Neste ano de 2015, na condição de líder político, o Papa tem merecido a nossa atenção, especialmente pela reação que ele tem suscitado em setores conservadores da sociedade aqui no Brasil e ao redor do globo. Como sempre, os que comungam de um pensamento progressista e anti-capitalista precisam ter cuidado para não fazer o jogo dos capitalistas e dos conservadores. Por isso, quero avaliar o que há de novidade e de boa-nova no que tem feito o Papa com seu discurso programaticamente crítico da estrutura da sociedade capitalista. É sobre isso que me interessa refletir agora, pois, apesar de não acreditar nem no Papa nem na sua Igreja, tendo a sentir simpatia pelo que está dizendo Francisco.

Diante de tudo isso: que novidade há no que está sinalizando recentemente o Papa Francisco em suas últimas intervenções públicas? Pergunto isso pensando na encíclica Ludato sí (24/05/2015) e nos discursos e gestos simbólicos que fez durante a jornada latino-americana, especialmente na visita à Bolívia. Não relembro os fatos e os seus argumentos porque são de conhecimento amplo, graças à grande repercussão que tiveram nos últimos dias, e, por isso, não interessa repeti-los aqui.

Entretanto, quero recuperar um pouco do que está disperso, e em crescente intensificação, em seus textos, discursos e ações cheias de simbologias. Leiam o parágrafo a seguir e perguntem-se: que novidade há em dizer coisas como as que seguem?

“O capitalismo como sistema global está exaurido; os ajustes econômicos que, ao redor do mundo, tentam dar alguma sobrevida a esse sistema, evitando-lhe o coma profundo, sempre são feitos contra os que mais sofrem os efeitos da vida econômica capitalista; a desigualdade social sustenta um sistema originalmente injusto e uma democracia mentirosa, que, em nome de dogmas cada vez mais desmentidos pelo real, tais como os da liberdade individual e do livre mercado, produzem pobreza, fome, doença, destruição do meio ambiente e guerras pelo planeta inteiro; é direito de todos, pela dignidade humana, terem terra, teto e trabalho; a natureza está a ponto de cobrar de forma violenta, as agressões que lhe tem feito o sistema capitalista,  guiado pelas mãos do desenvolvimentismo, do rentismo diabólico e do fetiche tecnológico; o capitalismo tem se configurado cada vez mais como uma ditadura sutil; a natureza reagirá em breve, contra todos os seres humanos, cada golpe que sofreu para a produção de riquezas para pequenos grupos que sustentam que o sistema deu certo; cerca de 80% da riqueza mundial está nas mãos do 10% mais ricos, ou seja, dos lacaios dos grandes monopólios econômicos, que condenam o restante da população mundial à miséria e à desgraça, embora tenhamos todas as condições econômicas e científicas de promover a igualdade em escala planetária; novas formas de totalitarismo se espalham pelo mundo através (e por causa) das novas tecnologias, que produzem e propagam uma forma de existência humana cada vez mais alienada da própria humanidade e da natureza.”

Tudo isso, já foi dito e segue sendo defendido por pensadores progressistas, por movimentos populares, por partidos políticos, por educadores. Portanto, pode-se argumentar que não há novidade alguma no que o Papa diz. Mas penso que, se, substancialmente, o que ele está dizendo é obvio, há, a envolver este conteúdo, pelo menos duas formas de novidade sobre as quais vale a pena pensar.

A primeira novidade está em que, a partir de agora, os detratores dessas teses terão de desqualificar também um Papa e não mais apenas o que chamam de “loucos”, “irresponsáveis”, “revolucionários”, já estigmatizados pelo pensamento burguês (Che, Fidel, Chávez, Marx etc.). O alvo a ser pisoteado pelo ódio dos reacionários tampouco será o braço “comunista da Igreja”, ou a Teologia da Libertação, sempre perseguida e massacrada pelos poderosos do clero. Os detratores dessas teses humanistas e progressistas, que acreditam no determinismo da desigualdade ao mesmo tempo em que propagam a mentira da igualdade, terão de desqualificar um Papa, o chefe supremo da Igreja Católica. E o que é um Papa, além disso? Para mim, que não sou religioso, é um líder político de grande proeminência global, que representa um Estado e uma multidão de seguidores. Para os que são religiosos, ele seria a voz de deus, ou do demônio, conforme o caso, o que, de resto, não muda em essência muita coisa.

