Em um belo dia de julho de 2009, o ex-preso político Alípio Freire nos guiou pelo Memorial da Resistência em São Paulo. Ali ele conduziu a mim, a minha esposa e filha pelas celas do Deops paulista e, em lugar da pura exposição do terror estatal, nos mostrou humanidade e sementes de esperança entre mortos e torturados.

Enquanto Alípio discorria por entre aquelas paredes, era possível notar que nele residiam juntos um artista plástico, um intelectual, um bom narrador de casos e causos, contados como se surgissem do nada, no meio de pausas de um cigarro e outro. Mas isso, digamos, ainda não estava materializado como um documento íntimo, pessoal da história daqueles anos – eram percepções de passagem entre fumaças. A existência do Memorial era, é objetiva, a sua necessária e dura referência está ao lado de nós. Ali houve e há uma história ocorrida antes e agora pelo rescaldo da ditadura, da sociedade de classes, abjeta e objetiva.

Mal sabia eu que outro Memorial da Resistência já se encontrava em gestação, em uma forma imprevisível e original, como agora sei ao ler “Poemas – De Ordem Política e Social”. Pois aqui ocorre o lugar de um outro Departamento, que em vez de um Deops se estabelece como um Poeops, mas nada de Poe, de Allan Poe, porque Alípio Freire escreve à sua maneira a Poesia que é uma Resistência daquelas vidas de jovens e velhos, homens e mulheres subversivos contra a Ordem. E o resultado agora todos vão conhecer.

Quisera eu poder guiá-los neste momento. Ainda que não tenha o dom do artista Alípio, quando em 2009 nos conduziu pelo Memorial da Resistência, tentarei algo à semelhança de uma apresentação do poeta neste livro que se abre como um fruto maduro, caído do pé da árvore do Brasil.   

Na primeira revelação, descubro que todo poeta chama, reclama e ensina para o leitor uma nova poética – aquela que o liberta e nos liberta do vício do acostumado, da forma que é fôrma. Os indivíduos mais tradicionais e conservadores – e nada mais burro e estéril que pessoas condenadas à carga desses dois adjetivos – poderiam dizer que em alguns poemas de Alípio há uma tendência de versos que são uma prosa em linhas descontínuas. E com isso o estúpido confunde poesia com determinados temas e canto ao orvalho na flor, por um lado, e por outro, com a obscuridade, que com freqüência é vista como sublime.

Mas o que é a poesia? Será ela somente a de significados multívocos, quando não ambíguos, com a dignificação de “poesia aberta?” Ou seria ela, mais propriamente, aquele associada ao sentido de beleza e verdade, verdade e beleza, beleza e verdade, até o sol raiar e noite adentro? Se não for isso, parem aqui e respondam depois da leitura:

“Eu tenho uma casinha
lá na Marambaia
fica na beira da praia
onde helicópteros e aviões da Aeronáutica
despejavam corpos de opositores do regime.
Alguns
ainda com vida
Outros
esquartejados.
O terror de Estado contaminou tudo.
Até o nosso mais lírico cancioneiro”.

Na segunda revelação, descubro que este é um livro e lugar onde nasce e se inaugura uma floresta de citações mais adiante, em futuros discursos de políticos iluminados, em poemas vindouros de jovens poetas, em inteligentes conversas de muitos jovens e militantes de todas idades, inconformados com o lixo de mundo que recebem. Se não, olhem alguns versos, como estes:

“Da tragédia
Nós sobrevivemos
ao pau-de-arara.
Mas o pau-de-arara
também sobreviveu”.

Então vamos chegando mais perto da poética de Alípio Freire. A sua estética liga o domínio de conquistas cultas ao pensamento maduro, que gera reflexão, pois este é o poeta que não abstrai, não exclui o pensamento da sua poesia. Isso quer dizer: este poeta é um intelectual de esquerda, um pensador que exerce a sua história e cultura em um só corpo:

“Coquetel
Uma garrafa
Uma rolha
Gasolina
Óleo 30
Pólvora e ácido nítrico
Ou uma mecha em chamas…
… e…
desde então
aquela dificuldade insana de hierarquizar os alvos”.

E mais esta Prestação de contas:

“Para morrer
basta estar vivo.
Para viver
não.”

A vontade que deixa na gente é de escrever somente com os seus poemas, porque descobrimos neles a expressão de um desconforto nosso, uma angústia que não teve ainda vida expressa. Como nestes versos, vizinhança de um epigrama:

“Onde não há igualdade
toda liberdade é sempre um excesso
de privilégios”.

Enfim, aqui reside uma poesia que são cravos, mas não são flores.

* Urariano Mota é jornalista e autor de “Soledad no Recife”