Não dá pra saber se aconteceu em 2008, quando ela renunciou ao ministério do Meio Ambiente. Ou se foi logo depois, quando desistiu também do PT. Pode ter sido quando se filiou ao PV e disputou a presidência da República em 2010. Ou ainda nos anos seguintes, quando tentou, sem sucesso, criar seu partido, ou melhor, sua Rede. Há quem acredite que a perda é mais recente e se consumou com a queda do avião naquele fatídico 13 de agosto. Pode também ser algo mais recente ainda, de poucas semanas atrás, quando ela lançou seu programa de governo. Ou quem sabe é fruto de um processo longo de degenerescência que foi se agudizando a cada um destes episódios. Enfim, é difícil localizar no tempo e no espaço quando a coisa toda aconteceu. Mas o fato, a notícia triste é que perdemos Marina. Ela já não está mais entre nós.

Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima, a menina de saúde frágil que labutou no seringau de Bagaço, no Acre, alfabetizou-se aos 16 anos, conheceu a atividade política através das Comunidades Eclesiais de Base, militou no Partido Revolucionário Comunista, lutou ao lado de Chico Mendes na defesa da floresta e dos direitos de seu povo, filiou-se ao PT, tornou-se professora e sindicalista, ajudou a fundar a seção acriana da Central Única dos Trabalhadores (CUT), liderou lutas populares e foi eleita vereadora, deputada estadual e senadora por dois mandatos, sempre fiel ao projeto político que abraçou ainda jovem… Essa Marina não conseguimos mais encontrar. De sua história exemplar de superação ficaram apenas as fotos, o registro histórico e já não é mais possível reconhecer a herança dessa trajetória de esquerda na Marina que vemos hoje pedindo votos para a Presidência. Como um camaleão, a Marina vermelha de outrora aparece agora tingida de um tom cada vez mais sombrio de verde-oliva. Verde da floresta, mas também da grana e da caserna.

Algum sonhático mais otimista poderia questionar: Será que isso não é apenas camuflagem? A guinada à direita não é apenas uma estratégia para ganhar a eleição e, depois de eleita, Marina voltará a ser a velha combatente das boas causas que nós conhecemos no passado? Outro marineiro poderia complementar a dúvida lembrando que em 2002 Lula também teve que assinar a famigerada Carta aos Brasileiros, comprometendo-se a manter intocados os interesses da elite financeira. E mesmo assim fez um governo avançado, comprometido com a redução das desigualdades.

Infelizmente, a comparação não se sustenta. O que se conclui das falas, das propostas, das posições e dos apoios que a Marina Silva candidata tem exposto aos brasileiros é que ela mudou definitivamente de lado. O projeto de Brasil ao qual Marina está abraçado é muito mais comprometedor que a Carta de rendição que Lula entregou à elite nacional em 2002.
O que a candidata da Rede-PSB oferece à Nação não é apenas uma carta, é todo um programa de governo que pode ser interpretado como um atestado nítido de aliança com a oligarquia financeira nacional e internacional. E todos sabemos para quais caminhos essa adesão leva.

A rumorosa proposta de independência formal do Banco Central é apenas a parte mais visível de um cabedal de compromissos que a desaparecida Marina petista jamais levaria a cabo.
Neste cabedal preocupam também as sinalizações de retrocesso em relação à política externa. O experiente diplomata Samuel Pinheiro Guimarães é claro ao advertir: “Os estrategistas dos Estados Unidos seguramente estão de acordo com as diretrizes da política externa defendida pela candidata Marina Silva. Se ela for eleita, será a vitória de um modelo diplomático similar ao que tivemos nos anos 90”.

O abandono dos antigos compromissos com a reforma agrária e com as lutas dos trabalhadores do campo é outra demonstração cabal do apagão político de Marina. Mas é na esteira dos direitos humanos e trabalhistas que a perdição se consuma. Somar-se às vozes que fomentam a homofobia foi grave sinal. Pior ainda foi firmar por escrito no programa de governo a defesa da terceirização no mercado de trabalho. Sobre o tema, o presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Adilson Araújo, fez a seguinte declaração: “As centrais de forma unitária vem mobilizando os trabalhadores no enfrentamento a toda e qualquer investida que vise precarizar as relações de trabalho e flexibilizar direitos e conquistas. A matéria do PL 4330 que pressupõe a terceirização de forma irrefreável precisa ser combatida veementemente pela classe trabalhadora. No calor da disputa dos projetos de governo, tornar-se-á imperativo que os trabalhadores mantenham-se mobilizados para que não haja mais nenhum tipo de prejuízo”, declarou Araújo. A antiga e sumida Marina sindicalista, fundadora da CUT, parceira de Chico Mendes, estaria de que lado no front desta batalha?

A resposta a estes questionamentos sempre desemboca na mesma conclusão: perdemos Marina.O boletim de ocorrência deste desaparecimento foi lavrado, de forma constrangedora, no último dia 9 de setembro, em São Paulo, mais precisamente na luxuosa sede da Associação de Lojistas dos Jardins, bairro nobre da capital paulista. Em reunião com alguns dos principais coordenadores da campanha de Marina Silva, a presidente da Associação de Lojistas, Rosangela Lyra, ex-diretora da Dior no Brasil, declarou: “Marina tinha algumas ideias mas a gente acredita que, com o passar dos anos, ela pode ter mudado”.

Walter Feldmann, coordenador da campanha de Marina, não só concordou com a afirmação da socialite como ofereceu aos representantes do pior da elite nacional várias outras pistas da conversão de sua candidata. Chegou a afirmar que no conceito de “democracia de alta intensidade” que a Rede defende não há espaço para “organizações de esquerda”. E a certa altura da reunião, resumiu: “Se Marina for eleita, muda tudo!”. Nós, antigos companheiros da extinta Marina petista, sabemos bem disso.

A esquerda, os trabalhadores, os defensores dos direitos humanos, os que querem um Brasil soberano, democrático e justo perdemos Marina. Mas não podemos e não vamos perder a luta de ideias muito menos a disputa eleitoral.

*Jornalista e editor-executivo da revista Princípios