A ruptura com o revisionismo tinha também razões internas, relacionadas com a tática e a estratégia da revolução brasileira e a construção do Partido. Amazonas se insurgiu contra um grupo reformista e oportunista, que tentou diluir o partido no movimento de sustentação ao governo de Juscelino Kubitschek, sob a égide do nacional-desenvolvimentismo. Esse grupo rasgou o programa do 4º congresso, de 1954, que embora com limitações políticas e ideológicas, era na sua essência revolucionário. Substituiu-o pela Declaração de Março de 1958, que entrou para a história do movimento comunista do Brasil como o documento fundador do revisionismo contemporâneo e do oportunismo de direita.

É edificante ler a polêmica que um dos companheiros de João Amazonas no coletivo dirigente, o também saudoso camarada Maurício Grabois, sustentou com os signatários da Declaração de Março de 1958. O debate foi acirrado, mormente quando se aproximava o momento da realização do 5º congresso (1960), que consumou a cisão no partido e levou ao surgimento de dois partidos comunistas no país: o PCB e o PCdoB.

Amazonas foi o ideólogo e o dirigente político da reorganização revolucionária do PCdoB. Sob sua direção os comunistas atravessaram o período mais difícil da existência do partido, a ditadura militar (1964-1985), na mais estrita clandestinidade; fizeram a luta armada no Araguaia, episódio em que se destacou o heroísmo de nossa juventude. A Guerrilha do Araguaia é irrepetível, um movimento condicionado pelas agruras da época, onde também se cometeram erros políticos, ideológicos, organizativos e militares, erros que não são nem deveriam ser um tabu nas fileiras partidárias, até porque já foram analisados, no 6º congresso, em 1983.

Amazonas viveu intensamente e enfrentou o período contrarrevolucionário de liquidação do socialismo na URSS e países do Leste europeu, em fins dos anos 1980, começos da década de 1990. Ajudou o partido a extrair as lições daquela viragem histórica, que marcava a existência de profunda crise na teoria e na prática do movimento revolucionário e comunista. Comandou a autocrítica antidogmática, a partir do 8º congresso (1992), sem cair no canto de sereia do oportunismo de direita nem do liquidacionismo.

Imperialismo e classes dominantes

O camarada João dirigiu a formulação de uma estratégia revolucionária, baseada nos princípios do marxismo-leninismo, e de uma tática ampla, combativa e flexível. Ensinou-nos que o partido deve enraizar-se entre as massas, inserido no curso político, enfrentar os grandes e pequenos embates políticos do cotidiano e acumular forças revolucionariamente.

Os princípios de estratégia e tática que o Partido desenvolveu sob a liderança de João Amazonas partiam de uma análise da evolução histórica do país de que sob a dependência externa e o regime das classes dominantes reacionárias não havia perspectiva para o desenvolvimento soberano do Brasil nem para abrir caminho ao socialismo. Em sua visão, o desenvolvimento capitalista do Brasil é essencialmente dependente, assentado sobre uma estrutura que tem por base o monopólio da terra e a subordinação aos interesses do capital monopolista internacional.

Amazonas tinha uma visão aguda sobre as classes dominantes brasileiras, que em sua parte majoritária é sócia menor dos imperialistas, em detrimento do progresso e da soberania nacional. Mesmo o avanço do capitalismo no campo, apresentado como um sinal das potencialidades do desenvolvimento nacional, era visto pelo líder comunista como um fenômeno social e nacionalmente deletério, porquanto orienta a produção agrícola para o mercado exterior, controlado pelos monopolistas estrangeiros.

Na visão de Amazonas, o desenvolvimento capitalista dependente se agravava ainda mais na fase aberta com a mundialização da economia. O velho comunista compreendia que a concentração do capital e da produção criava uma situação de maior dependência dos países de desenvolvimento mediano, hoje chamados de emergentes. Apontava como tendência malsã e prejudicial ao desenvolvimento nacional que a economia do país fosse complementar à dos países ricos, no quadro da mundialização e do neoliberalismo, e as políticas econômicas e financeiras, chamadas macroeconômicas, submetessem o sistema financeiro do país.

Com elevado nível de compreensão sobre o processo histórico, não separava o momento particularmente difícil enfrentado pelo Brasil sob a liderança do grupo neoliberal que assaltou o poder nacional, primeiro com Collor de Mello e mais adiante com Fernando Henrique Cardoso, da direção do País pelas classes dominantes e do caráter do Estado.

