No último dia 31, foi dia de Drummond e da grande vitória de Dilma. Sim, foi dia também da grande vitória de Dilma, que continua a ecoar e continuará a fazer eco pelo menos nos próximos 30 anos. Mas como ligar dias de Drummond e de Dilma na aparência tão distantes?

Comecemos pelo poema “Brinde no Juízo Final”, do livro Sentimento do Mundo, publicado em 1940:

Brinde no Juízo final

Poeta de camiseiro chegou vossa hora,
Poetas de elixir de inhame e tonofosfã,
Chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,
Poeta jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.

Em vão assassinaram a poesia nos livros,
Em vão houve putsch, tropas de assalto, depurações.
Os sobreviventes aqui estão poetas honrados,
Poetas diretos da Rua Larga.

(As outras ruas são muito estreitas),
Só nesta cabem a poeira,
O amor
E a Light

Mais de uma pessoa já observou que “Brinde no juízo final” é modernista e homenageia os poetas populares contra os acadêmicos, pois a poesia não é feita só de temas nobres, consagrados, mas de termos e temas banais, etc. etc. Mas eu observo que essa elevação da poesia das ruas tem a ver com o tempo de tentativas de golpe, e Drummond usa a palavra da época, “putsch”, e mais fala em tropas de assalto, depurações, que podemos chamar agora de recontagem de votos. O poema escrito quando subia o nazifascismo, no Brasil e no mundo, tem a ver com os dias de hoje, dias em que sobrevivem os poetas honrados, onde cabem o amor, a poeira das ruas e as grandes manifestações da cor vermelha.

Vamos para outro poema  exemplar, “Inocentes do Leblon”, do mesmo livro Sentimento do Mundo: 

Inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
Trouxe imigrantes?
Trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

Sempre se fala que o “inocentes” se refere às pessoas que desejam ignorar a realidade e por isso fingem e se aproveitam da alienação. Nada mais recente. Vocês se lembram dos últimos inocentes do Leblon, que em reportagem da Folha diziam querer viajar para longe do Brasil, para longe do povo pobre e burro do Nordeste? Pois é, em 1940 Drummond já falava nessa classe média que vive no Brasil com os olhos em Miami. Para eles, bem que podíamos dizer, agora e já, inocentes, go home.  E o home deles é o lar nos Estados Unidos, não aqui.

Agora vamos para um magnífico, a um eterno, chamado “Os Ombros Suportam o Mundo”:

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação”.

Em geral, se observa que em “Ombros Suportam o Mundo”, o poeta não se importa com a  própria vida, porque maiores são os problemas do mundo, dos quais ele tem uma dolorosa consciência. Dizem que para o poeta a sua vida se impõe como uma ordem: ela deve continuar, para enfrentar a realidade de um mundo tão leve, afinal, quanto a mão de uma criança. Mas não, amigos: o chamado do poeta não é bem pela própria vida, é pela vida de todos nós. Ele chega a ironizar com os mais delicados, que preferem morrer em especial solidão. Chegou um tempo que não adianta morrer, diz Drummond. A defesa da vontade popular é uma ordem.

E vamos para o máximo ponto: “Sentimento do Mundo”.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite”.

Os versos iniciais que falam “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo” foram citados no discurso de Miguel Arraes, quando tomou posse em seu primeiro governo em Pernambuco. Que distância para hoje, não do poeta, mas da poesia de Drummond para esse PSB que se aliou à direita brasileira com Aécio! Para quê Drummond neste tempo de pragmatismo traiçoeiro? É claro que não podemos nos conformar com essa fatalidade, pois temos na memória um tempo “cheio de escravos, que por minhas lembranças escorrem”.

O diabo é que para um quadro tão bonito de afirmação da democracia, a direita brasileira não se conforma. Quer um golpe de Estado. Penso que ela não aguenta ter de lembrar e ouvir todos os dias, nas ruas e no mundo, um poema do livro José, de 1942, nestes nocauteantes versos:

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros…

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.

Ou como o povo traduziu o poema “José” nestes dias: “perdeu, playboy”. Ganhamos todos, dos muitos nordestes de todo o Brasil.