A pujante metrópole de Boston se transformou em uma cidade fantasma na sexta-feira. Quase um milhão de moradores foram instruídos a permanecer em casa — e obedeceram de boa vontade. Escolas e empresas foram fechadas; trens, metrôs e estradas, evacuados; ruas geralmente movimentadas lembravam um cenário de filme pós-apocalíptico; até os jogos de beisebol e eventos culturais foram cancelados — tudo por causa de um fugitivo de 19 anos, que estava a pé e fora claramente identificado pela mídia.

Os atos supostamente cometidos pelos bombardeadores da maratona de Boston, Dzhokhar Tsarnaev e seu irmão, Tamerlan, foram odiosos. Quatro pessoas morreram e mais de cem ficaram feridas, algumas com membros destruídos e amputados.

Mas os londrinos, que sofreram o terror do IRA durante anos, poderiam ser perdoados por pensar que os Estados Unidos reagiram com certo exagero aos acontecimentos em Boston. Eles têm razão, mas em parte. O que nós vimos foi um frenesi coletivo como poucos já vistos nos EUA. Foi mais um lembrete deprimente de que, mais de 11 anos depois do 11 de Setembro, os norte-americanos ainda se permitem ser facilmente dominados pela “ameaça” do terrorismo.

Afinal, não foi a primeira vez que assassinos homicidas agiram em uma grande cidade americana. Em 2002, a capital, Washington, foi aterrorizada por dois atiradores errantes que atiravam aleatoriamente e mataram dez pessoas. Em fevereiro, um policial irritado, Christopher Dorner, assassinou quatro pessoas ao longo de vários dias em Los Angeles. Em nenhum dos casos as cidades foram colocadas em estado de sítio, talvez porque nenhum desses fatos foi rotulado com essa palavra magicamente evocativa e aparentemente aterrorizante para os americanos — “terrorismo”.

Certamente, as autoridades de Boston pareciam estar agindo com excesso de cautela. E é apropriado que os moradores de Boston sejam solicitados a tomar precauções ou manter os olhos abertos. Mas, ao deixar que um terrorista fugitivo paralisasse uma grande cidade americana, Boston não apenas cedeu a temores exagerados e irracionais, como enviou uma mensagem perigosa para todo aspirante a terrorista — se você quiser provocar o caos nos EUA, intimidar a população e perturbar a ordem pública, este é seu manual de instruções.

Deixando de lado o custo econômico e psicológico, o cerco também evitou uma captura mais rápida do suposto perpetrador, que só foi descoberto depois que moradores receberam o aviso de que estava tudo liberado e um homem em Watertown saiu para fumar um cigarro no quintal e encontrou um terrorista sangrando em seu barco.

Em certo sentido, há um viés positivo nisso — é um reflexo de que os norte-americanos não precisam se preocupar muito com o terrorismo. Uma população como a de Londres durante os bombardeios do IRA, a de Israel durante a segunda intifada ou a de Bagdá, praticamente todos os dias, torna-se imune à violência política aleatória. Os norte-americanos, que têm tão pouca experiência de terrorismo, falando de modo relativo, são mais inclinados a reagir com exagero — e fazer a pior suposição quando se trata da ameaça de um ataque terrorista. É como se de certa forma, na imaginação norte-americana, cada terrorista seja não apenas uma ameaça mortal, mas uma combinação mortífera de Jason Bourne e James Bond.

Os norte-americanos poderiam reagir do mesmo modo às verdadeiras ameaças existentes em seu país. Há algo bastante adequado e irônico no fato de o frenesi de Boston ter acontecido na mesma semana em que o Senado bloqueou a consideração de um projeto de lei de controle de armas que teria reforçado a checagem do histórico policial de qualquer pessoa que quisesse comprar uma arma. Mesmo que essa reforma seja apoiada por mais de 90% dos norte-americanos, e apesar de 56% dos senadores terem votado a favor dela, a minoria republicana impediu até que se realizasse uma votação do projeto, porque supostamente violaria os direitos dos “norte-americanos cumpridores da lei”, contidos na Segunda Emenda constitucional.