João fazia uma análise implacável sobre estas classes. Dizia, na redação do Programa Socialista aprovado na Conferência Nacional de 1995 e ratificado no 9º Congresso (1997): “O desenvolvimento deformado da economia nacional, o atraso, a subordinação aos monopólios estrangeiros e, em conseqüência, a crise econômica, política e social cada vez mais profunda são o resultado inevitável da direção e do comando do país pelas classes dominantes conservadoras. Constituídas pelos grandes proprietários de terra, pelos grupos monopolistas da burguesia, pelos banqueiros e especuladores financeiros, pelos que dominam os meios de comunicação de massa, todos eles, em conjunto, são os responsáveis diretos pela grave situação que vive o país. Gradativamente, separam-se da nação e juntam-se aos opressores e espoliadores estrangeiros. As instituições que os representam tornaram-se obsoletas e inservíveis à condução normal da vida política. Elitizam sempre mais o poder, restringindo a atividade democrática das correntes progressistas. A modernização que apregoam não exclui, mas pressupõe, a manutenção do sistema dependente sobre o qual foi construído todo o arcabouço do seu domínio.”

Árdua luta de classes, o caminho

Percebendo que a luta democrática e patriótica pelo desenvolvimento, a soberania nacional, em defesa da nação ameaçada pela voragem neoliberal, era no fundo um aspecto da luta de classes, inseparável da luta pelo socialismo na fase peculiar que o Brasil vivia, Amazonas era taxativo em suas conclusões acerca da evolução desse combate. No mesmo documento, o Programa Socialista, dizia: “Tais classes não podem mudar o quadro da situação do capitalismo dependente e deformado. Sob a direção da burguesia e de seus parceiros, o Brasil não tem possibilidade de construir uma economia própria, de alcançar o progresso político, social e cultural característicos de um país verdadeiramente independente. Na encruzilhada histórica em que se encontra o Brasil, somente o socialismo científico, tendo por base a classe operária, os trabalhadores da cidade e do campo, os setores progressistas da sociedade, pode abrir um novo caminho de independência, liberdade, progresso, cultura e bem-estar para o povo, um futuro promissor à nossa Pátria”.

Não eram formulações abstratas, propaganda vazia ou delirante, princípios gerais distantes da realidade nem calcados em dogmas. Referenciado no marxismo-leninismo e numa interpretação científica da evolução histórica do Brasil, de sua complexa formação, das peculiaridades nacionais, Amazonas tinha presente que a luta pelo socialismo no País não é um processo em linha reta. Na condução dessa luta, os comunistas – aconselhava – deviam tomar em consideração essas peculiaridades, assim como a correlação de forças estratégicas no plano mundial. Os processos internos e externos determinam que a luta pelo socialismo percorra várias etapas.

Tendo vivido intensamente o período da derrocada final do socialismo na URSS e no Leste europeu, compreendeu a viragem reacionária que esta contrarrevolução representou e as conseqüências que trouxe para o desenvolvimento da luta dos povos. Passamos a viver – dizia – um período de defensiva estratégica – que requereria acuidade das forças avançadas na solução de problemas novos.

Nos idos de 1992, quando a regra geral era o liquidacionismo, Amazonas foi firme na defesa dos princípios do socialismo científico, do marxismo-leninismo e da construção do socialismo, sobretudo da experiência de construção do socialismo na URSS, malgrado os graves erros ali cometidos. Ao tirar lições da derrota, orientou: “Embora em suas linhas mestras o socialismo científico seja idêntico em todos os países, sua concretização em cada lugar exige ponderar as particularidades locais, nacionais. Essas particularidades dão feição própria ao regime avançado que substitui o capitalismo. O modelo único de socialismo é anticientífico”.

Por compreender que a luta pelo socialismo tinha tudo a ver com a realidade brasileira e é uma luta contemporânea, não uma perspectiva longínqua, inacessível, mas uma exigência do desenvolvimento histórico atual, o camarada João Amazonas deixou indicações estratégicas e táticas importantes, consubstanciadas no capítulo intitulado “O caminho para alcançar o socialismo”, do já aludido Programa partidário.

Para Amazonas, a conquista do socialismo é um caminho de “árdua disputa” com “as classes retrógradas que dominam o país”. Ele identificava essas classes como “forças poderosas que não cederão facilmente as posições que detêm”. Sempre com o referencial teórico do materialismo histórico, dizia: “A máquina do Estado está em suas mãos. Utilizarão o engodo e as promessas jamais cumpridas, o monopólio da mídia, recorrerão ao arbítrio, apelarão para o fascismo, não vacilarão em juntar-se aos intervencionistas estrangeiros a fim de tentar conter e esmagar o movimento progressista. Todos os que almejam uma pátria livre e soberana, que desejam avanços contínuos nos terrenos político, econômico, social e cultural terão de enfrentar decidida e persistentemente as forças inimigas”.

