contemporâneos em diversas linguagens artísticas, os textos do crítico encabeçados pela pergunta provocavam o leitor a refletir sobre mudanças e permanências especificamente nossas em um novo quadrante “modernizador”, que anunciava já a sua plumagem conservadora, seu bico proeminente e ávido, com o velho e bom “considerável acúmulo no plano das elites”. Naquele distante 1987, os escritos de Schwarz já pressagiavam a impostura de um modelo de modernização que se azeitava bem com antigas amarras atrasadas da nação. Era a primeira sombra do Brasil que se construiria em pauta claramente neoliberal, como uma “sociedade contra o social”.
O filme de Muylaert nos provoca a refazer a pergunta “Que horas são?”: em que tempo estamos considerando velhos e novos dilemas do país? A quantas anda aquele velho e bom acúmulo no plano das elites? E seria real certa possibilidade de reversão de algumas constantes atávicas da sociedade brasileira? A pergunta pelo tempo em que vivemos hoje surge porque está claro que o filme resulta de um processo histórico-tempoal recente. E vale a pena nomeá-lo: os anos em que o Brasil foi governado por presidentes do Partido dos Trabalhadores e no quais, para dizer o mínimo, o modelo neoliberal foi combinado com mecanismos econômicos desenvolvimentistas a serviço da reversão de problemas sociais urgentes e arraigados como a fome e a miséria. A obra não se propõe a explicar esse processo, mas ele está ali exposto a partir da estruturanarrativa intensificadora de tempo, espaço e detalhe. Portanto, não se trata de uma obra que fala de apenas hoje. Para que o espectador compreenda as determinações externas envolvidas nos atos das personagens em tela, é preciso que ele mesmo, espectador, recupere o processo de que tais ações resultam. Os conflitos entre as personagens são, pois, reflexo de um conflito maior, desencadeado pelo processo político e econômico de intensificação de um desenvolvimento nacional e popular e de acúmulo de direitos para os “de baixo”.
Assim, “Que horas ela volta?” retoma o tema do “intruso”, relativamente habitual na narrativa ocidental. Em um ambiente estável, de leis consolidadas, adentra um personagem sedutor, que não domina e não partilha dos códigos ali enraizados. Muito pelo contrário, o intruso vem para reelaborar noutro plano esses códigos, propondo novas relações e emperrando antigos maquinismos ideológicos. A “intrusa” do filme é representada pela personagem Jéssica (Camila Márdila), filha da empregada doméstica Val (Regina Casé). Deixada pela mãe na terra natal em Pernambuco, por razões familiares e econômicas, Jéssica cresce sustentada pelo dinheiro da mãe, mas sem a sua presença. No momento retratado pela película, Jéssica, desejando fazer vestibular para ingresso na USP, vai a São Paulo, onde a mãe é empregada de uma típica família de elite brasileira: rica, acomodada, boçal, parasita, preconceituosa, improdutiva, pavoneante, hipócrita, neurótica, incompetente e cordial. Jéssica é “intrusa” porque não partilha e não deseja partilhar a gramática da cordialidade, que é a própria imanência da relação de trabalho entre os patrões e a empregada nordestina no país “desenvolvido” do “sul maravilha”. Incomodada com a forma como a mãe aceita ser tratada pelos patrões Jéssica pergunta, em determinado momento, “onde é que está escrito” o que pode e o que não pode o empregado doméstico fazer ou deixar de fazer na casa em que vive junto com os patrões. A explicação vem pela perspectiva subalterna e conformada da mãe: “Quando eles oferecem alguma coisa, é por educação. É porque eles têm certeza de que a gente vi dizer não”. Não é à toa que a moça quer estudar arquitetura: ela é uma “intrusa” que veio para ajudar a repensar estruturas.
Pois bem, o processo a que o filme alude, e do qual a sua ação é um momento condensador, expõe os conflitos reais que tornam possível a reversão dessa gramática que dá liga ao contrato social à brasileira. Enunciemo-lo assim, parafraseando as palavras da personagem Val, mas em perspectiva crítica: “A elite oferece sem dar, para nunca deixar de passar por superior e benevolente; o povo não aceita por conformação, pois é fundamental para a sua sobrevivência saber o seu lugar de capacho útil.” Daí que a casa onde Val trabalha, e que é invadida pela “intrusa” (figurando talvez a própria própria democracia crítica derivada de uma ascenção material) que é Jéssica, não é apenas uma casa de elite típica. Ela é a condensação do país inteiro, onde o direito dos ricos é privilégio e o dos pobres passa pela obrigação de serem pobres e de submeterem-se. A “intrusa” atravessa esse complexo de afetos e de legalidade não escrita, anunciando, quem sabe, a iminência da sua proscrição, ou, no mínimo, a sua inquestionável decadência.
Vários são os signos dessa gramática que a intrusa veio para “conflitar” evidentes no filme. Poder-se-ia passar várias páginas elencando-os e discutindo-os, pois o filme vale em grande medida por essa cuidadosa engenharia de minimalismos postos em função de uma coerência ideológica robusta e muito ampla. Todavia, o mais saliente deles tem a ver com a linguagem. Nos diálogos, no gestual, nas roupas, tudo o que o filme grita é a exposição do ódio amenizado das classes dominantes por aqueles que criam os seus filhos.
