As décadas de prevalência da hegemonia do pensamento neoliberal, em movimento que logrou se espalhar por todo o mundo, terminaram por provocar conseqüências significativas para a história da humanidade. Além de todas as mazelas relativas à desorganização das relações sociais, econômicas, ambientais e geopolíticas, esse período também foi marcado pela tentativa de uniformização e padronização das múltiplas maneiras de se compreender e analisar o fenômeno econômico. Um enorme retrocesso!

Essa generalização do modelo simplista de interpretação da forma capitalista de organizar a sociedade foi se consolidando aos poucos, a ponto de se transformar em uma espécie de “unanimidade artificialmente construída” junto aos espaços dos principais formadores de opinião em escala global. Essa verdadeira ditadura do pensamento único reinou absoluta no ambiente das grandes empresas, no interior das organizações multilaterais (Fundo Monetário Internacional – FMI, Banco Mundial – BM, entre outros), nas manifestações cotidianas dos meios de comunicações, bem como no interior dos centros de pesquisa e das universidades.

Pensamento neoliberal: a construção da falsa unanimidade

A experiência havia adquirido fôlego e musculatura ideológica com a chegada de Thatcher e Reagan ao poder, nos 2 países que representavam a essência mesma do “capitalismo mais autêntico” no início da década de 1980. Conservadores e republicanos chegavam aos postos máximos dos governos, respectivamente, da Inglaterra e dos Estados Unidos. Esse processo histórico se combina com o desmantelamento da experiência do chamado “socialismo real” nos países do leste europeu e na extinta União Soviética. A idéia de que não haveria mais espaço a outra alternativa para o futuro da experiência humana levou alguns pensadores mais apressadinhos, como Francis Fukuyama, a proporem a sugestiva interpretação do chamado “fim da história”.

Esse mesmo momento era caracterizado por crises recorrentes e sistêmicas no relacionamento entre os países desenvolvidos e os demais do mundo em desenvolvimento. Essas tensões acumuladas terminaram por transbordar em crises nas relações financeiras internacionais, inclusive em razão das dificuldades apresentadas pelos países devedores em cumprir com as cláusulas de pagamento de suas dívidas externas. Tem início uma nova fase na dinâmica econômica mundial. Tratava-se do difícil e penoso período dos chamados “ajustes estruturais”, onde o FMI, BM e demais organizações similares impuseram programas de estabilização macroeconômica aos países em desenvolvimento, sob a lógica do receituário de medidas que ficou conhecido como o “Consenso de Washington”. Sua marca era o arrocho e a ortodoxia.

As bases teóricas que estavam a fundamentar esse tipo de intervenção eram as mesmas do modelo neoliberal de interpretação do fenômeno econômico. O foco recaía sobre a necessidade de reduzir toda e qualquer manifestação de existência do setor público a uma única regra de ouro: “Estado mínimo”. De acordo com tal perspectiva, a solução ótima para qualquer forma de organização social passava necessariamente pela existência de plena liberdade de ação das forças de oferta e de demanda. Esse jogo levaria sempre o mercado a encontrar o ponto de equilíbrio, que deveria ser obrigatoriamente respeitado por todos os agentes intervenientes no processo. A simples presença de atores que respondessem a uma lógica estatal, diferente da pureza de espírito da dinâmica de interesses do capital, contribuiria para deturpar a liberdade de empreendimento e levaria a solução a um ponto de “desequilíbrio”.

A fragilidade do modelo e advento da crise de 2008

Esse desvario de um pretenso liberalismo radical mal desenhado chegou a elaborar proposições criminosas, como a de eliminar importantes ferramentas de política econômica. Foi o caso de suprimir mecanismos como a política cambial, a política de controle de fluxo de capitais externos, a política de incentivos para consolidação de nichos de política industrial, entre tantos equívocos. Boa parte dos países terminou por levar a cabo a privatização do conjunto de suas empresas públicas e estatais, bem como encaminharam soluções de desregulamentação e liberalização de seus instrumentos de implementação de políticas públicas. Como as palavras de ordem da moda eram “todo poder ao mercado” e “morte ao Estado”, a capacidade de gestão pública foi sendo esvaziada e as soluções privadas continuaram cada vez mais endeusadas, vendidas como a panacéia para todos os males civilizatórios.

No entanto, os inúmeros alertas a respeito das debilidades intrínsecas a essa forma obtusa de encarar o fenômeno econômico não encontraram repercussão nos meios de comunicação. Os focos de crítica do modelo neoliberal e as tentativas de proposições alternativas eram logo taxados de jurássicos, saudosistas de um passado que não teria mais volta. Até que a crise econômica desencadeada em 2008 proporcionou o surgimento de espaço para interpretações distintas das que vigiam até então. Pouco a pouco, as próprias organizações multilaterais e seus principais protagonistas ensaiavam uma fenomenal reviravolta e alguns termos proibidos nos debates passaram a freqüentar as entrevistas, os documentos e as declarações de integrantes de governos dos países do Ocidente.

