Para os primeiros – principalmente os alemães –, verdades e normas devem ser absolutas e categóricas. Para os segundos, são regras provisórias forjadas à base de experiência e erro, que admitem exceções e devem ser revisadas e renegociadas segundo as contingências práticas. Quando David Cameron, em nome dos interesses da City, centro financeiro de Londres, exigiu que o Reino Unido fosse isentado das medidas draconianas propostas por Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, julgava estar propondo um compromisso razoável. Mas “ninguém entendeu o que Cameron queria”, disse um diplomata centro-europeu ao Financial -Times, “falávamos de grandes temas, de salvar o euro, e ele vinha questionar migalhas. Não era a hora nem o lugar”.

Até agora, a Zona do Euro exigia que os países limitassem o déficit a 3%, exigência que nenhum país cumpria integralmente, muito menos em tempos de crise. O acordo Merkozy exige que, usem ou não o euro, os países membros praticamente zerem seu “déficit estrutural” (de longo prazo), limitado a 0,5%, e os pune caso ultrapassem 3%, mesmo temporariamente. Também prevê ampliar o fundo de resgate europeu para 500 bilhões de euros até meados de 2012 e reforçar o capital do FMI em 200 bilhões para viabilizar o socorro conjunto a países em dificuldades. E centraliza em Bruxelas a regulamentação e fiscalização dos mercados financeiros, incluindo serviços dominados pela City, tais como mercados de balcão e câmaras de compensação. Veta regras nacionais sobre exigências de capital, cria imposto sobre transações financeiras (similar à CPMF) e proíbe ou limita severamente as vendas a descoberto e as transações automatizadas instantâneas.

Tudo isso protege os bancos europeus continentais – fragilizados e semiparalisados pela crise das dívidas, mas acostumados com um ambiente mais regulamentado e transparente – e desfere um severo golpe no capitalismo ultracompetitivo e desregulamentado ao estilo anglo-saxão, responsabilizado pela crise. Os bancos britânicos, como os estadunidenses, cresceram graças a uma desregulamentação que (com a ajuda dos paraísos fiscais em colônias britânicas como as Ilhas Cayman, Virgens, Bermudas etc.) permitiu negócios tão ágeis e inovadores quanto arriscados e obscuros – e no frigir dos ovos só evitaram a falência porque os governos, de cuja fiscalização era tida como desnecessária, assumiram e socializaram seus prejuízos.

Submetida à mesma regulamentação dos bancos continentais, a City perde as vantagens comparativas que lhe permitiram dominar 20% do mercado mundial de fundos de hedge e investimento e 40% ou mais das operações de câmbio e derivativos sobre juros. E o Reino Unido arrisca-se a perder seu setor mais competitivo e sua principal fonte de divisas, uma vez que as reformas neoliberais desmantelaram sua indústria desde os anos 1980.

Quando Cameron cumpriu a ameaça e vetou a inclusão das novas regras no Tratado de Lisboa, que rege a União Europeia, Sarkozy e Merkel lhe viraram as costas e propuseram o acordo como tratado entre governos europeus. Dos 27 integrantes da UE, 23 o aceitaram imediatamente e outros três – Hungria, Suécia e República Tcheca – concordaram em princípio, embora devam o submeter a seus parlamentos. O novo tratado parece ter ficado à margem das estruturas formais da União Europeia – não está claro se a Comissão e a Corte Europeia poderão ser usadas para fazer cumpri-lo –, mas o Reino Unido estará à margem do sistema europeu.

Alguns jornais britânicos fizeram comparações implícitas ou explícitas com a situação de 1940, quando a vitória nazista na França isolou Londres: “Enquanto a poeira assenta, emerge uma fria nova Europa com a Alemanha no comando”, mancheteou The Guardian, enquanto The Sun publicava uma foto de Cameron vestido como Winston Churchill. The Independent saiu com “A União Europeia deixa o Reino Unido”, imitando o legendário jornal vitoriano que noticiou que “O continente está isolado” quando espessa neblina bloqueou o Canal da Mancha. A Reuters buscou analogias em um passado ainda mais remoto: “Sarkozy realiza o sonho de Napoleão: uma Europa de nações com a França na cabine do piloto e o Reino Unido deixado de lado”.

