“O que é a poesia?” ou “Para que serve a poesia?” são questões que sempre acompanham poetas e leitores, sejam eles mais ou menos especializados. Vou retomar essas questões, e outras que gravitam em torno delas, para tentar expor aqui a tese de que a poesia (o texto escrito em consonância com o que historicamente se tem considerado “o gênero lírico”) possui uma raiz política profunda. Além do mais, espero poder demonstrar que, quando considerada, essa raiz política pode promover ganhos significativos de densidade para a leitura crítica/interpretativa de um poema.

Em geral, as definições colhidas no senso comum acerca da natureza e da função social da poesia são um prato cheio para os que desejam, sempre interessadamente, derrogar os seus vínculos com a política. A discussão ganha especial interesse porque o ensino de literatura no Brasil está quase que totalmente condenado ao senso comum, apesar do grande desenvolvimento que o seu discurso teórico conheceu nos últimos anos em nossas Universidades. Com frequência, continuamos falando a nossos estudantes de ensino básico como leitores não profissionais, deixando as limitações do senso comum atravessarem nossas atividades de leitura. Com isso, continuamos passivamente aceitando que a literatura é uma disciplina acessória, da ordem do gozo, do prazer ou da distração: uma espécie de passatempo luxuoso que tem o condão de, nos melhores casos, entregar ao leitor um certo conhecimento empírico da língua padrão em troca do tédio inevitável que se sente diante de “clássicos” considerados relativamente anódinos por mestres e estudantes.

No conjunto deletério dessas deformações da natureza e da função da poesia encontradas no senso comum (e por extensão também na escola), destacam-se aquelas que a consideram algo pertencente a um plano místico, aquelas que a tomam como um corpo estético fixo destinado aos poucos entendidos que o autopsiarão, aquelas que a concebem como mera expressão confessional de um autor que sofre de alguma patologia,  ou ainda aquelas que a desejam como artefato de linguagem feito para ser puramente contemplado em sua existência monádica, uma vez que é infenso ao poluído mundo real.

Mas há também um espectro de definições que podemos encontrar também dentro do senso comum que delineia, de modo não menos deletério e simplório, a poesia como algo que existe para defender e propagar verdades, para produzir agitação e propaganda, para intervir no mundo social de modo imediato, para exortar a ação político-social dos homens, para retratar os fatos da realidade e para comentá-los.

Todas essas definições, embora possamos reconhecer inúmeras diferenças entre elas, padecem de um problema comum, que é muito prejudicial à apreciação teórico-crítica de um objeto artístico. Todas elas denegam a dialética entre autonomia e pertencimento que é básica para a compreensão da raiz política da poesia. A dialética entre autonomia e pertencimento nos atesta que a poesia é algo específico em si mesmo e, portanto, é algo autônomo em relação ao mundo. A mesma dialética nos lembra que a autonomia da arte invoca um liame profundo com a realidade.

Tal dialética ganha dinâmica reveladora (e de alto rendimento crítico) quando lembramos o conceito de reflexo, de larga tradição nos estudos marxistas da literatura, para afirmar que a literatura torna a realidade presente exatamente por ser algo diferente dela. A poesia é, portanto, um reflexo da realidade, um reflexo que é capaz de, nos melhores casos, nos encaminhar para a raiz da vida social. E a raiz da vida social é o homem, que se afirma como tal no processo de produção da sua humanidade. Um processo que é, em última análise, político.

Como forma de trabalho humano, a poesia é um construto de mediações formais cujas especificidades precisam ser bem compreendidas. Tentaremos chegar à descrição de algumas dessas especificidades que são algo mais intenso do que a mera técnica e, por isso, fundamentais para a hipótese da raiz política da poesia partindo de uma definição menos engessada e bastante mais complexa do que aquelas a que aludimos como pertencentes ao senso comum. Partiremos de uma definição, que, apesar de enunciada de modo muito simples, encerra uma densidade que nos encaminha para o terreno da mais exigente crítica literária.

A definição de poesia que retomo aqui é a do crítico marxista inglês Terry Eagleton. Em seu Como ler um poema? Eagleton define assim o texto do gênero lírico: “Um poema é uma declaração moral, verbalmente inventiva e ficcional, na qual é o autor, e não a impressora ou o processador de textos, que decide onde terminam os versos.”  A definição desenha muito bem os limites fundamentais do gênero lírico. O primeiro desses limites é o da “moral”, ou seja, um texto poético é fundamentalmente uma expressão de valores de matéria coletiva, que ali está mediada por um indivíduo, ou por uma voz poética. O segundo desses limites é do plano da forma. O poema, nos diz Eagleton, é algo ficcional, o que quer dizer que nele há, conforme já vimos, um reflexo da realidade e não “a realidade”. Ademais, a exigência de inventividade e a alegada liberdade de escolha do autor daí decorrente para decidir a edição das linhas de um poema como bem entender o seu autor colocam-nos, na verdade, diante da questão da escolha (condicionada por limitações históricas) que poeta é impelido a fazer em relação à tradição estética a que vai se filiar.

