Em matéria publicada em O Estado de S. Paulo deste domingo, 03/05/15, o coordenador da força-tarefa da operação “lava jato”, procurador Deltan Dallagnol, declarou que os integrantes da referida operação estariam em uma “guerra contra a corrupção”. Para além do sensacionalismo midiático que tem caracterizado a atuação dos protagonistas da “lava jato” desde o princípio, o uso do termo “guerra” revela algo muito mais preocupante e que deveria inquietar todos aqueles que se dizem democratas neste país.

Afinal, a guerra é, por definição, um estado de exceção no qual todas as regras que regem nosso convívio cotidiano estão em suspenso, em particular as normas jurídicas que protegem as liberdades individuais. É sintomático que todos os responsáveis por violações aos direitos humanos, vinculados ao aparato repressivo das ditaduras sul-americanas, tenham sempre justificado suas ações com o mesmo argumento: “estávamos em uma guerra e precisávamos vencer.”. Do mesmo modo, a justificativa das violações perpetradas pela polícia nos morros do Rio de Janeiro de hoje responde à mesma lógica, a da “guerra ao tráfico”, ao “crime organizado”, etc. Na guerra o único objetivo é a vitória total contra o adversário, seu aniquilamento, valendo para isso, eventualmente, passar por cima de alguns “inocentes” se este for o custo necessário.

Isso me leva a um segundo ponto. A guerra se rege pela lógica do “amigo/inimigo”, ou seja: não há lugar para a neutralidade, se não se está conosco, se está com o adversário. Essa lógica foi enunciada com a maior clareza pelo ex-presidente estado-unidense George W. Busch, após o 11 de setembro, quando seu governo declarou a “guerra ao terrorismo”. Aliás, é a própria lógica do “amigo/inimigo” que permite a imposição do estado de exceção, no caso representado pelo famoso “patriot act” – “lei patriótica – que permitia ao governo dos EUA violar todas as garantias individuais em nome do objetivo maior de derrotar o “inimigo”, cujos resultados já são sobejamente conhecidos.

Uma terceira e última linha de consideração, derivada das duas anteriores, remete á arqui-conhecida frase do maior teórico ocidental da guerra, o marechal prussiano Clausewitz, segundo a qual “a guerra é a política por outros meios”. Séculos antes, o teórico chinês da “Arte da Guerra”, Sun Tzu teria feito a formulação inversa: “a política é a guerra por outros meios”. Não quero aqui discutir as diferentes implicações dessas doutrinas ocidental e oriental da atividade bélica. Quero apenas sublinhar o que subjaz de comum a ambas: quem faz a guerra, necessariamente faz política. Assim, quem se propõe uma “guerra” de qualquer tipo está se dispondo a empregar uma linha estratégica qualquer para disputar o poder, objetivo maior da política.

Diante do exposto, a frase do procurador Dallagnol não poderia ter sido mais reveladora da natureza da operação que coordena. Em primeiro lugar, ficam justificadas todas as arbitrariedades e ilegalidades jurídicas perpetradas desde seu início, já amplamente denunciadas por diversos juristas. Em segundo lugar, fica previamente desqualificada e estigmatizada qualquer crítica pública à operação, rotulada de saída como “cúmplice” ou “aliada” da corrupção e dos corruptos. Por fim, se legitima o estabelecimento de um sistema de alianças – setores da polícia federal, do ministério público, do judiciário, a grande mídia e a oposição partidária conservadora – para desalojar os “corruptos” do poder e estabelecer uma tutela “de fato” sobre a democracia brasileira, com o objetivo de “saneá-la”.

Fica assim caracterizada a guerra. Resta saber se o inimigo é de fato a corrupção. Afinal, o sistema de “dois pesos e duas medidas” do estado-maior dessa guerra já ficou caricaturalmente óbvio: do não-indiciamento de Aécio Neves ao “sumiço” de uma testemunha que deporia contra Antônio Anastasia, só para ficar nos exemplos mais absurdos. O artigo do ex-governador gaúcho Tarso Genro da semana passada deixa claro qual é o alvo desta guerra: o Partido dos Trabalhadores (PT) e todo o seu legado político. Não há dúvidas de que membros deste partido devem contas à justiça por atos praticados no governo. Porém daí a proscrever ou destruir o principal partido popular do país por causa disso é algo que escapa inteiramente ao escopo do direito e entra no escopo da guerra, mas cujo inimigo não é a corrupção, mas sim a própria democracia brasileira e seus avanços nos últimos anos.

O pior dessa situação é que, ao falar em “guerra”, o procurador Dallagnol e seus aliados midiáticos querem nos impor uma lógica, na qual nos colocando contra eles, nos colocaríamos a favor da corrupção. Se não quisermos ser esmagados em um conflito tão desigual, só nos resta procurar desconstruir a lógica da guerra, desmascarar seus “comandantes”, expor seus reais objetivos e defender a democracia.

Publicado em Carta Maior