Não parece haver mais dúvida alguma de que nas próximas semanas assistiremos a uma nova e violenta etapa da agenda de tentativa de derrubar a presidenta democraticamente reeleita no ano passado. Não se iludam, pois não descansará o golpismo interessado em banir o Partido dos Trabalhadores do poder e concretizar assim o grande e odiento desejo de escorraçar a esquerda do governo, fazendo-a sair a pontapés pela porta dos fundos da democracia brasileira. As sombras arcaicas do patrimonialismo e da velha casa grande brasileira entrarão em ação com mais raiva e mais força muito brevemente.

Nesse contexto, há um importante papel destinado ao amplo conjunto político progressista brasileiro. Primeiramente, é fundamental sabermos discernir algumas linhas mestras do processo de que é apenas uma etapa este conturbado ano de 2015. Em seguida, não podemos subestimar a gravidade das crises por que passamos. Isso será útil para permanecermos conscientes de que, apesar de serem naturais os momentos de conturbação política e econômica, uma atuação desastrosa ou tímida da esquerda nesta etapa difícil para o progressismo pode fazer desmantelarem-se rapidamente “compromissos históricos” firmados a muito custo nos últimos dez anos.

Nunca é demais lembrar que no centro de tais “compromissos históricos” estão ao menos dois avanços inegáveis: a progressiva consolidação da democracia brasileira e a intensificação de ações governamentais de combate à fome e à miséria. É claro que ainda há muito que fazer. Ainda não conseguimos avançar de maneira significativa no plano dos costumes, na racionalização das práticas do Estado e também na diminuição consistente das desigualdades sociais. Entretanto, qualquer um que considere que as estruturas fundamentais de uma república ainda não estão completamente garantidas no Brasil pode avaliar bem o perigo de que, a partir da crise atual, entreguemos novamente o país ao comando daqueles que não possuem verdadeiro interesse de que a pauta de avanços sociais, econômicos e políticos seja levada adiante.

É preciso argumentar pouco para deixar evidente que o combate à miséria e a intensificação dos pactos democráticos via institucionalização republicana não serão prioridade para atores políticos do campo conservador que estão à espreita da queda do atual governo. Tomem-se como exemplos desse perigo o comportamento quase bestial do conservadoríssimo parlamento brasileiro no primeiro semestre de 2015, a ação política eivada de interesses de classe (e no limite interesses personalistas) da mídia, bem como o partidarizado “cumprimento da lei” por segmentos da Polícia Federal e do Poder Judiciário. Não há que esperar bom senso de mercenários do golpismo; nossa saída e nossas providências para a crise têm de ser à esquerda e sem desprezar alianças.

Dada a situação de crise atual, há duas frentes principais em que precisamos agir: a econômica e a política. Embora elas se intercambiem e se retroalimentem, vale a pena pensá-las em separado, em termos táticos e estratégicos. No plano econômico ainda estão para ser postas no horizonte soluções concretas de enfrentamento da crise por um prisma que não seja tão visceralmente submisso à cantilena da ortodoxia neoliberal. O arrocho levyano já começa a evidenciar seus limites, ao atingir de modo mais grave as classes mais pobres e ao fazer a economia desacelerar de forma mais abrupta que o esperado pelas grandes cabeças da economia. Ficou claro, com a revisão do superávit primário para 2015 anunciada na semana passada, que a equipe econômica desafiou a velha lição grega do pharmakon na dosagem dos ajustes: o que é remédio pode ser também veneno. O resultado disso tudo é que o sentimento geral de crise se agravou e a economia pisou no freio, numa combinação deletéria de inflação crescente, juros altos e aumento da procura por ocupação laboral, que eleva rapidamente a taxa de desemprego.