O fato é que a direita agora tem de argumentar que o Papa não acredita no que diz, que as suas falas estão contaminadas pelo mais rasteiro populismo, que esta é apenas uma forma de tentar salvar a Igreja, que atualmente agoniza, perdendo fiéis para outras religiões e crenças, laicas ou não. Eles terão de exibir a sua posição, que é ao mesmo tempo frágil e agressiva, ao contraditório. Terão de marcar sua posição. E isso interessa a nós que estamos empenhados em desenvolver um novo e consistente internacionalismo, pautado na educação política do povo. E dizer isso tudo é dizê-lo em um alto falante, de grande repercussão, pois trata-se de agredir uma figura de expressão política global e não um “marginal de esquerda” estigmatizado, como já vimos.

Os “bons conservadores” hoje têm de dizer que a Igreja não deve se meter com política e que todo esse ideário, por assim dizer, “comunista” fracassou no seu tempo histórico e que, portanto, não vale a pena tentar outra vez. A oportunidade do debate nos interessa. Quando um desses hipócritas me diz isso, eu sempre pergunto por que motivo os capitalistas (sejam ilustrados liberais ou brucutus reacionários) desejam tanto o “monopólio do fracasso”. Por que só o capitalismo pode errar, destruindo a vida de tanta gente e tentar de novo replicando-se em um novo ciclo? Perguntem a um habitante da periferia brasileira se o capitalismo está dando certo para ele.

Perguntem a um habitante da África se ele está satisfeito com esse sistema. Perguntem a um americano que ficou sem casa após o estouro da bolha imobiliária se ele acha que são verdadeiras as promessas do Capital. Perguntem ao jovem negro brasileiro, pego num pequeno furto, amarrado a um poste, um segundo antes do linchamento, por brancos marombados… perguntem o que ele acha da vida que o levou até ali. Perguntem a índios que vêm a floresta massacrada, o clima se modificando, se este sistema os respeita em sua dignidade histórica e humana. Perguntem a um jovem espanhol sem emprego o que ele pensa da “meritocracia burguesa”. Perguntem a quem sofre o Capital e aí vocês terão a resposta verdadeira sobre o sistema. Se não me engano, foi algo semelhante que perguntaram recentemente aos gregos. E qual foi a resposta? Embora não acreditem nem aceitem os economistas almofadinhas formados na ortodoxia da cartilheta neoliberal, protegidos em sólidos argumentos numéricos, e em um cínico determinismo, a resposta da Grécia foi: “não, isto não nos interessa e não está dando certo para nós e precisa mudar antes de mais sacrifícios nossos”. Causas como esta precisam se tornar internacionalizadas. A causa da Grécia é a causa de todos os povos que sofrem e por isso, a sua resposta deve converter-se na resposta de todos os excluídos do planeta. O crucifixo em forma de foice e martelo que recebeu de Evo Morales na Bolívia (do qual uma réplica carregava no peito) também pode ser lido por nós simbolicamente como uma condensação dessas respostas.

Pois bem, como vemos, a primeira novidade de todas essas “coisas velhas”, já tão conhecidas, é que a voz de um favelado, a voz de um indígena, a voz de um quilombola, a voz de um refugiado de guerra… todas essas vozes dos que vivem a verdade do sistema capitalista podem ser ignoradas. A voz de um Papa, dada a conformação política do mundo de hoje, não pode ser ignorada (pelo menos ainda!). O que o Papa diz precisa ser considerado, nem que seja para ser desprezado ou desqualificado, como tem feito boa parte da direita e uma parcela da esquerda também. Num horizonte otimista, isso colabora também para a discussão internacionalista das questões atinentes ao esgotamento do capitalismo. Que outro líder global estaria hoje em condições de fazer o mesmo?

