A ocupação da Cracolândia tem pouco a ver com o vício, com o comércio ou com o tratamento de drogados. É a afirmação da ordem e da disciplina, por intermédio de uma doutrina que impõe sempre a supressão da liberdade como a primeira resposta a um problema.

Não é à toa que o cerco, a pressão e a violência chegam imediatamente; o auxílio, se calhar, o mês que vem. O discurso da ordem é cada vez mais invasivo e tenta se justificar sobre uma população que se supõe acossada por muitos medos. Afinal, é o que nos dizem constantemente a TV, os grandes jornais e as revistas semanais: a impunidade não tem limites, a criminalidade assumiu proporções estratosféricas, a droga virou epidemia, etc.

Bordões atemporais que nos fazem crer que a ação militar seja cada vez mais justificável, como se houvera chegado, finalmente, a hora da ultima ratio. “Dor e sofrimento” não está sendo usado pela polícia paulista como uma opção terapêutica — apenas como insígnia.

Que os governos queiram usufruir deste bônus político em ano eleitoral nem é caso que se estranhe, pois aqui, como em qualquer outro canto, por bons ou maus fundamentos, administradores sempre pretendem se perpetuar em seus cargos. Mas que consigam adesão de cidadãos ao progressivo esvaziamento de suas liberdades, é simplesmente de estarrecer.

Não deixa de ser lastimável presenciar o gene do autoritarismo florescendo no ventre na democracia, mas, verdade seja dita, o fato não é inédito na história da humanidade. A expectativa de que um direito penal extremamente tonificado ponha fim de vez à criminalidade faz parte deste enredo ideológico.

Sem qualquer lastro científico, diga-se, como nos recorda o fiasco preventivo da Lei dos Crimes Hediondos, quando crimes aumentaram na mesma proporção das penas. A lei se foi, mas nos deixou, como legado, um crescente encarceramento feminino e as facções criminosas nas cadeias.

A ânsia de punir pode até reconfortar quem procura respostas rápidas e soluções simplistas. Talvez por isso muitos aplaudam hoje a supressão da liberdade, iludidos na vã esperança de que apenas criminosos ou drogados serão, ao final, por ela atingidos.

Vai daí que um senador com experiência na área criminal, como Demóstenes Torres (DEM-GO), proponha, a essa altura, a volta de penas de prisão para o uso do entorpecente. Se não conseguimos controlar o tráfico, certamente devemos punir os usuários — o que se adequa perfeitamente à ideologia da ação paulista. Como diria o pai repressor: você sabe que a porrada dói mais em mim do que em você…

A tônica do ressurgimento dos espaços autoritários reside, também, no prestígio exagerado dos fins em relação aos meios, estes cada vez mais desprezados. Em decisão recente, entendeu-se ilícita a divulgação por redes sociais de postos de fiscalizações da lei seca. Estaria configurado aí o “atentado à segurança de serviços públicos”, tipo criado pelo legislador para punir condutas graves como a violação da tubulação de água que serve uma cidade, por exemplo.

Levar a criminalização até esse limite, em nome da eficácia policial, é o mesmo que jogar o bebê fora, com a água suja do banho. Ao indivíduo, em breve, só restará ocupar os diminutos espaços que não ousem perturbar a “ordem pública” — equação que quase sempre resulta no esfacelamento da democracia.

Esse mesmo tônus de disciplina, todavia, não se preocupa com a repressão de condutas que visam justamente garantir a liberdade, como é o caso da homofobia.  Pouco importa que um homossexual seja vítima da intolerância a cada dia, conservadores que pregam o fortalecimento do poder de punir do Estado curiosamente não pretendem levá-lo a esse ponto. A liberdade não merece tanto prestígio.

E em pleno século 21, há quem critique o efeito perverso da fiscalização do trabalho escravo, por supostos prejuízos à competitividade das empresas, como se ainda estivéssemos discutindo as conveniências da Abolição. O ponto máximo desse cinismo penal, no entanto, se expressa na pacata conivência com a violência policial, que, para muitos, não deixa de ser apenas um efeito colateral conhecido e suportável, de um objetivo mais relevante.

Todo esse quadro de autoritarismo emergente se casa como uma luva com a criminalização da política, impondo generalizações à própria idoneidade do sistema. Estudantes são baderneiros, movimentos sociais são terroristas e políticos corruptos.

Mas quando, enfim, conseguirmos nos livrar de toda essa “escória”, quem afinal estará no comando para a ordem e o progresso do país, os homens da disciplina? Já assistimos a esse filme antes e sabemos que o final não é feliz.

* Marcelo Semer é juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia, coordenador de “Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho” e autor de “Crime Impossível”

Fonte: Terra Magazine