A cada aniversário da primeira intenção de golpe de Estado deste século, existe uma matriz midiática que gira e gira em torno de um só objetivo: apontar como responsável absoluto o mesmíssimo Rafael Correa. E consequentemente torná-lo culpado pelas mortes e pelos feridos produzidos por essa revolta policial que terminou em um sequestro e em uma intenção de magnicídio.

Inclusive, essa matriz se torna mais evidente agora, quando alguns opositores e intelectuais da direita recorrem constantemente à mesma frase: “Quando tudo isso acabar… começarão processos judiciais dentro e fora do país”.

No dia 30 de setembro de 2010, houve uma confluência de ações, impedindo-nos de pensar que o que ocorreu foi apenas um ato isolado de um grupo de policiais a partir de uma campanha de desinformação geral na imprensa privada e comercial: agitação social, sublevação de tropas, fechamento violento da Assembleia Nacional, suspensão de aulas, interrupção de voos, bloqueio parcial de estradas, saques na cidade de Guayaquil, insegurança pública, supostas marchas e protestos políticos, e convergência midiática sob uma mesma cartilha.

Olhando em perspectiva, o acontecimento revelou uma cadeia de fatos nada fortuitos, com uma enorme carga de desestabilização que não encontrava um eixo central, a partir de um grupo que pudesse desatar e revelar o objetivo final.

Apesar de a resposta mais contundente ter sido a da própria população – quando compareceu em massa para resgatar seu presidente –, isso ficou de lado na avaliação histórica feita por um setor da mesma oposição e dos meios nacionais e estrangeiros afiliados à SIP.

O Equador ficou famoso no final do século passado e nos primeiros anos deste ao defenestrar três mandatários após contundentes mas rápidas mobilizações populares (fórmula que pareceu inspirar os autores intelectuais do 30S). Da mesma forma, Rafael Correa foi defendido e resgatado em uma ação massiva, intensa e cívica que nunca se havia registrado na história do país, inclusive quando foi assassinado o líder mais popular de toda a história – Eloy Alfaro, em 1912.

O estopim apontado como o pano de fundo para o ocorrido foi o descontentamento policial por conta da nova Lei de Serviço Público, quando, na realidade, a revolta provocada por mandos médios e de hierarquia menor foi uma resposta acumulada a sérias reformas governamentais implementadas para a melhoria institucional e a eliminação de certos privilégios que só garantiram melhor renda para alguns em prejuízo da maioria. Além disso, a revolta dos uniformizados não foi uma iniciativa exclusiva deles, mas teve a participação de setores políticos, empresariais e gremiais de oposição, como se revelou posteriormente por meio de reuniões reservadas e realizadas com antecedência, além de pasquins, e-mails e declarações para instigar o caos no ordenamento público.

Quais são as lições do 30S de 2010 para o presidente em 2015? A fundamental, conforme provam pesquisas e expressões públicas: os cidadãos valorizam a democracia como o sistema mais adequado para desenvolver as mudanças realizadas e em processo de realização; reivindicam a paz social como mecanismos de convivência harmônica; descartam uma oposição estabilizadora; e questionam o modo de atuar de uma empresa coligada com esses atores políticos que, desde 2007, tentam minar a legitimidade do governo.

E talvez haja uma lição importante para o país: a construção de uma sociedade equitativa, igualitária e democrática (para tornar realidade o paradigma do Bom Viver) não passa apenas por ganhar processos eleitorais, mas também por ressaltar os mecanismos reais de opressão e de dominação com os quais atuam grupos conservadores a fim de entender a lógica de suas atuações camufladas de liberalismo e garantias constitucionais.

Na lógica tradicional dos golpes de Estado no Equador, os militares sempre se representaram como o que aqui chamam de “garantidores da democracia”. Por que isso não aconteceu no 30S? Possivelmente, por duas razões, e que alguns altos funcionários reconheceram: a alta popularidade do presidente Correa e porque foram beneficiados pelas mudanças.

Dessa forma, na hora desta avaliação em perspectiva, não se pode descartar que está em marcha ou em gestação uma ameaça concreta de golpe brando, agora que dirigentes da extrema esquerda (agora aliada a sua tradicional inimiga, a direita oligárquica e bancária) prognosticam uma queda ou desestabilização “a qualquer momento” e com a participação dos “mais amplos setores democráticos”. Por isso, apelam para os mais descabelados argumentos, como de que existe perda de popularidade, insatisfação geral e, sobretudo, uma perda de apoio popular, quando na realidade o que fazem agora é cimentar essa tese por meio de diversos porta-vozes e supostos líderes de opinião a fim de criar o mesmo ambiente de desconcertamento e incerteza nas classes médias.

Orlando Pérez é diretor do El Telegrafo

Tradução de Daniella Cambaúva para Carta Maior