Um texto de Pasolini da década de 1970 pode ajudar a entender o conservadorismo contemporâneo

A discussão a sério em torno do tema do fascismo e suas derivações é urgente na conjuntura atual. No Brasil, o ano de 2015 marca uma guinada à direita da sociedade que tende a se verticalizar, desrecalacando antigos ranços da sociabilidade colonial, que se projetam em nosso cotidiano somando-se a velhas e novas formas de comportamento reacionário e conservador. Não se deve banalizar o uso da palavra, mas não se deve temer utilizá-la quando as condições permitirem considerar fascista esta ou aquela atitude de pessoas e grupos sociais.
Para quem acha que não corremos o risco de sucumbirmos ao fascismo, ou que não estejamos hodiernamente expostos a novas formas do fascismo que talvez ainda não reconhecemos como tal, recomenda-se uma mirada atenta ao noticiário das últimas semanas. Marcha de “liberais” obtusos a Brasília para derrubar a presidenta, reforma política regressiva, antidemocrática e entreguista, fundamentalismo homofóbico nas redes sociais, proposição da votação da redução da maioridade penal. Ódio, intolerância, “terrorismos”.
Podemos estar vivendo a gênese de um Brasil em que as liberdades dos cidadãos e a soberania nacional estão em risco. Ou podemos, se não nos omitirmos de pensar na possibilidade real de um fascismo contemporâneo à brasileira, elaborar uma forma de reagir conjuntamente, formulando novas alternativas políticas, para barrar o retrocesso. Não é fácil resistir, mas a primeira providência é saber quem é o inimigo.
O texto a seguir é uma entrevista que o escritor, poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini concedeu em 1974, quase um ano antes de seu brutal assassinato, em 1975. O que o leitor encontra no texto é o esforço de Pasolini em fazer o diagnóstico, nada fácil, das forças políticas e econômicas que produziam àquela altura uma nova forma de contrição das liberdades humanas, em favor do poder político de essência tradicional e do gozo reprodutivo do capital. Quem sabe possamos aprender um pouco com ele, para compreender quem é o nosso inimigo e o que devemos ousar pensar e fazer para não produzir uma revolta que seja apenas “substancialmente agradável ao sistema”, como nos alerta Pasolini.

Fascista*
Pier Paolo Pasolini
<>, 26 de dezembro de 1974**

Existe hoje uma forma de antifascismo arqueológico que é também um bom pretexto para se procurar um padrão de antifascismo real. Trata-se de um antifascismo fácil que tem por objeto e por objetivo um fascismo arcaico que não existe mais e que não existirá nunca mais. Partamos do recente filme de Naldini: Fascista1. Então, este filme, que se colocou o problema da relação entre o líder e a multidão, demonstrou que tanto aquele líder, Mussolini, quanto aquela multidão são dois personagens absolutamente arqueológicos. Um líder como aquele hoje é absolutamente inconcebível não apenas pela nulidade e pela irracionalidade daquilo que diz, pelo vazio lógico que está por trás do que diz, mas também porque não encontraria absolutamente espaço e credibilidade no mundo moderno. Bastaria a televisão para esvaziá-lo e destruí-lo politicamente. As técnicas daquele líder funcionavam bem sobre um palco, em um comício, frente a multidões “oceânicas”, não funcionariam de modo algum em uma tela.
Esta não é uma simples constatação epidérmica, puramente técnica, é o símbolo de uma transformação total do modo de ser, de nos comunicarmos. E também da multidão, aquela massa “oceânica”. Basta deter por um átimo os olhos sobre aqueles rostos para ver que aquela multidão não existe mais, que são mortos, que estão sepultados, que são os nossos avós. Basta isso para entender que o fascismo não se repetirá jamais. Eis porque boa parte do antifascismo de hoje, ou ao menos daquilo que se denomina antifascismo, ou é ingênuo e estúpido ou é pretensioso e de má fé: porque luta contra, ou finge lutar contra, um fenômeno morto e sepultado, propriamente arqueológico, que não pode mais fazer medo a ninguém.
