Abordo o convite para participar destes ‘Diálogos sobre Política Externa’ como um chamado a prestar um serviço. Um serviço que possa de algum modo auxiliar no desenho de uma política externa que melhor se coadune com os valores e os interesses do Brasil, e auxiliar no desenvolvimento dos meios para a execução dessa política externa.

Faço, por isso, aqui, a escolha de não tentar a analise das temáticas materiais, por assim dizer, da história do Oriente Médio ou da conjuntura que vive a região. Essas discussões da substância são de importância vital e por isso não se deve compreender mal a escolha de não empreendê-las aqui. Se quisermos atuar no Oriente Médio, teremos que nos dedicar diuturnamente ao seu estudo e à sua compreensão, e mais ainda quando tivermos que decidir o direcionamento de nossa atuação. Mas penso ser preciso antes, agora, pensarmos a nossa atuação presente e as decisões que se impõem para o desenho de nossa política externa futura.

Dois equívocos
Penso ser necessário, antes de avançar no que pretendo dizer sobre a nossa política externa para o Oriente Médio, lidar com dois equívocos, ou duas reduções, usuais no nosso debate pátrio, em relação a esse tema.

A primeira redução é aquela que pensa a nossa atuação, pregressa e futura (possível), apenas em termos de influência sobre o chamado conflito árabe-israelense ou palestino-israelense e de nosso potencial papel em sua resolução.

Aqui tampouco deve haver equívoco: estou pessoalmente convencido de que a questão palestina ou, se quisermos, e talvez de modo mais apropriado, a tragédia palestina, fruto do desterro e da ocupação, é o problema crucial, resistente, incontornável do cenário do Oriente Médio. Mas, na medida em que esse tema, por sua centralidade e por sua permanência, está conectado a praticamente todas as demais questões da região, e a tantas outras para fora dela, é inútil, além de ingênuo, tentar compreendê-lo em isolamento e imaginar que se poderá atuar em relação a ele sem conhecer profundamente o entorno – geográfico e temático – e sem posicionar-se também em relação a esse entorno.

O segundo equívoco, intimamente ligado a essa primeira redução, é a tendência a superdimensionar o papel das diásporas, árabe e judaica, presentes no Brasil. Um aspecto do equívoco é pensá-las como blocos homogêneos que não são. Um outro é representar o conflito como essencialmente de natureza étnico-religiosa, o que é uma fantasia. E um terceiro – este é, na verdade, mais um risco do que um erro – está em acreditar que a participação ativa das diásporas servirá a incrementar as capacidades do Brasil para participar efetivamente na construção de uma solução e, ao final, da paz, quando o risco também existe de que essa participação ativa sirva para, ao contrário, atar e confundir a atuação do país.

É um fato que Israel e a diáspora que sustenta as opiniões de Israel querem sim que o Brasil entretenha com aquele país as melhores relações possíveis, mas é um fato também que não interessa em absoluto a Israel que o Brasil seja um participe no processo de confrontação e de discussões.
Não há dúvida de que as diásporas devem fazer parte do processo, já que não deve haver um isolamento da política externa em relação ao seu tecido social interno – muito pelo contrario, aliás – e a preocupação é compreensível porque afinal de contas tampouco está a política externa desconectada da política interna e das forças que nesta atuam.

Mas a política externa em relação ao Oriente Médio deve ir muito além daquilo que possam querer ou advogar as diásporas.

O fato é que, apesar de as comunidades conviverem em paz e harmonia no Brasil, o que leva à ideia de que essa convivência poderia servir de modelo para a construção da paz, ou mesmo para que seja ao menos imaginada, o fato é que os representantes tradicionais dessas comunidades – ainda, mais uma vez, que a sua representação como blocos monolíticos seja equivocada – tendem a querer do Brasil uma postura mais favorável ao campo de sua preferência nesse confronto – que também, mais uma vez, é normalmente representado de modo erroneamente simplificador.

Aproveito para encerrar essa discussão sobre os dois equívocos ou reduções e fazer a transição para o meu argumento central com a seguinte coisa: é um fato que Israel e a diáspora que sustenta as opiniões de Israel querem sim que o Brasil entretenha com aquele país as melhores relações possíveis, mas é um fato também que não interessa em absoluto a Israel que o Brasil seja um participe no processo de confrontação e de discussões – processo de negociação ou de paz parecem conceitos inapropriados para descrever a realidade. Já os palestinos gostariam muitíssimo de nos ver envolvidos. Isto não se deve (apenas?) ao fato de que o Brasil seria percebido como favorecendo um dos lados, mas, sobretudo, porque a constituição do clube envolvido hoje no processo favorece Israel e desfavorece os palestinos – não é preciso olhar para além do papel e da posição dos Estados Unidos para saber isso.