Tal linguagem é pautada um uma ambigüidade traiçoeira, que a jovem “intrusa” passa a compreender, mas é incapaz de suportar. As falas do patriarca depressivo, o Dr. Carlos (Lourenço Mutarelli), representam bem essa ambigüidade feita de gentileza e violência. Quase nunca o pai dá ordens incisivamente, ele sempre ordena, mas no cordial tom de uma pergunta: “Val, você pode trazer o almoço?”. Essa linguagem gelatinosa ainda há pouco tempo foi um forte lubrificante ideológico, um preservativo contra os conflitos racionais e naturais entre as classes no Brasil. É uma linguagem, de herança escravocrata, dominada pela elite e pactuada pelos subalternos cujo objetivo é o amortecimento, a acomodação e a perpetuação dos esquemas de sociabilidade violenta à brasileira. Todos os elementos técnicos do filme estão, assim, postos a serviço da criação de um tom que é muito peculiar e brasileiro, quase intraduzível para o estrangeiro, mas que é a mais completa tradução da nossa maneira cordial de viver o conflito entre as classes. Pelo apelo do tom inconfundivelmente brasileiro, o filme faz um convite inquietante a revisitarmos clássico de nosso pensamento crítico, tais como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, e A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes.
Ao eleger tal linguagem como uma das forças decisivas da sua narrativa, “Que horas ela volta?” expõe também o processo de decadência desse modelo amenizador de conflitos. Visto por um prisma otimista, mas nem por isso despropositado, o processo que a “intrusa” figura na sua “invasão” do espaço da família endinheirada é o da decadência de certo Brasil que fazia praça de moderno com base em relações sociais que condenavam boa parte da população a uma cidadania de segunda classe. O processo de melhoria material de vida das classes populares vivenciado no país nos últimos anos torna possível (mas não imediata) a construção de uma outra gramática ideológica, capaz de disputar em termos reais a hegemonia, contrapondo-se àquela tão bem representada na subserviência da empregada Val com os patrões. É o conflito entre a defesa hipócrita de privilégios e de crueldade acomodada e a racionalização republicana e crítica das relações de trabalho que podemos conceber como a súmula estruturante da ação do filme. Parece irônico dizer isso nessa época em que a palavra foi tão aviltada pela classe dominante, mas é verdade: o filme oportuniza uma radical historicização do conceito de “mertitocracia”.
A obra de Anna Muylaert, com sua eficácia estética legítima, portanto, exige que recuperemos o processo social brasileiro que vivemos e que tomemos noutro nível crítico os conflitos entre as classes como um dos grandes e verdadeiros avanços modernizadores do país. O filme é, pois, não apenas oportuno, mas necessário: a inteligibilidade daquela família exige do espectador a inteligibilidade do Brasil. Desse modo, ele nos ajuda a colocar novamente a pergunta persistente “Que horas são?”. É bom tentar entender o processo histórico que nos levou ao nosso momento, assim como num processo clínico de psicanálise. Há quem diga que a assunção das classes populares se deu apenas no plano do consumo, sendo, portanto, anódina do ponto de vista político e humanista. “Que horas ela volta?”, entretanto, discute a questão por outro lado. A ascensão material dos subalternos, sobretudo quando vinculada a uma educação de qualidade, tem o condão de promover, em escala sistêmica, um intenso processo de acirramento de conflitos ideológicos e de reversão racional da ambigüidade da velha gramática cordial.
Será? A reposta é incerta, mas depende da oportunidade que daremos a nós mesmos, de irmos á raiz das coisas, ou seja: radicalizar a “intrusão”. No Brasil de hoje verifica-se um inegável novo espaço político, social, econômico e cultural conquistado, nos últimos anos, pelas classes exploradas. Mas este ainda é um espaço em disputa; um espaço que precisa de uma Política que garanta a sua continuidade, pois mudar quinhentos anos não é possível em uma década. Este é um espaço que precisa de uma Política de permanência pacífica, democrática e racional dos conflitos, pois é isso que faz a história se mover no sentido certo. Caso se pestaneje, o pronome “ela”, em “Que horas ELA volta?”, poderá ser lido como a própria essência social da escravidão, com seus velhos trejeitos, seus velhos ódios, seus velhos costumes, seus velhos valores combinados com a seiva protofascista do neoliberalismo reninitente deste início de século XXI. Ela, a escravidão, que volta exatamente porque nunca foi, como os fantasmas e as correntes da casa-grande que não são varridos da nossa política e do nosso cotidiano. Reverter isso é um processo longo, que depende de projeto consistente e que precisa de constante crítica. Um processo que não pode ser, mais uma vez, abortado pelas elites decadentes em defesas de decrépitos valores anti-republicanos. A tarefa é longa e passa também pelo acirramento dos conflitos; ou seja, precisamos ainda formar muitos e muitos “intrusos”. A notícia boa é que temos artistas que nos ajudam a enxergar essa necessidade, provocando, fazendo pensar e nos ensinando a olhar outra vez para o relógio da nação.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.