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Eu creio, e creio profundamente, que o verdadeiro fascismo seja aquilo que os sociólogos chamaram muito gentilmente de “a sociedade de consumo”. Uma definição que parece inócua, puramente indicativa. E, entretanto, não é. Se observamos bem a realidade, e sobretudo se soubermos ler ao redor, os objetos, as paisagens, a urbanística, e, sobretudo, os homens, veremos que os resultados desta irrefletida sociedade de consumo são os resultados de uma ditadura, de um verdadeiro fascismo. No filme de Naldini nós vimos os jovens enquadrados, uniformizados… Com uma diferença, entretanto. Os jovens de então, no momento em que retiravam o uniforme e retomavam caminho para os seus vilarejos, para o campo, tornavam-se os italianos de cem, de cento e cinquenta anos atrás, como antes do fascismo.
O fascismo na verdade tornara-os palhaços, servos, e talvez em parte até convictos, mas não os havia tocado a sério, no fundo da alma, no seu modo de ser. Este novo fascismo, esta sociedade de consumo, ao contrário, transformou profundamente os jovens, tocou-os no íntimo, deu a eles outros sentimentos, outros modos de pensar, de viver, outros modelos culturais. Não se trata mais, como na época mussoliniana, de uma arregimentação superficial, cenográfica, mas de uma arregimentação real que roubou e transformou a sua alma. O que significa, em modo definitivo, que esta “civilização do consumo” é uma civilização ditatorial. Em suma, se a palavra fascismo significa violência do poder, a “sociedade de consumo” realizou de fato o fascismo.
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Uma função marginal. Por isso disse que reduzir o antifascismo a uma luta contra esta gente significa promover a mistificação. Para mim a questão é muito complexa, mas também muito clara, o verdadeiro fascismo, disse e repito, é aquele da sociedade de consumo e os democratas-cristãos se tornaram, até sem se darem conta, os reais e autênticos fascistas de hoje. Neste contexto, os fascistas “oficiais” não são nada além da consecução do fascismo arqueológico: e como tais não merecem consideração. Neste sentido, Almirante2, ainda que tenha tentado se atualizar, para mim é ainda mais ridículo que Mussolini. Um perigo mais real vem hoje dos jovens fascistas, da facção neonazista do fascismo que agora reúne poucos milhares de fanáticos, mas que amanhã podem se transformar em um exército.
Para mim a Itália hoje vive uma coisa análoga ao que ocorreu na Alemanha no alvorecer do nazismo. Também na Itália atualmente se assiste àqueles fenômenos de homogeneização e de abandono dos antigos valores camponeses, tradicionais, particularizados, regionais; fenômenos que foram o terreno no qual germinou a Alemanha nazista. Há uma enorme massa de gente que se reconheceu flutuante, em um estado de imponderabilidade de valores, mas que não conquistou ainda aqueles recém nascidos na era da industrialização. É o povo que está se tornando pequena burguesia mas que não é ainda uma nem é mais o outro. Para mim o núcleo do exército nazista se constituiu exatamente dessa híbrida massa, este foi o material humano do qual saíram, na Alemanha, os nazistas. E a Itália está correndo exatamente este perigo.
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Quanto à queda do fascismo, antes de tudo há um fato contingente, psicológico. A vitória, o entusiasmo da vitória, as esperanças renovadas, o sentimento da recuperada liberdade e de todo um novo modo de ser, tinham tornado os homens, depois da libertação, um pouco melhores. Sim um pouco melhores, pura e simplesmente.