Vamos agora a algumas explicações, que aqui separaremos em dois âmbitos apenas para facilitar didaticamente a exposição. O primeiro deles refere-se à substância, ou ao conteúdo essencial de um poema. Quando Eagleton fala em “declaração moral”, ele não afirma que um poema é a mera defesa imediata de uma moral ou a expressão de uma impostura moralizante, o que seria, é claro, um reducionismo do alcance (inclusive político) da verdadeira poesia. Embora haja poemas, bons e ruins, que propalem, ou imponham, ou sugiram ao leitor, certo conjunto de noções morais às quais adere o autor do poema, não podemos reduzir a isso o alcance estético do poema. O que Eagleton quer nos dizer é que, na verdade, a voz se exprime no poema ao exprimir uma moral, como (buscando uma definição em “estado de dicionário”) “conjunto de valores, individuais ou coletivos, considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta dos homens”. Daí podemos extrair ao menos um elemento útil para o que desejamos compreender aqui: mesmo quando um poema está propagandeando o particularismo intenso de uma voz, isso se faz enquanto expressão de um conjunto de valores que atesta o laço muitas vezes tenso entre essa voz e a comunidade a que pertence. Encontramos aí, portanto, um primeiro nível da natureza política da expressão lírica.

Vamos agora ao segundo âmbito, aquele dos procedimentos técnicos, ou formais, ou estruturais. Eagleton nos chama a atenção para o caráter ficcional da enunciação lírica. Desse destino ficcional, sublinharemos o fato de que, embora esteja muitas vezes ligado a fatos ou vivências de um indivíduo real, os poemas (ou pelo menos os bons poemas) são sempre uma transfiguração do vivido em termos contingenciais. Podemos concluir, então, que um bom poema, um poema que alcança eficácia estética, é aquele que atinge certo grau de superação da experiência imediata, projetando-se através da enunciação coerente de uma vivência que se deseja estendida e tensionada artisticamente em termos supraindividuais. A ficcionalização inerente à arte está, portanto, presente em um poema exatamente pela (e não apesar da) intensificação de sua força particular ou individual.

Para finalizar, ainda dentro deste âmbito em que temos considerado os elementos formadores, lembremos que o caráter de inventividade da linguagem e a liberdade da edição das linhas de um poema têm a ver com a história da formação desse gênero literário. Ou seja, quando um poeta escolhe exprimir uma visão de mundo amparada em certo conjunto de valores coletivos, projetando-a em um horizonte de ficcionalização do vivido que deseja suplantar o contingente, procura fazer isso dando relevo especial à camada material da expressão linguística, utilizando figuras de linguagem, recursos sonoros, ferramentas rítmicas etc. Essa camada material da linguagem, entretanto, é ela mesma social. O poeta pode inventar as combinações infinitas desses elementos; mas a ele não é dado inventar esses elementos, uma vez que eles são historicamente construídos e socialmente determinados dentro de uma série que, por sua vez, é finita.

Da mesma maneira que outras formas de arte, a poesia, quando acontece, ou seja, quando um poema se constrói a sério como artefato autônomo de linguagem que está à altura das exigências de seu tempo, tem o dom de colocar os homens em contato verdadeiro com o mundo a que eles pertencem coletivamente. Aludindo a uma conhecida expressão de Antonio Candido , poderíamos dizer que um poema é um instrumento de descoberta e de interpretação de si mesmo, do trabalho que o constituiu e, assim, por extensão, da própria realidade na qual está integrado e que reflete. Tal instrumento é calcado em uma dicção inegavelmente subjetiva. Nos sentimentos que emergem via linguagem do fundo desse Eu que é tornado objetivo no poema, podem-se ler as contradições formativas da vida social. Dessa forma, quando lemos um poema, ao fruirmos a sua especificidade artística, nos confrontamos com uma forma de conhecimento da realidade, construída e determinada pelas leis de uma harmonia a que os homens têm historicamente chamado de “belo”. O poema é, portanto, uma experiência de linguagem capaz de reconciliar o leitor com a sua experiência individual e social, isso pelo fato de que ele é a explicitação de uma tomada de consciência do mundo exterior por um indivíduo. O Eu lírico é sempre um Eu em busca da compreensão do mundo em que ele se vê imerso, assim como um poema é o registro desta mesma busca.