Assim, na verdade, uma parte desse conflito particular – sempre central e sempre conectado a outros tantos temas – espera do Brasil que ele esteja ausente e a outra espera que ele esteja presente.

Entre presença e ausência
E esta é a escolha fundamental que o Brasil é convidado a fazer. Trata-se de uma escolha que carrega conseqüências determinantes para o nosso futuro como nação. Porque o fato é que a escolha que faremos em relação a estarmos ou não no Oriente Médio dirá do nosso lugar no mundo, do tamanho que teremos nele e do modo como pretendemos preencher nosso espaço. Mais explicitamente, não se pode ser grande ficando de fora daquela região do mundo. A opção de ausência é uma de timidez se não for de pequenez.

Nos últimos anos, começando já nos primeiros dias do primeiro mandato do Presidente Lula, o Brasil parecia ter feito claramente a opção de participar ativamente dos processos políticos que fervilham no Oriente Médio, além de ter apostado acertadamente no incremento da nossa presença econômica na região.

Nesses anos, o Brasil parecia fazer prova de algo que eu venho chamando “vontade de poder” (confesso ter furtado a expressão de Nietzsche que, penso, se referia a outra coisa bem diferente). O Brasil parecia finalmente acreditar no potencial que representavam seu território, sua população, sua economia, sua credibilidade no que diz respeito ao direito e às relações internacionais. E parecia ter ambições, sem as quais, diga-se, não são possíveis os feitos, grandes ou pequenos.

Essa vontade de poder parecia acompanhada também do incremento dos meios à nossa disposição para sustentar as ambições e para pagar os custos que correspondem a um ativismo maior.

Parece no entanto – e, devo dizê-lo, infelizmente – que essa vontade de poder perdeu força nos últimos poucos anos. Uma hesitação, um certo número de recuos em relação a apostas ousadas anteriores, tudo isso só poderia vir a ser percebido como fraqueza lá onde os atores mais relevantes fazem altas apostas em jogos arriscados.

A direção, ou a orientação, que queremos ou devemos dar à nossa política externa, em relação ao Oriente Médio, mas também para além dele, é certamente a questão fundamental entre todas
A única mensagem relevante que tenho a transmitir, na medida apenas em que sou convidado a me expressar sobre isso, é a de que precisamos reafirmar – por discursos, mas sobretudo por atos – a nossa opção de presença no Oriente Médio, ou seja, uma opção por nos transformarmos em um ator apto a pesar sobre o destino daquela região e não meramente um ator para quem a região é relevante. Se não o fizermos, todo debate sobre as nossas ações ou nossa política para aquele lugar do mundo será desimportante para o funcionamento do mundo e interessará apenas ao nosso funcionamento próprio.

De todo modo, qualquer que seja o tamanho que decidamos ter, e especialmente se nos resolvermos pela ambição que eu proporia, há ao menos três coisas que vale discutir: a direção da nossa política para o Oriente Médio, os meios de que dispomos ou que usaremos para a nossa atuação e os saberes que precisamos construir, acumular e continuamente desenvolver sobre a região.

A direção
A direção, ou a orientação, que queremos ou devemos dar à nossa política externa, em relação ao Oriente Médio, mas também para além dele, é certamente a questão fundamental entre todas.

Ao longo destes anos de que vim falando, fez-se – ou se quis fazer – uma política externa que foi ou poderia ter sido qualificada como nova, progressista, alternativa, contra-hegemônica. Esse viés complementava e se combinava com a vontade de poder e essa combinação deu lugar à expressão “uma política externa ativa e altiva.”

Digo que o viés se combinava com a vontade de poder, que comandava a opção pela presença, porque não deve restar dúvida: a opção pela ausência ou pela participação tímida também carrega um viés, já que em alguma medida implica em que, por não termos os meios, não deveríamos nos preocupar com temas que já são cuidados a contento por outros.

Sem fazer referência ao que pode haver de ideológico no viés, gostaria de insistir no que me parece fundamental: uma política alternativa, contra-hegemônica, diz essencialmente que nós queremos entender o mundo com as nossas próprias mentes, enxergá-lo com nossos próprios olhos e falar e agir nele com voz própria.

Para além dessa autonomia, sem a qual não faria sentido querer ser grande nem se poderia sê-lo, há um outro conjunto de traços que caracterizam o nosso viés e que se pode resumir assim: uma opção pela justiça, quer seja através do direito internacional – uma tradição brasileira, diga-se, mais antiga do que a nossa política ativa e altiva –, quer seja através do diálogo aberto e permanente com todos, quer seja por meio da luta contra a pobreza e a fome. Nesse desejo por um mundo melhor, o Brasil é honesto, e o mundo tende a lhe reconhecer este mérito.