Atentemos à frase: “A genialidade neoliberal é vender como ciência uma geringonça ideológica em que o acelerador do ajuste aciona o freio da economia e faz a sociedade capotar”. Isto foi o que bem disse Saul Leblon  a respeito da química deletéria regida pelo Ministro Levy, um dos coroinhas da bíblia neoliberal cuja missão principal, quando convocado por Dilma, era a de acalmar o Moloch do mercado. Sacrificando a quem?

Foi nesse ambiente sujeito aos mais aleatórios sismos que acompanhamos nas últimas duas semanas uma propagação crescente nas redes sociais da expressão “#Apesar da crise”. Muita gente empenhada na defesa do Governo Dilma divulgou, seguidas da referida hashtag, notícias relacionadas a recentes resultados positivos de alguns setores da economia para tentar reagir à maré de pessimismo que o monopólio midiático tenta tornar cada vez maior. De fato, a providência de divulgar notícias de bons resultados econômicos, sob esse ponto de vista, é muito interessante e pode ser fundamental no debate que é preciso promover a respeito da dimensão do problema econômico que vivenciamos aqui e também em escala global. A grande mídia insiste na divulgação de números ruins que foram surgindo durante o primeiro semestre de 2015 numa clara tentativa de aproveitar a existência de dificuldades econômicas brasileiras para primeiro atribuir a responsabilidade por elas unicamente ao governo atual e depois para agravar na opinião pública um sentimento que vai se generalizando, o de crise econômica caótica e sem saída que não seja a da substituição da presidenta. O caldo do golpismo com isso almeja engrossar-se com a ideia de “inépcia” da presidenta, que, embora não seja nem real nem justificativa para impeachment, insufla ainda mais o ódio selvagem da elite estúpida e a insatisfação real de setores significativos da sociedade. Assim, de modo reativo, com o “#Apesar da crise”, muita contrainformação positiva a respeito de nosso contexto atual foi sendo propagada, embora com alcance relativamente restrito.

Entretanto, não devemos parar por aí. Para nos organizarmos contra o discurso da crise não nos basta recolher elementos que contradigam a sua profundidade ou a sua amplidão. É preciso também que sejamos capazes de ter coragem de pensar o momento que atravessamos como crítico, ou seja: como momento de crise econômica global séria, que é catalisada localmente por uma situação de crise política que se agrava há alguns anos. É preciso encarar a crise sobretudo como momento que põe em risco o sentido das transformações sociais empreendidas nos últimos anos. Enquanto uma parte da esquerda continuar se esforçando para negar a crise econômica ou mesmo diminuir a sua profundidade estará abstendo-se de pensar saídas para os problemas da economia do país que estejam fora do arco das propostas neoliberais, que são dominantes no horizonte do atual programa econômico. A esquerda permanece com pouco a dizer em termos econômicos se não souber construir também tecnicamente alternativas de ajuste econômico que não sejam expressão fidedigna da cartilha de arrocho dos evangelistas do neoliberalismo, que propagam uma ideologia promotora da miséria travestida de ação econômica técnica. Se a esquerda não tem uma proposta econômica alternativa clara, viável e eficaz e, além disso, não é capaz de esclarecê-la aos diversos setores da sociedade, então ela terá sempre um papel apenas acessório (talvez quase expletivo) na construção de uma nova etapa do desenvolvimento brasileiro. E com esse papel subalterno, de quem parece compelido a engolir a mentirosa racionalidade tecnicista neoliberal, fica muito difícil pensar e produzir avanços em outras pautas sejam elas de natureza política ou do âmbito dos costumes.