Então, nesses termos, a ficção de base da forma lírica seria esta: o poema representa ao leitor uma tomada de consciência do mundo objetivo por uma subjetividade socialmente localizada. Aí estão coordenadas essenciais da raiz política do reflexo típico do lirismo. É isto também o que garante a este gênero, nos melhores casos, um grau relevante de alcance estético, no sentido de que uma das funções da arte é a de prover os homens do reconhecimento e a consciência da sua humanidade, através do encontro com um nível inteligível de verdade relativamente à sua existência e a o seu destino comunitário.

Aí está a verdade da poesia: o poeta procura não trair a especificidade de sua contingência, a dinâmica particular da sua estrutura de sentimentos, fazendo o possível para, através dos recursos recolhidos na tradição, transcendê-la ao transfigurá-la liricamente. A verdade da poesia é, assim, da ordem de uma transcendência radical que não traia as suas contingências, as suas próprias raízes individuais e coletivas. Portanto, a poesia, tem uma verdade que é determinante de seu valor estético, a qual, evidentemente, não reside na afirmação peremptória de uma certeza privada ou relativa a um determinado grupo social. Ela está na sinceridade com que o poeta respeita suas próprias contingências e lhes dá expressão superadora legítima. Ela se torna reconhecível quando o poeta exprime apenas e tão somente o seu próprio tamanho no mundo, não querendo ser diferente e não se deixando seduzir por fugas fáceis para os fetichismos que são inerentes à forma literária e aos seus pactos de transmissão. Quando persegue essa verdade, o poeta cumpre o que encontramos no bom conselho do grande poeta brasileiro Antonio Carlos Brito, o Cacaso: “não se deixar paralisar pelos esquemas paralisantes”.

Mas uma forma assim individualista, tendente ao subjetivismo não seria, por si só a negação da política, ou seja, das dinâmicas onde se pode discernir a essência da vida coletiva? Como mostramos até aqui, toda a base formal elementar do gênero lírico considera a dialética entre o Eu o mundo: a subjetividade que faz uma declaração moral, a transfiguração ficcional da contingência, o poema como registro de uma tomada de consciência do mundo, o poema como artefato verbal que paga tributo a um conjunto de mecanismos poéticos histórica e socialmente constituídos. A raiz política do poema, portanto, pode ser percebida na maneira como ele dá forma estética a um reflexo do mundo na consciência do homem, que se exprime em termos individuais, através de um Eu, que, por produzir poesia produz a sua humanidade.

Daí deriva ao menos uma função política importante no mundo de hoje. Num mundo em que a patologia do Eu parece ser exatamente a ausência de alma, enunciar algo em tensão subjetiva essencial com a coletividade é uma forte ação política. O Eu do poema não afirma apenas egoísmo ou egocentrismo, ele afirma a sua humanidade, ao contrário das expressões assoladas pela estética da mercadoria, que são a própria negação da densidade dos afetos e dos sentimentos em favor de um Eu que é pura performance, que é apenas casca de uma subjetividade exaurida de humanidade.Tal afirmação feita pela arte verdadeira é rara nesses nossos dias de hoje, em que o Eu burguês se reconhece cada vez mais através da exposição desta egolatria sem Eu. A densidade lírica, assim, é por natureza uma reação política à subjetividade contemporânea formada quase que apenas de uma camada superficial de pixels e uma compreensão da existência individual pautada em processos químicos e orgânicos.

A insistência do gênero lírico no Eu, pode, assim, ser lida como resposta estética exigente a uma demanda humana por liberdade em relação ao mundo da coisificação, ao mundo da mercadoria. Não existe a poesia sem a vida, sendo a vida, por um lado, a grande imanência de afetos que são vividos pelo Eu em contato com os homens e, por outro, o longo e nunca linear processo de construção da humanidade pelo próprio homem. Um poema é sempre algo que enforma tensões presentes nesses dois âmbitos. E é nesses termos que ele está sempre à espera de um leitor humanize o seu jogo autônomo escavando as diversas camadas de que ele constrói para se afirmar como fato artístico, a partir da sua inegável raiz política. Voltando ao que indicamos no início, é por aí que se deve começar a pensar o lugar da literatura no ensino básico, ou seja, assumindo-a como um patrimônio essencial da humanidade que existe para que o homem se reencontre de modo consciente e afetivo com as suas próprias raízes.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.