Cristaliza-se, a custo de golpes diários de veneno conservador desferidos na mídia e nas redes sociais, a ideia de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Panelaço, vaias, a agendada “marcha” do dia 15, que promete mobilizar reacionários de várias matizes diversos, são partes de uma “onda” que parece precisar de poucos ingredientes a mais para se tornar consenso nos setores médios da sociedade. Não há como negar que o começo do segundo mandato da presidenta apresenta alguns problemas e falhas, especialmente no que se refere à maneira como foram conduzidos os “ajustes Levyanos” e às atrapalhadas estratégias de comunicação do Governo Federal. Mas, quase todos sabem, abrir um processo de impeachment de uma presidente eleita democraticamente, com pouco mais de dois meses de mandato e sem nenhum indício sequer de que ela tenha cometido crime de responsabilidade é um despropósito descomunal.

O jogo de cena do PSDB, que desapoia apoiando o impeachment de Dilma, deixa clara a estratégia dos setores que desejam bagunçar o coreto, para fazer valer o que realmente interessa a eles. De novidade, sublinhe-se a facilidade com que, nos últimos tempos, a linguagem de desfaçatez da elite tem ganho o tempero da ironia mordaz. Basta ver como fala o presidente nacional do partido, Aécio Neves, que, ao falar do governo e das manifestações, não mais se dá ao trabalho de disfarçar o escárnio que faz da democracia. É mais do que a falta da compostura republicana que se esperaria em um “nobre senador”. Ele ri porque sabe que um impeachment é quase impossível, mas que a preservação dos interesses de classe que ele representa pode estar garantida, enquanto a barafunda travar algumas reformas que realmente interessam ao país.

A democracia brasileira é frágil, malgrado diversos avanços recentes, e não consegue garantir aos cidadãos mais oprimidos o mínimo de defesa em relação à força do capital. E isso nem sequer em termos de ideologia. Ao contrário do que muita gente pensa, não está apenas no voto, que iguala o valor dos cidadãos, o valor do “governo pelo povo”. O sonho da democracia seria, muito além disso, preservar os direitos e as liberdades essenciais da povo (os quais por sua vez precisam sempre se renovar) do assédio violento e selvagem das parcelas da sociedade que detêm o poder sobre os meios de produção. Ou seja, uma sociedade democrática é aquela em que as instâncias de democracia garantem, cada vez mais, e em processo, uma reação coletiva ao achaque à vida dos cidadãos por forças históricas que lhe são alheias e que lhes exaurem as possibilidades de realização plena da própria existência. A democracia liberal mente ao dizer que isso é plenamente possível nos limites do sistema capitalista: essa é a sua ideologia. Mas, se é que me perdoam o acento tautológico da afirmação: no Brasil até a mentira da democracia liberal é mentirosa. Para quem tiver ainda dúvida, sugiro o confronto do escarninho farsesco de Aécio Neves com o conceito de “ideias fora do lugar” do mestre Roberto Schwarz. Na ironia aeciana, no seu riso cínico (onde dorme, à espreita, um fantasma patriarcal, um vampiro da casa-grande) está a nota específica da democracia à brasileira. Lá está o típico da sua imperfeição. É mirar e ver.

Gostaria de tentar raspar um pouco a casca do riso e da mentira dos democratas brasileiros fazendo um exercício de reflexão sobre o que realmente interessa no meio desse processo de criação de um consenso bovino em torno da ideia de impeachment da presidente eleita. Primeiramente, não interessa um impeachment a quem realmente está comandando tal processo, isto é, a velha elite que sonha com uma versão brejeira do golpe paraguaio. Como bons estrategistas (não, a direita não é burra como repetem alguns esquerdistas que se apressam a querer levar à lona, sem argumentos, o adversário que domina esquivas refinadas), os comandantes do golpismo (capitalistas viciados em dinheiro público, donos de grandes empresas de comunicação, políticos bem nascidos viciados em “esquemas” – e seus respectivos lacaios) insuflam a ideia da deposição “democrática” da presidente para, na verdade, acuar o governo. E, entre um brinde e outro, uma ou outra ida a Miami, avaliam que uma renúncia já seria grande coisa…e, pasmem!, seria uma saída mais democrática ainda. Em suma, sob o disfarce manquitola da ética, do discursinho de almanaque protoneoliberal (um economês irrefletido e “sem gente”, repetido como mantra em nossas abjetas escolas de Economia), estão duas grandes questões: uma mesquinha e pequena, a outra mesquinha e do tamanho da nossa história.

