Na prática, porém, a punição não ocorre nem quando há denúncia. Juristas defendem que o crime não seja punido usando uma figura jurídica chamada “escusa absolutória”. A escusa não elide o ato criminoso, apenas autoriza que o Judiciário interprete de forma idiossincrática o crime de interrupção da gravidez que for cometido sem amparo das circunstâncias previstas em lei.

Vale lembrar que o artigo 2º do Código Civil protege o nascituro desde a concepção (desde que a mulher engravida), e o artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente reza que o nascituro tem direito à vida mediante políticas públicas que permitam seu nascimento, ou seja, desde que o Estado ofereça atendimento médico-hospitalar à parturiente.

Em 1992, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos, que, em seu artigo 4º, reza que o direito à vida deve ser protegido desde a concepção. A Constituição, no caput do artigo 5º, também estabelece a inviolabilidade do “direito à vida”.

Em julho de 2004, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar autorizando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, quando a mãe sabe que logo após nascer a criança irá falecer. Contudo, a decisão foi revogada no mesmo ano e até hoje o processo não foi julgado. Ou seja: a lei brasileira obriga a mulher a ter um filho que perecerá logo após ser dado à luz.

Em um país em que o aborto não previsto pelas exceções legais é considerado crime, o Ministério da Saúde calcula que ocorrem entre 700 mil e 1,25 milhão desses procedimentos ao ano, embora a estimativa seja especulativa devido a que são abortos clandestinos, não havendo como comprová-los estatisticamente.

Já os números de abortos induzidos que causaram mortes de mulheres por falha no procedimento foram estimados em 87 em 1996, em 105 em 1997, em 69 em 1998, em 84 em 1999, em 80 em 2000, em 87 em 2001, em 70 em 2002, em 84 em 2003 e por aí vai.

O Ministério da Saúde também calcula que 1/5 das mulheres que passaram por aborto clandestino tiveram que recorrer ao sistema público de saúde devido a sequelas deixadas por procedimentos mal feitos, como por introdução de objetos na vagina para matar o feto, uso inapropriado de medicação abortiva ou expulsão incompleta.

Ainda segundo as estatísticas oficiais, 15 mulheres em cada 100, na faixa de 18 a 39 anos, já fez aborto, e uma em cada cinco na faixa de 35 a 39 anos, idem. Já a região que apresenta o maior número de abortos é a Nordeste, e a que tem menos casos é a região Sul. Entre 18 e 19 anos, uma em cada 20 mulheres já praticou aborto.

O medicamento abortivo misoprostol (Cytotec) é usado por 50% a 80% das mulheres que praticam aborto. Em média, elas têm entre 20 e 29 anos. São predominantemente da religião católica, seguidas de protestantes e evangélicas. Em média, têm oito anos de estudo. 70% têm união estável com homens e um só filho.

Uma curiosidade é a de que a mesma lei que proíbe o aborto no Brasil permite que seja feito em países em que a prática é legalizada. É comum, portanto, que quem tem bom poder aquisitivo viaje a lugares como Europa para interromper a gravidez.

A lei brasileira, portanto, é injusta, pois quem tem dinheiro aborta com segurança em milhares de clínicas caras, especializadas e clandestinas espalhadas pelo país ou então viaja ao exterior para abortar. Já quem não tem recursos recorre a “curandeiros” sem qualquer formação médica que fazem abortos sem higiene ou mesmo instalações adequadas.

O fato, portanto, é que o aborto é permitido no Brasil inclusive pela lei, pois mulher alguma é presa por ter abortado por decisão própria devido ao tal mecanismo legal da “escusa absolutória”. A proibição só funciona no sentido de impedir que mulheres pobres tenham acesso ao que têm as ricas, ou seja, a fazer abortos seguros.

O único efeito prático da proibição legal do aborto é impedir que hospitais públicos tirem as mulheres pobres das mãos de açougueiros ou que elas não se entupam de medicamentos abortivos que podem lhes trazer sérias complicações de saúde.

Não é por outra razão que Canadá, Estados Unidos, todos os países europeus (à exceção de Malta) e até a Austrália permitem o aborto e oferecem clínicas públicas para que seja feito com higiene e segurança. Isso ocorre porque nesses países a lei é para valer e não só para contentar grupos religiosos como ocorre no Brasil, onde a hipocrisia condena o pobre e absolve o rico.

Fonte: Blog da Cidadania