Em editorial de 19/05/2013 (“Go-go to go-slow”), o Financial Times “rides again” contra o Brasil e contra o governo Dilma.

É interessante o modo como se constrói a retórica. Primeiro, fala-se de tudo o que Brasil conquistou recentemente: recorde no leilão da Petrobrás, 11 bilhões de dólares; a captação da oferta pública da carteira de seguros do Banco do Brasil permanece sendo a maior, 5,6 bi. Empresas de petróleo pagaram 1,4 bi por licenças de exploração. Um diplomata brasileiro está à testa da OMC. A popularidade de Dilma está na estratosfera, “graças ao pleno emprego”. A sua reeleição parece garantida.

Mas, garante o jornal, tudo isto não passa de uma “fachada”. Daí vem a ladainha da miséria: na verdade, este bem-estar aparente esconde um mal-estar. Os investimentos caem (como se explica isto diante dos números do outro parágrafo é um mistério). O Brasil só reinveste 18% do seu produto, contra 24% do conjunto da América Latina e 30% da Ásia.

O modelo baseado no consumo interno está esgotado. O estilo “deixa-que-eu-chuto” (“Bossy-boots”, um insulto de natureza pessoal) da presidente é inadequado politicamente, as decisões são demasiadamente centralizadas. Isto favorece o combate à corrupção,o jornal admite, mas atrasa as decisões. Seu governo não aplica as necessárias reformas favoráveis ao mercado (“[the governement] eschewed market-oriented reforms”) em favor de indústrias com lobbies tradicionais, como as montadoras.

Diz-se que o Brasil está perdendo oportunidades. O dinheiro (para investir em infra-estrutura, por exemplo) está sobre a mesa, mas parado. É tempo de agir, adverte o jornal. O dinheiro está barato, mas não vai ser sempre assim.

De novo, fica aquele cheiro de queimado no ar. Trata-se de levantar a bola do companheiro Aécio? De baixar a bola do Brasil em tempos de sucesso? De associar pleno emprego e desaceleração econômica? (Sem falar nos aumentos de salário para quem não investe nem sabe gastar, como o povão)? Tudo junto incluído? Pode ser. Porque a bem costurada política econômica brasileira – com seus rasgões e remendos existentes e por fazer – vai dando certo, e por isso mesmo só mderece o desprezo – que disfarça o pânico – de quem pensa sempre “market-oriented”.

Mas o cheiro de queimado permanece, e se estende. Porque ele vem das entranhas do jornal. Tudo o que seus editoriais defendem já deu e está dando errado. O ideário “market-oriented” que é a pedra de fundamental de seu ideário está levando a Europa – onde ele vive, o jornal – para a hecatombe, porque para o brejo já levou.

No dia seguinte ao do editorial (20/05, “Europe’s Hollow Efforts to Save a Lost Generation”, “O esforço vazio da Europa para salvar uma geração perdida”) a Spiegel International publicou uma matéria escachapante sobre o desemprego entre os jovens na Europa. A palavra “hollow” significa “vazio”, “oco”, “cavidade”, “buraco”; mas ela tem uma conotação moral. Quer dizer também “insincero, irreal, pouco profundo, sem valor”. É uma das palavras-chave de poema famoso de T. S. Eliot, “The hollow mwn”, escrito em 1925, na moldura do desencanto vivido na esteira da Primeira Guerra Mundial:

We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparadosd
O elmo cheio de nada. Aí de nós!,

(Na tradução de Ivan Junqueira)

O vaticínio do poema pode se aplicar tanto os “maket-oriented” hegemônicos na Zona do Euro, como o mundo que estão moldando, semeando o desencanto e o desespero num continente que vai perdendo o passo do futuro.Os números são estapafúrdios. Mesmo na próspera Alemanha, de pouco desemprego, entre os de menos de 25 anos (e 18 ou mais) o desemprego é de 7,9%. No restante da Zona do Euro: Áustria, 9,9%; Holanda, 10,3%; Malta, 16%; Luxemburgo, 18,5%; Estônia, 19,4%; Finlândia, 19,5%; Bélgica, 19,6%; França, 26,9%; Eslovênia, 27,1%; Chipre, 28,4%; Irlanda, 30,9%; Eslováquia, 35,9%; e agora os campeões – Portugal, 38,6%; Itália, 38,7%; Espanha, 55,5% e Grécia, 59,4%. Média ponderada, 23,5%: uma catástrofe. Nas palavras da matéria, “Está se formando na Europa uma geração perdida”.

Voltemos ao período entre-guerras. A expressão “uma geração perdida” foi usada como epigrafe no romance “O sol também se levanta”, de Ernest Hemingway, começado em 1925 e publicado em 1926. Na época o autor atribuiu a expressão à escritora Getrude Stein, e ele mesmo associou-a à geração que amadureceu durante a Primeira Guerra Mundial e foi por ela irremediavelmente “danificada”. Depois Hemingway escreveu que na verdade o criador da expressão fora o proprietário da oficina onde Stein mandava consertar seu carro.
Voltando ao nosso século, o artigo da Der Spiegel assinala que a aversão das elites políticas européias por qualquer coisa que signifique “dispêndio de verbas” vai estrangulando na prática os programas e promessas de criação de projetos para estimular a geração de empregos em geral, quanto mais entre os mais jovens. “Big promises, scant results”, resume a revista: “Grandes promessas; resultados pífios”, traduzindo livremente.

Enumera a revista: em fevereiro deste ano o Conselho Europeu votou um investimento de 6 bilhões de euros até 2020 para geração de empregos entre os mais jovens, mas desavanças entre os países-membros sobre a aplicação do dinheiro fez o começo do programa ser postergado para 2014. Um programa de investimento franco-germânico nos países do “sul da Europa” com o mesmo objetivo permenece “nebuloso”, apesar do entusiasmo da ministra alemã do Trabalho, Ursula von der Leyen, uma candidata da CDU à uma possível sucessão de Angela Merkel. A prática alemã tem sido mais a de contratar jovens nos países mais prejudicados para trabalhar… na Alemanha, o que não ajuda muito a economia destes.

Novas promessas estão em curso, pelo menos no plano das intenções. A próxima cúpula européia deve priorizar o tema. Mas pouco será feito, provavelmente, dentro da ótica de mostrar para o público em geral que está se fazendo tudo o que é possível gastando o menos possível também. Alertados pelas lições da história advindas daquele período da “geração perdida” e dos “homens ocos”, analistas de diferentes procedências (historiadores, economistas não obcecados pela “market-orientation”, escritores, artistas, antropólogos, psicólogos, etc.) vêm advertindo sobre os riscos inerentes a esta situaçào européia: afinal, foi naquele “vazio de perspectivas” que os nazi-fascismos prosperaram.

Mas nada disto abala os “market-oriented”. Sem sombra de dúvida, o sem mundo de certezas iluminadas não admite sombras nem dúvidas. Muito menos uma sombra do tamanho do Brasil.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.