Vamos ao que interessa? O que interessa, no miúdo, é retirar o PT do poder. Não é outra a fissura que embala, há anos, parcelas significativas da elite brasileira, para as quais o PSDB é a corriola de estimação, aquela que concentra o número mais expressivo dos tétricos títeres que servem aos interesses do perverso mundo da ideologia neoliberal. O que interessa, no graúdo, é fazer o maior barulho possível (e quando a elite brasileira faz barulho, ele nunca é de cepa shakespeareana; nunca é “muito barulho por nada”). Nossa elite faz barulho para que se frustrem tentativas de aperfeiçoamento da democracia brasileira, no sentido da emancipação cada vez maior do jogo político e da classes sociais do “passo de parafuso” da dominação capitalista. Quem olhar com alguma atenção para a nossa história, verá que, sempre que se avizinharam no horizonte, próximo ou distante, reformas que ameaçaram privilégios estruturantes do processo histórico brasileiro, a elite, que deles se beneficia, arvora-se a defender “a democracia” travestindo-se demoniacamente de agente modernizador do país, contra o retrocesso e a favor da “ética”. E ela luta, espuriamente, na verdade, por mudar para manter a essência histórica do privilégio.

O que não interessa a essa elite, e que, se for conseguido, será a grande vitória do delírio em torno do impeachment de Dilma Rousseff, é desviar o caminho da mobilização popular em torno de reformas essenciais para a verdadeira modernização da democracia brasileira. Não interessa a esses que vão insuflar os brasileiros a irem às ruas no dia 15 a reforma política. Não interessa a esses que vão insuflar os brasileiros a irem às ruas no dia 15 a reforma tributária via taxação radical das grandes fortunas. Não interessa a esses que vão insuflar os brasileiros a irem às ruas no dia 15 a democratização da mídia, com a quebra do monopólio de algumas poucas empresas que pautam o país em defesa de seus próprios interesses. Não interessa a esses que vão insuflar os brasileiros a irem às ruas no dia 15 o combate sério à sonegação de impostos. Não interessa a esses que vão insuflar os brasileiros a irem às ruas no dia 15 a forma como os dispositivos de controle, investigação e punição da corrupção têm se tornado mais eficientes no Brasil nos últimos anos. Não interessa a esses que vão insuflar os brasileiros a irem às ruas no dia 15 a Petrobrás, a não ser como fonte de propina (quanto não levariam numa possível privatização?). Se nada disso interessa a eles, é claro que lhes interessa ver o circo pegar fogo, desde que a sua própria cumbuca esteja a salvo da histeria. Qualquer tremor, transformado instantaneamente em terremoto pela mídia que é cúmplice desse movimento porque diretamente interessada nele, já vale. Vale desestabilizar o governo, vale tentar derrubar o governo, vale travar o Congresso. Vale bater panela e vale, no dia Internacional Da Mulher, gritar “vaca” dos mais altos andares da sociedade em varandas de regalia.

Nada é mais triste que um povo que se transforma, aos poucos e acriticamente, em um exército que vai ser encarregado de dizimar o próprio futuro. É isso que interessa àqueles que historicamente sempre estiveram no comando da mentira da mentirosa democracia brasileira. Portanto, o grande risco não é o PT perder o poder. Este se ganha, se perde; isso é do jogo da democracia. O que interessa é que podemos ser levados, como manada de ruminantes, de volta para o eterno brejo histórico brasileiro, de onde ousamos, nos últimos anos, querer sair. O que interessa é que podemos perder a chance que nos proporcionou a conjuntura das contradições históricas de nosso próprio momento. O que interessa é que podemos perder a hora e a vez de mobilizar a sociedade, não contra o golpismo, que isso é um dever, mas a favor da modernização da nossa democracia, despindo-a mais um pouco dos velhos ranços de país periférico. Por isso, vamos às ruas e ao que interessa: nosso mais irado repúdio à dança macabra a que a sorridente e velha elite nos está empurrando.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com