Múltiplas batalhas

Esta concepção orientava seu pensamento tático e estratégico. Por isso, considerava que o caminho para o socialismo passa “pela realização de inúmeras batalhas em diferentes níveis com a ampla participação do povo”. Reafirmava a cada instante que a luta pelo socialismo não pode ficar restrita à propaganda revolucionária, sendo indispensável ao partido atuar no curso político real, estar presente nos pequenos e grandes combates do povo.

A compreensão da realidade brasileira e dos problemas estruturais do país foi decisiva para a fixação dos principais objetivos táticos e estratégicos em determinada etapa da luta do povo brasileiro e da atividade dos comunistas. “Importância particular na mobilização das massas, buscando isolar ou neutralizar os inimigos, tem a fixação de objetivos concretos de nível mais elevado”, dizia. E agregava: “Nesse sentido, adquire significado primordial a defesa da soberania e da independência nacional; a exigência de democratização ampla e profunda da vida do país; os reclamos da questão social em constante agravamento. São objetivos relacionados com a questão do poder, visando tirar o Brasil do atraso e da pobreza, garantir a liberdade para o povo, afirmar a identidade nacional. Essa luta apresenta não apenas aspecto tático. Perdurará por largo período e somente terminará com a vitória definitiva das forças progressistas. As classes dominantes não têm alternativa. Insistirão até o fim na política entreguista, antinacional, persistirão na via antidemocrática e antissocial”.

Este era o núcleo do pensamento tático e estratégico do velho João, que em tempo hábil o partido adotou como pensamento programático coletivo. Por isso o partido não se perde nas ínvias encruzilhadas que necessita percorrer. Este núcleo de ideias orienta a atuação nos campos eleitoral, parlamentar, no exercício de funções em governos nas diferentes esferas, na luta de massas, na ampla e flexível política de alianças, na sábia condução tática em cada momento peculiar do desenvolvimento político do País, na luta teórica-ideológica. É enfim, esse pensamento, a chave para compreender o papel da acumulação de forças no processo revolucionário: “Todo o procedimento político e organizativo, relacionado com o caminho para o socialismo – dizia Amazonas -, objetiva acumular forças, ganhar prestígio e influência no seio do povo. A conquista do socialismo é obra das amplas massas, dos trabalhadores em geral, sob a liderança do Partido Comunista. Exige, na atualidade, a criação de uma sólida frente nacional, democrática e popular, reunindo partidos, personalidades políticas e democráticas, organizações de massas, defensores da soberania nacional, agrupamento decidido a derrocar as classes reacionárias e a realizar as transformações de que o Brasil necessita”.

Pensamento em evolução

O pensamento tático e estratégico do Partido Comunista do Brasil foi plasmando-se ao longo do tempo. A visão ampla e flexível, simultaneamente firme e combativa, de acumular forças, foi desenvolvendo-se em cima das batalhas concretas.

Na luta contra a ditadura, na 6ª Conferência Nacional (1966), realizada em plena clandestinidade, o PCdoB formulou a ideia da “união dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e do imperialismo”. Quando a ditadura militar assumiu abertamente um caráter fascista e escolheu o terror de Estado como método de guerra contra o povo, os comunistas se alçaram em armas na Guerrilha do Araguaia, mantendo a perspectiva de luta política e de massas. Os comunicados das Forças Guerrilheiras do Araguaia, a Carta a um deputado federal, enviada pelo comando da guerrilha, a plataforma da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo pobre do interior, indicam a perspectiva política e de luta de massas dos comunistas naquele momento dramático.

Durante a ditadura militar, que foi a noite dos tempos para nossa Pátria, sob o tacão de generais fascistas, torturadores, opressores e entreguistas, os comunistas aberta ou clandestinamente, com a cara própria ou mimetizados, nunca fugiram aos embates políticos nem nunca deixaram de ser amplos e taticamente flexíveis. Ainda no auge do regime arbitrário, sob a presidência do general Geisel, algoz da Lapa, em cujo governo eram comuns as torturas e os assassinatos de opositores, o Partido abria o caminho da luta política e até mesmo da atuação parlamentar. Sob a orientação do documento “Conquistar a liberdade política, alcançar a democracia popular” (1976), da lavra do João, o Partido formulou as bandeiras de luta pela revogação dos atos e leis de exceção, pela anistia ampla, geral e irrestrita e pela convocação da Assembleia Constituinte livremente eleita.