Então, para quem faz as contas: sitiar uma cidade norte-americana é uma reação adequada à ameaça de um terrorista; verificar o passado dos indivíduos para evitar que criminosos ou doentes mentais adquiram armas é um ataque inaceitável às liberdades civis. Tudo isso seria quase humor negro se não fosse pelo fato de que mais norte-americanos vão morrer desnecessariamente em consequência. Mais de 30 mil norte-americanos já morrem pela violência das armas todos os anos (comparados com os 17 que morreram no ano passado em atentados terroristas).

O que torna a violência armada nos EUA tão especialmente aterrorizante é que ela se tornou rotineira e banal. Depois do massacre de 20 crianças de um jardim de infância em Newtown, Connecticut, milhões de norte-americanos começaram a prestar mais atenção na ameaça da violência armada. Mas desde então a chacina diária produzida pelas armas continuou intensa e muitas vezes passou despercebida.

No mesmo dia das bombas na maratona de Boston, 11 norte-americanos foram mortos por armas. Breshauna Jackson, uma mulher grávida, foi morta em Dallas, supostamente por seu namorado. Em Richmond, Califórnia, James Tucker III foi morto a tiros por assaltantes desconhecidos enquanto andava de bicicleta. Nigel Hardy, um menino de 13 anos em Palmdale, Califórnia, que estava sofrendo bullying na escola, tirou a própria vida. Ele usou a arma que seu pai guardava em casa. E no Brooklyn, Nova York, uma policial de folga usou a pistola Glock 9mm de seu departamento para matar seu namorado, seu filho de 1 ano e a si própria.

Ao mesmo tempo que os investigadores empreendiam uma caçada elaborada aos bombardeadores da maratona, que terminou na noite de sexta-feira, outros 38 norte-americanos — com pouco alarde — morreram pela violência das armas. Um deles foi um morador de Boston de 22 anos. São uma pequena porcentagem dos 3.531 norte-americanos mortos por armas nos últimos quatro meses — um total que ultrapassa o número de norte-americanos que morreram no 11 de Setembro e é quase igual ao número de soldados norte-americanos que perderam a vida em operações de combate no Iraque. Mas nada dessa violência diária foi considerada urgente o bastante para motivar o Congresso a impor uma restrição moderada e sensata aos compradores de armas.

Não são apenas as armas de fogo que produzem essa inação legislativa. Na semana passada, uma usina de fertilizantes em West, no Texas, que não era inspecionada por órgãos federais desde 1985, explodiu, matando 14 pessoas e ferindo inúmeras outras. Mas muitos republicanos querem cortar ainda mais o financiamento da agência (OSHA) que é responsável por essas vistorias. A vasta maioria dos norte-americanos morre de uma de quatro doenças — problemas cardiovasculares, câncer, diabetes e doença crônica do pulmão –, no entanto, os republicanos realizaram três dúzias de votações para rejeitar o Obamacare, que expande a cobertura do seguro-saúde para 30 milhões de norte-americanos.

É uma dinâmica surreal e difícil de explicar. Os norte-americanos aparentemente depositam um medo incomum na violência que é aleatória e inexplicável e pode ser atribuída a “outros” — jihadistas, terroristas, malfeitores, etc. Mas os perigos que espreitam ao redor de todos nós — armas, dietas prejudiciais à saúde, locais de trabalho que matam 14 norte-americanos todos os dias — são aceitos apenas como parte da vida, o preço da liberdade, digamos. E assim a violência continua, com mais norte-americanos morrendo mortes evitáveis. Mas, ora, veja o lado positivo! Nós pegamos os filhos da puta que explodiram a maratona.
 

Publicado originalmente no The Guardian, com tradução para a Carta Capital