De volta de Bruxelas, Cameron foi recebido pelos jornais e deputados conservadores – muitos deles favoráveis ao rompimento total com a União Europeia – como se fosse um herói da retirada de Dunkerque, enquanto acusavam Sarkozy de ter “capitulado ante Berlim”. Mas a recepção de trabalhistas e liberal-democratas, tradicionalmente pró-europeus, foi bem mais fria. O próprio vice-premier Nick Clegg, liberal-democrata, criticou a decisão, embora continue a apoiar o governo. As mídias liberais, como The Financial Times, The Economist e a BBC, lamentaram o fracasso de Cameron.

Verdade é que o primeiro-ministro britânico sofreu contundente derrota diplomática ao superestimar suas cartadas ante o determinado desespero de Merkel e Sarkozy por impor a ordem unida na Zona do Euro, mas tinha poucas opções e talvez não tenha escolhido a pior de seu ponto de vista.

Mesmo sem ter voz no acordo, o Reino Unido provavelmente terá de contribuir com sua parte no reforço do capital do FMI se quiser continuar na União Europeia. E se o euro sobreviver, a City será praticamente excluída do mercado financeiro continental, mas ainda terá acesso a outros mercados globais que poderia perder (sem ter a garantia de manter sua atual fatia do mercado europeu) caso se submetesse. E se o euro implodir – a probabilidade hoje é de 40%, segundo The Economist – o Reino Unido não estará pior que os demais. Ao mesmo tempo, Cameron satisfaz o euroceticismo crescente do Partido Conservador e do eleitorado britânico e ganha prestígio interno, ao menos no curto prazo.

Outra verdade é que não houve nenhum confronto entre “liberdade” britânica e “autoritarismo” continental, apenas entre duas maneiras de tentar proteger interesses financeiros não coincidentes. Dos dois lados do Canal da Mancha, hoje “os banqueiros são os ditadores do Ocidente”,como escreveu Robert Fisk: os Goldman Sachs e RBS equivalem aos Hosni Mubarak e Ben Ali. O Reino Unido é governado “pelos bancos e para os bancos”, escreveu Aditya Chakrabortty, principal articulista econômico de The Guardian: o “interesse nacional britânico” invocado por Cameron em Bruxelas é apenas o interesse do setor financeiro, no qual o governo britânico despejou 1,19 trilhão de libras desde a crise de 2008. Isso fez explodir a dívida e o déficit públicos, mas por outro lado a City passou a responder por metade dos fundos do Partido Conservador.

Do outro lado do canal, o grau em que os mecanismos democráticos e as próprias instituições europeias estão sendo postos de lado para salvaguardar o euro, ou mais exatamente os credores em euros, também causa alarme. Queixas contra a Alemanha e a suposta ascensão do “IV Reich” pipocam nas mídias da Itália, Espanha, Portugal e Grécia – e não se trata só de políticos populistas, mas também de pensadores sérios.

Para o historiador e eurodeputado português Rui Tavares (independente de esquerda), na madrugada de 9 de dezembro “Merkel e Sarkozy deram um golpe de morte à União Europeia”. A seu ver, a concretização de um sistema de limites à dívida e sanções automáticas é uma construção intergovernamental que tornou obsoleto o Parlamento Europeu e a União Europeia. As decisões “serão tomadas no eixo Berlim-Frankfurt, com gesticulação de Paris e um verniz de Bruxelas”, mas serão inúteis.