A mesma perspectiva de aplicar uma tática ampla, combativa e flexível para acumular forças esteve presente na luta pelas Diretas-Já, no apoio crítico à Nova República, na ação legislativa e nas ruas durante os trabalhos da Constituinte (1987 e 1988), no apoio à nova Constituição e nas campanhas pela eleição de Lula presidente da República (1989, 1998, 1998 e 2002).

Com Lula

Por isso, Amazonas não teve dúvidas e se tornou um dos fundadores da Frente Brasil Popular, da memorável campanha Lula-lá de 1989. E foi um dos principais entusiastas e impulsionadores das campanhas do ex-metalúrgico, malgrado as diferenças de concepção e as divergências políticas, ideológicas e teóricas dos comunistas com o PT. Um dos últimos atos de João Amazonas, como presidente de honra do PCdoB, poucas semanas antes de sua morte, foi receber uma delegação composta por Lula e Zé Dirceu, na sede nacional do Partido, quando os dois dirigentes petistas foram pedir formalmente o apoio dos comunistas para a campanha vitoriosa que se iniciaria em seguida.

As atuais conquistas democráticas e patrióticas do povo brasileiro têm muito a ver com a contribuição de João Amazonas. O ciclo político que o país atravessa a partir da vitória de Lula, período que Amazonas não viveu, faz parte de seu legado político, ao tempo em que é uma realidade nova e de desenrolar dinâmico, propícia ao desenvolvimento e enriquecimento do pensamento estratégico e tático dos comunistas.

Partido com identidade comunista

A outra pedra de toque do pensamento e da ação do camarada João, a quem homenageamos no transcurso do seu centenário natalício, é o esforço persistente para construir um partido comunista forte, ideológica e politicamente capaz, à altura da sua missão histórica, ligado às massas, em especial aos trabalhadores, um partido com força militante, influência política ampla, presente nos acontecimentos políticos candentes, dotado de amplo horizonte histórico, cultural e teórico, enraizado no solo nacional, patriótico e internacionalista.

Este é o núcleo do pensamento de João Amazonas que orienta hoje os esforços da atual geração para construir um partido de massas e de quadros, renovado nas formas de atuação e de organização, na atualização de conceitos e métodos, mantendo sempre os princípios de um partido com identidade comunista, perspectiva estratégica socialista e marcado caráter de classe como partido dos trabalhadores.

Lembra-me bem o processo de elaboração do já citado Programa Socialista, entre 1992 e 1995, como da preparação do 9º (1997) e 10º (2001) congressos do Partido, período sobre o qual dou testemunho pessoal de uma convivência cotidiana com João Amazonas, em que germinavam as ideias de renovação programática, atualização estatutária e de procedimentos organizativos. Nos debates que realizávamos, o velho comunista se adiantava e nos aconselhava: “Construir um partido moderno, sim, renovado sim, mas sempre revolucionário, comunista e de princípios”.

Não tenho dúvidas em dizer que o momento de expansão e vitórias políticas que o PCdoB vive hoje faz parte do legado do camarada João. Avançar e superar debilidades requer tomar como referência constante os seus ensinamentos. Estou convicto de que – e esta é a melhor maneira de homenagear João Amazonas na passagem do centenário natalício – é de bom alvitre ter sempre presente seu pensamento estratégico e tático, sua concepção sobre o papel e a missão histórica do PCdoB e de sua constante construção como força revolucionária e militante. Este legado ganha força renovada na luta pelo salto civilizacional, o socialismo, propugnado pelo programa aprovado no 12º Congresso (2009), e nas atuais formulações táticas e estratégicas consubstanciadas na plataforma de luta por um Novo Plano Nacional de Desenvolvimento e pelas Reformas Estruturais Democráticas nas novas condições políticas e sociais vigentes no país a partir de finais de 2002, com a primeira eleição de Lula.

Também estamos convictos de que o partido de João Amazonas há de seguir o caminho de sua construção revolucionária nas novas condições históricas, enfrentando desafios quiçá maiores, problemas certamente mais complexos e inimigos talvez mais astutos e poderosos.

Passam os tempos, os homens vêm e vão, mas não a certeza e o desiderato dos comunistas. Esta foi outra lição do João. Mostrou que vale a pena lutar e viver.

*José Reinaldo Carvalho é secretário nacional de Comunicação do PCdoB

Fonte: Vermelho