Nosso destino será o de mendigar avanços nos costumes, por exemplo, em troca de nos submetermos ao manual econômico que produz desemprego, fome, miséria por onde passa? Se essa é nossa sina, por quanto tempo existiremos como campo progressista sistêmico? Seremos capazes de produzir respostas reais apenas quando a convulsão social alcançar o insuportável? Ou agiremos antes, construindo um novo pacto político republicano que não deixe o país regredir tão brutalmente quanto o momento anuncia? Não são apenas perguntas, mas provocações à reflexão e à ação coletiva. A solução à esquerda para a crise só poderá surgir se for empreendido um sério esforço para o estabelecimento de um novo contrato político capaz de agenciar, em novas bases, a nova etapa do desenvolvimento brasileiro. Isto pois há pelo menos três anos o amálgama político que sustentou o lulismo vem dando sérios sinais de desgaste. E entre esses sinais o mais evidente e grave é o do arrefecimento da coalizão de política institucional que sustentava a ação do Executivo. Achar uma nova saída para a economia está inescapavelmente ligado a encontrar um novo caminho para pactuar a sustentação da próxima etapa do desenvolvimento brasileiro com garantias verdadeiras de avanços progressistas mais velozes.

Numa etapa difícil da vida política italiana, o grande líder comunista Enrico Berlinguer afirmava que “Não se pode governar e transformar o país com uma maioria de 51%”. Primeiro porque, em geral, uma vitória como esta mascara um processo de derrota política. Ademais, para além da aparente obviedade da fala de Berlinguer, encontra-se nela um importante recado: a governabilidade só faz sentido se estiver a serviço de um projeto capaz de transformar o país. A missão que precisa ser levada a termo agora é a abertura a uma nova formulação da governabilidade, mais amparada em setores da sociedade civil. Reinventar (-se) é a urgência. É preciso discutir e desenvolver, na contramão do golpismo, uma forma de governabilidade que não se estruture de modo tão determinante na já caduca coalizão, que na verdade não mais se constitui como diálogo republicano com o Congresso, mas submissão a interesses que se reconhecem, no mais das vezes, como fisiologismo rasteiro. Além disso, nunca é demais lembrar que o diálogo com esta legislatura, que em sua maioria está comprometida com o golpismo e com uma pauta conservadora, implica conversar com quem está disposto à sabotagem. A sociedade brasileira precisa do diálogo (e o deseja), mas a política institucional não tem condições de neste momento favorecer o diálogo que nos faça avançar. Mal e porcamente, a governabilidade tradicional nos fornecerá (se tanto!) um controle medroso e instável das crises. É preciso agora romper alguns laços e abrir um campo de diálogo que sustente o Governo contra o golpismo. Um diálogo que inclua setores do empresariado, dos movimentos sociais, dos sindicatos etc. Sem eles será impossível conduzir pautas progressistas que imprimam o movimento capaz de deixarmos a crise para trás.

Há à nossa frente uma lista de tarefas políticas extensas e complexas: resistir ao golpismo ocupando as ruas e as redes sociais; construir conjuntamente e com amplo debate uma pauta econômica consistente e reativa ao modelo neoliberal; conduzir a sociedade à discussão de temas que façam avançar os costumes brasileiros que tendem ao conservadorismo atualmente; estabelecer uma vigília permanente para restringir a partidarização das instituições republicanas; denunciar diuturnamente a forma venal como empresas que têm o monopólio da notícia usam e abusam de concessões públicas em prol de interesses privados.

Estamos atuando de forma vigorosa em algumas dessas frentes. Entretanto, essas são tarefas que só se atingirão e serão propagadas com mobilização permanente. E não será solução um pacto pelo alto, que apele ao bom senso e à racionalidade dos atores sociais tradicionais. As crises que atravessamos são reais e precisam ser encaradas com realismo. Existe agora a oportunidade de as forças progressistas reinaugurarem uma nova etapa da vida política e econômica do país, na qual seja possível aos cidadãos participarem organizadamente, como força política agente e não como espectadores pacientes da crise. O ambiente crítico, nesses termos, é propício para nós, pois a intensidade dos problemas torna cada vez mais difícil aos brasileiros negarem que têm algo a ver com tudo isso. Marx, recuperando um lema antigo, dizia no prefácio da primeira edição de O Capital (1867) que, por mais distante que pareça, “a fábula fala de ti”.

É de nós que a crise fala e é conosco, com os debaixo, que se construirá a resposta à esquerda para ela.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.

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