É notável o contraste em termos de tamanho e conteúdo entre as declarações conjuntas divulgadas no encerramento da II cúpula do BRIC de 2010, a última realizada no Brasil, e a VI cúpula dos BRICS que se concluiu recentemente em Fortaleza. Além do fato de que no encontro de Brasília, a África do Sul não fosse ainda membro do grupo, os pontos de consenso estavam longe de revelar a densidade política e o alcance econômico que se observam na atualidade.

Em quatro anos o BRICS ganhou outra envergadura, graças ao empenho compartilhado pelos seus cinco integrantes. De uma agenda genérica que incluía 26 temas de comércio internacional, desenvolvimento, energia, mudança climática e terrorismo, chegou-se a um documento compacto no qual são abordados com precisão e posicionamentos inequívocos ao redor de 70 pontos referentes à economia, política e segurança internacional, acompanhando por um robusto plano de ação intergovernamental.  A substância da proposta BRICS parece haver superado o espaço ocupado por sua marca.

Enquanto seja inegável o impacto das duas iniciativas estrelares no campo da governança econômica de criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e do Arranjo Contingente de Reservas, a reunião de Fortaleza foi central também para marcar o passo em questões de política e segurança internacional. De fato o grupo já vinha mostrando avanços nesta direção, mas o texto divulgado em Fortaleza supera as declarações de Sanya (2011), Nova Délhi (2012) e de Durban (2013). O ponto a ser sublinhado é de que esta sequência corresponde ao processo de construção de um arcabouço de posturas comuns costuradas pelo Bloco nos últimos 3-4 anos, cujo ponto de inflexão se deu no momento em que todos os seus membros se sentaram simultaneamente no Conselho de Segurança (CS) da ONU. Do ponto de vista conceitual, a tecla principal vem sendo o questionamento ao receituário do internacionalismo liberal.

Em 2011, a Índia, o Brasil e a África do Sul, como membros temporários do CS, somaram-se à China e a Rússia, no esforço de se contraporem ao uso da caixa de ferramentas do intervencionismo liberal para lidar com as situações de crises políticas severas e/ou dramáticos colapsos humanitários. Menciona-se os casos discutidos na época como os da Líbia, Síria, Palestina, Afeganistão, Sudão, Congo e Somália. Os países do BRICS coincidiram também em reclamar o imperativo da prudência no uso de métodos coercitivos para evitar o uso de sanções como primeiro passo para a ação militar, como na época as potências ocidentais pareciam defender para forçar o desmantelamento do programa nuclear iraniano. Em 2014, os elementos de convergência são da mesma índole, naturalmente atualizados ao momento internacional. No ponto 41 da declaração de Fortaleza, por exemplo, são saudadas as negociações entre o Irã e o E3+3 e o Plano de Ação Conjunto de Genebra de novembro de 2013. A declaração divulgada recentemente reflete também o peso outorgado à África na agenda da governança global, merecendo atenção em oito pontos específicos que tratam das realidades em Guiné Bissau, Mali Sudão do Sul e República Centro-Africana, além dos temas pontuais.

Com respeito ao conflito Israel-Palestino são reforçados os reclamos de que as negociações sejam retomadas com reconhecimento das fronteiras mutuamente acordadas em 1967, e condenada a continuada construção de assentamentos nos Territórios Palestinos Ocupados pelo Governo israelense. A vinculação entre paz, segurança e desenvolvimento é sublinhada no tratamento da realidade afegã, com a preocupação de que o Iraque volte a sofrer novas intervenções externas que ponham em risco sua integridade territorial e deteriore sua estabilidade interna. Além da alusão a realidades específicas, a Declaração da VI Cúpula dos BRICS destaca a coincidência do grupo na condenação de intervenções militares unilaterais, na violação ao direito internacional e nas ações que reforçam o desequilíbrio das condições de segurança entre os Estados. São abordados temas sensíveis como o do terrorismo, do crime organizado e tráfico de drogas, a pirataria, os crimes cibernéticos, a exploração do espaço exterior.

A identificação de visões convergentes em temas de política e segurança não pretende encobrir as diferentes realidades domésticas, geopolíticas e de trajetória histórico/cultural dos membros do BRICS.  Cabe ainda a ponderação de que a linguagem utilizada pelos governos BRICS em momento algum sugere uma aliança baseada em alinhamentos automáticos. Ademais, convém remarcar a diferença quanto aos recursos de poder de que dispõem, a começar pelo acesso aos círculos mais fechados de decisão do sistema mundial. O fato de que apenas a China e a Rússia possam atuar como membros permanentes do CS constitui uma limitante, principalmente quando se sabe que o Brasil, a Índia e a África do Sul precisam sempre aguardar a vez para voltarem a se sentar no Conselho.  A coincidência entre as posturas dos membros dos BRICS deve conviver no mundo real com diferenças até hoje intransponíveis quanto ao poder de pressão que cada um pode exercer. Valorizar o conteúdo da Declaração de Fortaleza, como um tijolo a mais para tornar o BRICS uma plataforma política não deve deixar de lado a consciência sobre a diferença entre os seus membros.

Por isso mesmo lamenta-se que não se tenha realizado, também em Fortaleza, uma reunião do grupo IBAS (Índia, Brasil e África do Sul). Uma prática mantida em outras Cúpulas dos BRICS, estes encontros são de crucial importância para sinalizar uma diferenciação intra-BRICS, tanto no que tange recursos de poder como de opções de modelo político. Uma voz alternativa ao internacionalismo liberal, que parta de uma agrupação formada por democracias participativas como é o IBAS, reforça ainda mais no âmbito mundial o reclamo por um pensamento e uma prática comprometida com a paz sustentável, a defesa dos direitos humanos e a inclusão social.

*Monica Hirst, da Universidad Nacional de Quilmes, é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais

Publicado em Carta Capital