Publicado na agência Carta Maior

Desde o aborto provocado do acordo da Alca, o Brasil jamais esteve ao ponto de sacrificar tantos interesses econômicos específicos e perspectivas concretas de avançar no seu processo de desenvolvimento do que com a espantosa candidatura de seu embaixador em Genebra, Roberto Carvalho de Azevedo, ao posto de secretário geral da OMC-Organização Mundial do Comércio. É o equivalente a construir uma arapuca e meter-se voluntariamente dentro dela.

Para os que não estão familiarizados com o tema, a OMC é o órgão supremo de promoção e doutrinação do livre comércio no mundo. O instrumento para isso é o rebaixamento generalizado de barreiras tarifárias ou não tarifárias, reduzindo ou eliminando a proteção à indústria nacional. Por certo que isso pode justificar-se entre países com estruturas produtivas e tecnológicas similares. Para os tecnologicamente atrasados é um desastre anunciado de produção, emprego qualificado e renda.

A Alca pretendia ser um tratado de livre comércio entre os países das Américas, fechando o cerco sobre o México iniciado com o Nafta (América do Norte). Foi abortado pelo sábio instinto de preservação do presidente Lula, sob o conselho criterioso do ministro Celso Amorim e do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, então secretário geral do Itamarati. Imaginem, só por um instante, o que seria da estrutura industrial brasileira se produtos manufaturados norte-americanos viessem a entrar aqui sem proteção tarifária!

A despeito da obviedade – não estamos preparados tecnologicamente para o livre comércio –, não foi uma decisão fácil. O então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, não só era favorável à Alca, como se propôs chefiar um grupo de trabalho para acelerar as negociações com vistas a destravar o processo. Disse isso ao secretário do Comércio norte-americano e ao embaixador dos Estados Unidos na presença de Lula, mas o presidente se manteve mudo, até decidir o contrário.

Agora, não se sabe de quem partiu a iniciativa da candidatura do Brasil à Secretaria Geral da OMC. Pelo que soube, o ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, foi tomado de surpresa. Sabe-se também que o assessor especial Marco Aurélio Garcia não se mostrou favorável à ideia. Tudo indica que a decisão veio de fora, talvez da parte do próprio embaixador Azevedo buscando apoio junto a figuras ministeriais próximas da presidenta Dilma e alguns senadores.

Vejamos agora o significado exato disso do ponto de vista político. O Brasil, representado por Azevedo, tem tido um posição ambígua na OMC. Atende principalmente ao lobby do agronegócio postulando a redução das barreiras agrícolas dos Estados Unidos e da União Europeia, sinalizando, em troca, com concessões de significado econômico muito maior. Estamos colocado como moeda de troca, nessa negociação, a liberação para concorrentes internacionais das compras governamentais, da área de serviços e das tarifas em áreas consideradas estratégicas para a produção interna (tarifa de até 35%, como a recentemente adotada pelo governo para uma lista de 100 produtos industriais).

Os Estados Unidos, por proposta do presidente Obama, abriram um processo de negociação de livre comércio com a União Europeia. É natural que a Europa aceite isso, pois, embora tenha uma defasagem tecnológica com os Estados Unidos, ela não é tão grande ao ponto de inviabilizar a concorrência com produtos norte-americanos. Entretanto, o Brasil já é grande o suficiente para aparecer como um mercado apetitoso. E é nesse contexto que a candidatura Azevedo surge como uma quinta coluna para nos forçar ao livre comércio.

Os outros candidatos são Gana, Costa Rica, Quênia, Jordânia, Indonésia, Nova Zelândia, Coreia do Sul e México. Os quatro primeiros são irrelevantes e os demais são economias emergentes que não oferecem grandes mercados. Calculem quem é mais interessante para os Estados Unidos e a Europa? Um secretário geral da OMC tem o dever de ofício de defender a doutrina livre-cambista, uma vez que isso está cristalizado na estrutura da instituição. E seria muito difícil para o Governo brasileiro, que pelo simples gesto de sancionar a candidatura adere indiretamente ao livre-cambismo, não seguir a linha ditada pelo seu embaixador.

A propósito do livre-cambismo, leiam o coreano Ha-Joon Chang, em seu “Chutando a Escada”. Vou resumir: todos os países hoje desenvolvidos, sem exceção, foram protecionistas em sua fase de decolagem. E todos os países que se tornaram desenvolvidos com sistemas de proteção à produção interna tornaram-se depois disso livre-cambistas!

J. Carlos de Assis é economista, professor de economia internacional da UEPB e autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus” (ed. Civilização Brasileira).