Política anti-cíclica, medidas keynesianas, política industrial, protecionismo comercial, preferência nacional nas compras governamentais, subsídios públicos a empresas em dificuldades, incremento de medidas de regulação econômica, intervenção do Estado na formação da taxa de câmbio, re-estatização de empresas que haviam sido privatizadas no passado recente, entre muitas outras “heresias”, tudo isso passou a fazer parte da linguagem “normal e natural” dos integrantes do “establishment”. O liberalismo dogmático cede lugar ao salvacionismo pragmático, pois o essencial era preservar o sistema econômico, ainda que isso se desse às custas de concessões significativas no plano dos princípios.

Pouco espaço para visões alternativas nas universidades

Porém, como o movimento de mudança nas idéias é bem mais lento do que as transformações na realidade, as instituições de ensino de economia não conseguiram acompanhar a velocidade de tal evolução. Como as estruturas universitárias haviam sido moldadas para uma tendência de cunho liberalizante que os patrocinadores imaginavam sem retorno, o tempo para adaptação à nova realidade do mundo operava em outra cadência. As escolas funcionavam de acordo com os modelos doutrinaristas do mercadismo radical. As explicações a respeito da dinâmica econômica ainda se baseiam em fundamentos de natureza matemática e econométrica, sem muito espaço para a percepção de que o fenômeno econômico tangencia a esfera das ciências sociais e demais campos de conhecimento das humanidades. Ao contrário dos que pretendiam transformar a economia em uma “ciência dura” – com certezas que a aproximassem da engenharia – a universidade necessitava incorporar uma visão heterodoxa a respeito da matéria.

Face a tal resistência dos dirigentes da academia em se atualizar e internalizar elementos de uma visão crítica, coube aos estudantes pelo mundo afora promover o início desse debate e exigir mudanças. Na Europa e nos Estados Unidos começaram a pipocar manifestações de descontentamento face a um modelo de ensino que não guardava nenhuma relação com a realidade dos cenários econômicos. Ao contrário da verborragia ideologizada a respeito das supostas virtudes do mercado, os estudantes percebiam que as políticas econômicas patrocinadas pelos governos caminhavam na direção oposta a tudo aquilo que lhes era transmitido nas salas de aula. Além disso, personalidades importantes do mundo acadêmico e de negócios mudaram seu discurso e passaram a defender medidas que os modelos tradicionais não previam ou até mesmo condenavam.

Os movimentos dos alunos foram rapidamente seguidos por professores e pesquisadores, que passaram a reivindicar também mais espaço para reflexão e oxigenação de idéias. As contribuições de pensadores como Marx, Keynes, Kalecki, entre outros críticos do próprio capitalismo, se oferecem como instrumental mais adequado para compreender e explicar a própria crise. Mas para tanto, esses assuntos teriam que voltar a ser estudados nas faculdades. Isso significava a necessidade de alterações curriculares, convites a professores com perfil diferenciado, abertura de novas linhas de pesquisa, indicação de novas listas de bibliografia. Em uma palavra, o pleito generalizado passou a ser por mudanças no ensino de economia.

Caminho aberto para mudança nos currículos e nas abordagens

Os modelos matematizados da macroeconomia não conseguiam dar conta de explicar a emergência da crise econômico-financeira nos Estados Unidos e sua propagação para o espaço europeu ainda na década passada. Afinal, com a prevalência desse verdadeiro deus “ex machina” – o mercado – tudo deveria ser previsível. Mas, até às vésperas da eclosão do sistema financeiro norte-americano, a falência do modelo não era colocada nem como fenômeno de baixíssima probabilidade. Era simplesmente uma impossibilidade sistêmica. A captura das agências de risco pelas corporações ou o excesso de financeirização das economias não comportava avaliação crítica. A eventual análise das relações de exploração – tão características do modo capitalista de produção – bem, isso então, nem pensar.

Se as ondas da mudança tardam a se aproximar dos ambientes universitários nos países mais desenvolvidos, o mesmo parece ocorrer na academia brasileira. Tudo se passa como se as transformações experimentadas pela política econômica desenvolvida nos últimos anos pudessem ser guardadas e escondidas num canto da sala, até serem esquecidas pelos principais atores envolvidos com a matéria.

Os representantes do financismo e das grandes corporações empresariais não têm interesse algum no desenvolvimento de espaços de reflexão crítica, seja nos meios de comunicação, seja nas universidades. Cabe aos alunos, professores, pesquisadores e demais profissionais ocuparem cada nicho conquistado como uma trincheira para essa importante batalha de idéias. As futuras gerações certamente agradecerão aqueles que empunharem essa bandeira nos tempos de hoje.

Publicado em Carta Maior