Não é do desconhecimento de ninguém que o mundo vive atualmente uma onda que busca no conservadorismo mais arcaico a solução de todos os problemas econômicos e sociais. O xenofobismo, para dar um exemplo, renasce na Europa com uma força impressionante e não será surpresa se, no rastro dessa pólvora, até mesmo o nazifascismo reaparecer. No livro “Os inimigos íntimos da democracia” (Companhia das Letras, 2012), o filósofo húngaro Tzvetan Todorov alerta que “o discurso democrático (…) vem sendo corroído pela proliferação dos populismos de diversos matizes ideológicos”.

Nesse cenário, onde a crise mundial de 2008 lançou pitadas ainda maiores de instabilidade e insegurança, em cada país se vive preconceitos particulares na firme crença de que segregacionismos de toda ordem terão o poder de preservar a unidade social. Assim, quando grupos imigrantes decidem aportar em outros horizontes para fugir da miséria, nada mais natural que as vozes do atraso, que louvam a Deus durante o dia e destilam ódio de noite, se levantem para dizer em uníssono: “Onde vamos parar?”.

No caso brasileiro, a contradição soa ainda mais forte. A constituição de uma nação mestiça que resultou numa rica identidade plural não é suficiente para que grupos aqui e acolá se manifestem da maneira mais egocêntrica e tacanha possível quando o tema é imigração. Não custa lembrar que no episódio da nacionalização de uma refinaria da Petrobras na Bolívia não faltou quem propusesse nada mais nada menos do que a invasão militar do país vizinho. Na época, o ex-presidente Lula lembrou bem: “Essa gente fala grosso com a Bolívia, mas fala fininho com os Estados Unidos”.

A periferia da zona leste de São Paulo abriga hoje em torno de 300 mil imigrantes bolivianos e peruanos. Uma cidade inteira! A maioria deles quer a legalização de sua situação porque encontra em solo brasileiro a oportunidade de uma vida melhor. Essa é a prova viva de que as fronteiras são irrelevantes quando a realidade se impõe. De um lado, dificuldades de sobrevivência; do outro, a alternativa de trabalho.

O fato é que o Brasil tem hoje uma das menores taxas de desemprego do planeta e as ofertas de trabalho se multiplicam, especialmente nos setores da construção civil e de serviços. As notícias se espalham.

Nos últimos dias, a capital paulista tem recebido levas de haitianos procedentes do Acre, estado pelo qual adentraram ao território nacional. Falam “criollo” entre eles e francês com os demais. Fugiram do terrível terremoto de 2010 que devastou Porto Príncipe e deixou um saldo de 100 mil mortos, sem contar centenas de milhares de feridos e desabrigados. Se o país já sofria as consequências de uma miséria histórica, a situação se agravou ainda mais depois dessa tragédia.

Os laços brasileiros com o Haiti se fortaleceram quando a política externa adotada no Itamaraty privilegiou a ampliação de nossa participação no cenário mundial visando um protagonismo parceiro com países de todos os continentes e o fortalecimento de mecanismos estratégicos de integração (Mercosul, Unasul, Celac, BRICS). Essa participação, ao contrário do que apregoam os seguidores do oráculo do mercado, fortaleceu as exportações, gerando excedentes seguidos na balança comercial. Na moeda política, o cacife também cresceu a ponto de ser creditado ao Brasil a importância de uma nação-líder.

Coube ao Brasil chefiar permanentemente a missão de paz da ONU no Haiti, tarefa nada fácil em um país com altos índices de violência urbana. Além da ajuda humanitária em decorrência do terremoto, Brasília assinou um termo de cooperação com as autoridades de Porto Príncipe abrindo as fronteiras do nosso país para a vinda de haitianos que queiram aqui se instalar – hoje, algo em torno de 30 mil pessoas.

O governo do Acre, que recebe esse fluxo de imigrantes, tem reiterado sua impossibilidade de abrigar todos os haitianos. Tomou a decisão de enviá-los a São Paulo, em levas diárias de 200 a 250 pessoas. Não se comunicou adequadamente com as autoridades estaduais e da cidade de São Paulo, prevendo talvez uma colaboração automática diante de situação social tão dramática. Apesar desse desencontro inicial, a capital tem toda a condição de receber e legalizar esses imigrantes, exatamente porque há oferta de emprego. Não à toa, empreiteiras já perfilaram seus agenciadores nos abrigos oferecendo emprego na construção civil.

Por isso, as manifestações de racismo e preconceito que começam a surgir, travestidas de crítica ao atual governo federal (agora tudo é culpa do PT), traduzem visões maniqueístas que vão na contramão de uma nação verdadeiramente democrática e de espírito tolerante. Quem pede barreiras policiais na entrada de São Paulo e o fechamento da fronteira para os haitianos esquece que num passado nem tão longínquo assim, seus bisavós e avós percorreram a mesma saga. Se não for por adesão, deveriam acolher os imigrantes haitianos pelo menos por caridade e amor ao próximo.

(*) Marco Piva é jornalista, descendente de italianos e espanhóis.