A segunda novidade, na minha opinião, está no fato de que o Papa deu nome ao problema. Outros líderes religiosos falaram de modo anódino e hipócrita em nome dos pobres e da natureza, tal como fez o ultrapop e ultraconservador Papa João Paulo II. Mas ele o fez mais ou menos como o fazem os “progressistas de protocolo”, em busca de alguma vantagem prática imediata, algum reconhecimento social e, portanto, também de algum alimento para a vaidade. Entre os que jogam no time da riqueza, é comum condenar a pobreza e vê-la como destino ou como fruto da inépcia; é comum também achar suficiente o seu controle através da caridade. Da mesma forma como é trivial entre eles afirmar que a natureza está em perigo porque “você não fecha a torneira quando escova os dentes”. Ninguém gosta de entrar no mérito da questão, ou seja, de nomear os bois: o processo histórico que caracteriza o capitalismo é o de tornar o Capital o sujeito absoluto da história na mesma proporção em que aliena os homens de sua humanidade. Aos ideólogos que comandam e defendem esse processo, cabe propagandear que isto é um fato, ou, no máximo, um processo irreversível, de um sentido só. Cabe a nós, os ideólogos que queremos desmontar tal ordem de forças, dizer que tudo isto é sim um processo e que, como processo, precisa ter a condução retomada pelos verdadeiros sujeitos da história, ou seja, os seres humanos massacrados por isto que vivenciam como destino; um destino que é nosso, mas que corre sendo alheio a nós.

No mundo alienado dos ideólogos da direita, dizer que existe riqueza porque existe pobreza ou que a natureza está em perigo por causa do consumismo é, às vezes, inadmissível e, às vezes, uma cínica constatação: “escolha logo o seu lado e salve-se, se puder”. A menção ao nome do sistema, que produz e reproduz a exploração e todas as ignomínias daí derivadas seria, para o líder de uma instituição conservadora, como a Igreja Católica, algo impensável. Na expressão “dinheiro é o estrume do capeta” (ou coisa que o valha), o Papa fez a súmula do que tem desenvolvido recentemente em suas intervenções. Essa fala vale para os religiosos: é “pecado” compactuar com esse sistema de exploração dos homens e de exaustão apocalíptica da natureza. Mas ela vale também para os que não creem: cabe aos homens que sofrem e aos seus companheiros e representantes lutar obstinadamente para que isso seja dito. Sem pensamento e sem formação política, será difícil agir com consciência transformadora no cenário político que nos é dado viver hoje.

A postura política e o discurso politizante do Papa, portanto, nos dão a oportunidade de unir povos e lideranças em escala mundial para despertar consciências capazes de agir coletivamente contra um sistema que tem tornado cada vez mais difícil acreditar no futuro da humanidade. E aí está latente um dos significados de Religião: uma religião que não é poluída pelas mistificações que dão aparência de sagrado à mesquinhez dos poderosos. Eu acredito nesta religião dessacralizada, que existe apenas como (e em função da) “religação” entre os homens, entre os homens e as “coisas humanas”, entre os homens e as coisas da natureza. Nessa religação, tenho certeza, muitos companheiros, crentes ou não em deus, também acreditam. Pela primeira vez na história recente do catolicismo, o seu líder máximo utiliza o evangelho não apenas como válvula de consolação para almas culpadas ou de resignação com o destino miserável dos miseráveis. Segundo posso avaliar, o Papa tem usado o evangelho também para alertar para a possibilidade de transformação real do mundo real, a qual depende unicamente das forças humanas catalisadas coletivamente. É aí neste ponto que o Papa vira Francisco.

Falei em evangelho, mas não citarei nenhum dos evangelistas para finalizar este texto. Deixemos isso com os padres. Lembro aqui de outra boa-nova. Quando tinha apenas 25 anos, Marx escreveu:

“Ainda maiores que os obstáculos externos parecem ser as dificuldades internas. Pois, se não resta dúvida alguma sobre ‘de onde viemos’, reina por sua vez grande confusão sobre ‘para onde vamos’. Não apenas se produziu uma anarquia geral entre os reformadores, mas também cada um se vê obrigado a confessar que não tem ideia exata do que conseguir. Entretanto, voltamos a defrontar o fato de que o êxito da nova tendência consiste precisamente em não tratarmos de antecipar dogmaticamente o mundo, mas em querermos encontrar o mundo novo pela crítica do velho”.

A boa-nova de Francisco é que o capitalismo está velho. A nossa, que a sua crítica radical continua em processo e precisa atingir um novo plano de internacionalização. Com tudo isso eu concordo. E tenho certeza de que quem ouviu Francisco falar nas últimas semanas, de alguma forma, também concorda, nem que seja pela certeza de que há por aí, meio em estado de dispersão, um novo estoque de boas-novas. Boas-novas essas que, a partir do velho Marx, estamos a ponto de colocar em prática, também (por que não?) com a ajuda de um certo Francisco.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.