“Poderiam até tatuar os limites (de dívida) na testa e aplicar as sanções sob a forma de choques elétricos. O que é insustentável não se sustentará. Se o pânico nos mercados não derrubar os governos periféricos já nas próximas semanas ou meses, a depressão chegará para impossibilitar o exercício nos próximos anos. Após cada fracasso, chegarão mais imposições do centro. Alguém julga que isto será politicamente sustentável sequer a médio prazo? O nacionalismo agressivo tomará conta de partes significativas do eleitorado.”

Posicionamento ainda mais sintomático e muito mais surpreendente vem da própria Alemanha, da pena do maior paladino vivo do Iluminismo europeu: Jürgen Habermas, filósofo da razão comunicativa e do diálogo democrático. Para ele, o acordo Merkel-Sarkozy lançou a Europa numa era pós-democrática: “Querem estender o federalismo do Tratado de Lisboa em uma gestão intergovernamental pelo Conselho Europeu. Tal regime possibilitará transferir os imperativos dos mercados aos orçamentos nacionais sem legitimação adequada, usando ameaças e pressões para obrigar parlamentos esvaziados de poder a pôr em vigor acordos informais e sem transparência. Os chefes de governo transformarão o projeto europeu no seu oposto. A primeira democracia transnacional se tornará em um arranjo para exercer uma espécie de governo pós–democrático, parti-cularmente eficaz por ser disfarçado”.

Em entrevista ao jornalista Georg Diez, de Der Spiegel, Habermas foi ainda mais contundente: “Um pouco depois de 2008, entendi que o processo de expansão, integração e democratização não progride automaticamente por necessidade interna, é reversível. Pela primeira vez na história da União Europeia, experimentamos de fato um desmantelamento da democracia. Eu não pensava que isso fosse possível. Se o projeto europeu falhar, quanto tempo levará para voltar ao status quo? Lembre-se da Revolução Alemã de 1848 (a ‘Primavera dos Povos’): quando fracassou, precisamos de cem anos para recuperar o mesmo grau de democracia de antes”.

Do outro lado do Atlântico, também o economista Paul Krugman vê EUA e Europa em depressão que, mesmo se ainda não é tão grave quanto a dos anos 1930, já ameaça a democracia. Populismos de direita como o dos “Verdadeiros Finlandeses” e do Partido da Liberdade austríaco disputam o poder com partidos tradicionais e, na Hungria, o partido direitista Fidesz, já no poder com ampla maioria parlamentar, está emendando a Constituição para controlar a mídia e o Judiciário, colocar o principal partido de esquerda (ex-comunista) na ilegalidade e se apoderar irreversivelmente do poder.

Na Itália, esse populismo de direita é representado pela Liga Norte, que se recusou a apoiar o governo “tecnocrático” de Mario Monti e agora defende que o Norte da Itália se separe tanto do resto do país quanto da Zona do Euro, recriando a lira.  E o primeiro-ministro mostra pouca habilidade ao tentar impor aos italianos uma improvável “revolução no modo de pensar”, que equivale a transformá-los em alemães da noite para o dia. Nem a extrema-esquerda -conseguiria ser tão utópica.

Para conter a rebelião e as paralisações das centrais sindicais, Monti amenizou o pacote previdenciário, mas criou imposto sobre contas bancárias e proibiu pagamentos em dinheiro de mais de mil euros, contrariando os hábitos enraizados que levaram a Itália a exigir do BCE, na virada do milênio, a criação da nota de 500 euros, cuja razão de existir é facilitar a circulação da poderosa economia paralela. Não encontraria outra maneira de enfurecer tantos italianos ao mesmo tempo.

E nem por isso o problema financeiro parece estar sequer a caminho de uma solução. Em 14 de dezembro, a Itália teve de pagar juro de 6,47% para rolar 3 bilhões de euros de dívida com bônus de cinco anos e o euro caiu abaixo de 1,30 dólar. Sarkozy tenta minimizar como“superável” a já inevitável perda da classificação AAA da dívida da França. Os sacrifícios do bem-estar social, dos empregos e da democracia europeia não bastam para aplacar a fúria dos deuses do mercado.

Fonte: CartaCapital