Mas também há outro fato mais real: o fascismo que tinham experimentado os homens de então, aqueles homens que foram antifascistas e que tinham atravessado as experiências das duas décadas, da guerra, da Resistência, aquele era um fascismo em geral melhor que o de hoje. Vinte anos de fascismo creio que não tenham jamais feito as vítimas que fez o fascismo destes últimos anos. Coisas horríveis como os massacres de Milão, de Brescia, de Bologna não aconteceram jamais nestes vinte anos. Houve o delito de Matteotti é claro, houve outras vítimas de ambas as partes, mas a prepotência, a violência, a brutalidade, a desumanidade, a frieza glacial dos delitos praticados de 12 de dezembro de 1969 em diante nunca se viu na Itália. Eis porque está em movimento um ódio maior, um maior escândalo, uma menor capacidade de perdoar… Entretanto, este ódio se dirige, em certos casos com boa fé, e em outros com pura má fé, ao alvo errado, aos fascistas arqueológicos em vez daqueles que têm o poder real.
Atentemos às evidências. Eu tenho disso tudo uma ideia, talvez um pouco romanesca, mas que creio justa. O romance é este. Os homens de poder, e poderia talvez indicar os nomes sem medo de me equivocar muito – de qualquer modo, são alguns dos homens que nos governam há cerca de trinta anos – primeiro utilizaram a estratégia da tensão de caráter anticomunista; depois, passada a preocupação da insurgência de 68 e do perigo comunista imediato, exatamente as mesmas pessoas utilizaram a estratégia da tensão antifascista. Os massacres, então, foram provocados pelas mesmas pessoas. Primeiro fizeram o massacre da Piazza Fontana acusando os extremistas de esquerda, depois fizeram os massacres de Brescia e de Bologna acusando os fascistas e procurando refazer com pressa e fúria aquela virgindade antifascista de que precisavam, depois da campanha do referendum e depois do referendum, para continuar a gerenciar o poder como se nada tivesse acontecido.
Quanto aos episódios de intolerância que se tem invocado, eu não os definiria como episódios de intolerância. O ao menos não se trata da intolerância típica da sociedade de consumo. Trata-se na realidade de casos de terrorismo ideológico. Infelizmente as esquerdas vivem , hoje, em um estado de terrorismo, que nasceu no 68 e que continua ainda hoje. Não diria que um professor que, constrangido por certo gauchismo, não entregue o diploma a um jovem de direita seja um intolerante. Digo que é um aterrorizado. Ou um terrorista. Mas este tipo de terrorismo ideológico possui apenas um parentesco formal com o fascismo. Terrorista é um e é o outro, é verdade. Mas, sob os esquemas destas duas formas às vezes idênticas, é preciso reconhecer realidades profundamente diversas. Caso contrário se chegará inevitavelmente na teoria dos “extremismos opostos”, ou mesmo no “stalinismo igual ao fascismo”.
Mas denominei estes episódios como terrorismo e não como intolerância porque, para mim, a verdadeira intolerância é aquela da sociedade de consumo, da permissividade concedida do alto, desejada pelo alto, que é a verdadeira, a pior, a mais ofensiva, a mais fria e impiedosa forma de intolerância. Porque é a intolerância mascarada de tolerância. Porque não é verdadeira. Porque é evocável toda vez que o poder sinta necessidade dela. Porque é o verdadeiro fascismo, de onde então surge o antifascismo de fachada: inútil, hipócrita, substancialmente agradável ao sistema.

* Entrevista a Massimo Fini transcrita para o jornal “L’Europeo”. Podem-se observar repetições típicas e construções sintáticas típicas da oralidade, que, entretanto, foram mantidas na versão publicada em livro.
** Tradução: Alexandre Pilati a partir da versão publicada em: PASOLINI, P.P. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 2013. pp. 232-236.
1 Fascista é um filme de 1973 dirigido por Domenico (Nico) Naldini, escritor, poeta e diretor italiano. O filme é construído a partir da montagem de imagens do Instituto LUCE, um potente instrumento de divulgação e propaganda do regime de Mussolini.
2 Girogio Almirante. Político de direita, que à época era o Secretário do Movimento Social Italiano.