Mas, e aqui está uma segunda mensagem que penso seja importante: querer um mundo melhor, ainda que sinceramente, não basta para adentrar o restrito clube dos que jogam o jogo de influenciar os destinos do mundo. É preciso que o Brasil identifique e/ou construa os seus interesses e identifique a política que protegerá esses interesses, no Oriente Médio e fora dele.

Não se argumenta, é claro, que o Brasil não tenha qualquer ideia de quais sejam alguns de seus interesses e que não os esteja tentando proteger. Por vezes, no entanto, esses interesses parecem modestos em excesso – restritos, por exemplo, a questões comerciais, ainda que não se possa negar a importância disso – e a nossa atuação nas grandes questões políticas parece um pouco hesitante.

É verdade que os atores hoje centrais na política do Oriente Médio protegem e fazem avançar ali interesses que decorrem de seu papel como potências mundiais, de seu envolvimento histórico com a região, de seu lugar relativo na política do petróleo, de suas alianças estratégicas com uns ou outros dos atores locais etc. Isto para não mencionar o interesse dos próprios países da região segundo seus projetos políticos. E é verdade que o Brasil talvez não se encontre no mesmo lugar relativo que qualquer desses atores.

Mas talvez nos caiba aprender com os próprios médio-orientais que tendem a enxergar a sua história como central na evolução das relações internacionais e as suas questões atuais como conectadas necessariamente a todas as demais grandes questões da política mundial. No Oriente Médio, o Brasil definiria também, como dito, o seu lugar no mundo e os seus grandes interesses no cenário global.

Meios e saberes
Há um ditado árabe que, livremente traduzido, ensina que quem quer criar camelos (ter camelos sendo um sinal de riqueza e prestígio, imagina-se) deve elevar o portal de sua casa.

Para que o Brasil ocupe o lugar que parece (ou pareceu) desejar, e que eu gostaria que ele ocupasse, é preciso que esteja pronto a arcar com os custos.

É verdade que já intensificamos significativamente nossa ajuda humanitária e nossa cooperação técnica, e também que incrementamos nossa participação em operações de paz e similares. Mas a ajuda humanitária, por mais que seja apreciada, só provê uma alavancagem e um prestígio político limitados.

É necessário projetar poder e demonstrar a disposição para usá-lo e ambas coisas são custosas. E aqui também nossa hesitação parece se revelar, muito fortemente, incompatível com ambições por vezes anunciada.

Os meios incluem os saberes. Também nisto outros atores estão à nossa frente pelo seu íntimo envolvimento, e antigo, com a região. Há portanto uma familiaridade a construir com seus problemas, suas características, suas dinâmicas.

E, para além da familiaridade, é preciso munir-se dos meios para combater as leituras superficiais, muitas vezes apresentadas como verdades indiscutíveis – veja-se, por exemplo, a tendência a colocar os conflitos regionais como questões tribais, religiosas ou étnicas, muitas vezes milenares.

Esse é um trabalho de fôlego, que também impõe custos e demanda tempo. Alguns esforços nesse sentido têm sido feitos, com ganhos certos, mas há muito por fazer.

Uma pequena conclusão

Como dito, o nosso desafio é o de optar por ocupar um lugar de envergadura e por participar ativamente das questões relacionadas ao Oriente Médio. Combina-se com isso o desafio de ocupar esse espaço com olhar e voz autônomos, com a intenção de construir um sistema internacional mais justo, mais equilibrado e mais favorável a nossos interesses.

Fazíamos passos certos em direção a isso até recentemente. Tomávamos riscos e pagamos alguns preços pela ousadia. Hoje parecemos retroceder e nos recolher a um lugar mais tranquilo e mais “seguro”.

Digo que há algo a lastimar nisso. Dou dois breves exemplos de como estávamos certos em algumas coisas e errados em recuar.

O primeiro exemplo é este: por vários anos sustentamos decididamente que era necessário conversar com o Irã e lemos corretamente as ambições daquele país. Sob pressão interna e internacional, recuamos ou demos a impressão de recuar, apenas para observarmos enquanto o mundo – ou a chamada comunidade internacional – chegava apenas tardiamente ao lugar em que nós já tínhamos estado.

O segundo exemplo diz respeito à Síria: há dois anos ou mais, fazíamos uma leitura do que ocorria naquele país que contrariava as representações encontradas na grande mídia e no discurso das potencias ocidentais. Temendo os custos, recuamos. E também aqui assistimos o mundo se aproximar cada vez mais do que nós já havíamos enxergado.

Parecemos assim desperdiçar a clarividência e a coragem de que faziam prova alguns de nossos políticos e diplomatas e pomos a perder espaços conquistados apesar dos riscos e apesar dos limites dos nossos meios.

Salem H. Nasser é professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Publicado no blog do Grupo de Reflexões sobre Relações Internacionais.