Em corda bamba evolui, pela enésima vez nos últimos meses, o Egito, com maciças manifestações de protesto generalizado contra o presidente Mursi (Mohamed Mohamed Mursi Issa al-Ayyat), que foi tirado do poder pouco após completar um ano de gestão.

A atmosfera é de conflito há meses. Um ano após as eleições presidenciais e, essencialmente, a ascensão dos Irmãos Muçulmanos ao poder, por serem a mais organizada força política, graças a amplas redes sociais e filantrópicas que mantêm e por causa de sua retórica sobre “justiça social” e adoção de uma série de medidas a favor dos economicamente e socialmente menos favorecidos e dos trabalhadores, a decepção predomina até inclusive seus próprios eleitores.

Nada mudou no cotidiano do povo egípcio. As condições de trabalho permanecem na Idade Média, enquanto o desemprego mantém-se em percentuais dramáticos, particularmente no que diz respeito aos jovens.

A pobreza tortura milhões de egípcios, cuja sobrevivência depende de ajudas assistências do governo e de várias redes filantrópicas, enquanto a economia do país, mesmo com aqueles indicadores que agradam os economistas, está evoluindo de mal a pior e foi reavaliada para baixo por todas as agências internacionais de rating, enquanto as reservas cambiais do país estão evaporando, apesar das seguidas injeções de dinheiro do Catar no sistema bancário egípcio.

As sucessivas tentativas de Mursi e dos Irmãos Muçulmanos para promoverem políticas que atendam aos interesses daquela parcela de classe social que representam não surtiram os resultados esperados. O Fundo Monetário Internacional (FMI) já visitou o país repetidas vezes a fim de formalizar mais um acordo de empréstimo totalizando US$ 4,8 bilhões – como continuação de uma política que, de qualquer forma, imitou o regime de Mubarak, com privatizações e medidas contra o trabalho.

Contudo, o acordo não foi posto em execução porque previa mais privatizações, maiores reduções de salários, cancelamento da maior parte de subvenções privilegiadas e aumento nos preços da maioria dos bens de consumo, incluindo do pão – que constituía a alimentação básica de maior parcela da população – assim como dos combustíveis.

Aliás, a primeira tentativa de aumento de preços dos combustíveis provocou violentas reações populares e a medida foi retirada. Por fim, não foram aprovadas, após reações de protesto dos trabalhadores, os planos para privatização de uma série de serviços do Canal de Suez.

Autoritarismo e repressão

A essas medidas todas, deverá ser somada a cada vez maior ira e revolta que provocou a forma de exercício do poder por Mursi. Apesar das afirmações sobre “mudança da maneira de pensar” e as fartamente divulgadas promessas de reprovação do autoritarismo do regime Mubarak, Mursi seguiu a tática de seu antecessor, provocando ira em seus adversários políticos e indignação dos aliados, assim como perplexidade nas potências imperialistas com as quais conseguiu encontrar um modus vivendi reivindicando papel na promoção dos planos sobre o Grande Oriente Médio após sua “intervenção” em busca de um cessar-fogo no ataque israelense em Gaza, registrado em novembro do ano passado.

A atribuição a si próprio – verdadeiro golpe de estado – de superpoderes, a qual foi acompanhada também pela exclusão de qualquer espécie de crítica da comissão que deveria formular o conteúdo na nova Constituição, composta principalmente por islamitas, foi, talvez, seu maior ato de autoritarismo, que disparou semanas inteiras de choques sangrentos nas ruas do Cairo e de outras cidades do país.

Esta sangrenta marcha rumo ao plebiscito que aprovou a nova Constituição – muitos de seus artigos são avaliados como particularmente preocupantes para as liberdades e os direitos – minou sua legitimação.

Já a recente decisão de nomear, em 17 das 27 regiões do país, governadores que ou são próximos aos Irmãos Muçulmanos, ou colaboram com estes, ainda que extremistas, provocou nova explosão. Característico exemplo, a região de Luxor, a qual encontra-se em permanente movimentação – desde a autoridade municipal até os sindicatos locais – foi a nomeação para governador de um ex-membro da organização islamita sunita Gama’a al Islamiyya, que em 1995 assassinou 58 turistas estrangeiros que visitavam os monumentos da região, além de ter assumido a autoria de mais de 1,2 mil outros assassinatos.

Discurso de ameaças

A exemplo do que aconteceu no caso da Constituição, em novembro do ano passado, o discurso pela televisão de Mursi em meados da semana passada, embora tivesse como alvo aliviar a escalada das tensões, conseguiu provocar maior ira e revolta.

Inicialmente, o presidente deposto reconheceu que tem cometido erros, os quais quer corrigir, advertindo que a polarização predominante “ameaça conduzir o país ao caos”. Também convidou novamente ao diálogo – sem definir em qual âmbito – a oposição, oferecendo-lhe o direito de realizar alterações na Constituição.

Em seguida, Mursi referiu-se à existência de uma “imensa conspiração” com a participação “de políticos, juízes, empresários e jornalistas”, citando inclusive os nomes dos “conspiradores” e acusando-os de estarem tentando trazer de volta ao proscênio o regime anterior. Insinuou que “estas acusações referem-se apenas a uma parcela da oposição”, separando – sem esclarecer – a oposição patriótica.

E concluiu ameaçando com uso de legislação militar e repressão pessoal os proprietários e responsáveis pela redes privadas de televisão do país, assim como determinou o “corte” de qualquer transmissão contra o regime pelo canal estatal de televisão.

Ainda, convocou o exército para ocupar-se com a defesa do país, respondendo à declaração do chefe do Estado-Maior do exército e ministro da Defesa, general Abdel Fattah al Sissi, que “o exército não permitirá o caos e apoiará os desejos do povo”. Finalmente, advertiu os juízes, com os quais encontra-se em permanente oposição pelo fato de existirem muitos ainda nomeados pelo regime de Mubarak, “para não se envolverem com a política do país”.
Esta posição provocou profunda irritação nos políticos e adversários dos Irmãos Muçulmanos e cada vez maior divisão na sociedade egípcia. O resultado todos já sabem: golpe militar. O que virá nos próximos dias, ainda não se sabe.

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Fonte: Africa News Agency, no Monitor Mercantil