A Revolução Socialista de Outubro de 1917 ocupa um lugar de reconhecida importância histórica. Nenhum outro acontecimento marcou tão profundamente o trajecto do século XX. Nenhum outro acontecimento do século XX assumiu tão grande influência na luta dos trabalhadores.

A História não se repete. Contudo, para que os povos e os trabalhadores possam fazer História, a experiência russa de 1917 é um evento que não pode ser passado em branco pelos comunistas e revolucionários de todo o mundo. Não só pelas lições que podemos retirar: erros e falhanços, mas também conquistas e aquisições civilizacionais. Mas também pelo facto de ser a primeira revolução socialista da era do capitalismo monopolista e financeiro: o imperialismo.

1991 não fechou um ciclo histórico. A queda do Muro de Berlim e da URSS, é certo, colocaram um ponto final nas experiências socialistas no século XX realizadas um pouco por todo o Leste europeu. Todavia, estão muito longe de se caracterizar como o fim da luta de classes ou o fim da luta pelo socialismo. O ciclo histórico da revolução socialista e da luta e aspiração por uma sociedade sem classes são mais actuais do que nunca, face à actual barbárie imperialista. Dessa forma, a Revolução de Outubro, sem ser vista como uma comemoração saudosista, corresponde a um evento maior na história das lutas operárias e populares contra a exploração e a opressão capitalistas.

Neste artigo procurar-se-á dar conta de um aspecto particular da Revolução de 1917: o processo revolucionário de Fevereiro a Outubro visto pela obra de Lenine e, em paralelo, apresentar os traços fundamentais do método leninista de análise do grau de contradições de uma formação social e da correlação de forças entre as várias classes. O nosso propósito passa por mostrar como tal método não acaba em si mesmo, mas é um ponto de partida para a acção política, para a transformação prática (e) revolucionária da sociedade. Assim, tentar-se-á demonstrar a importância do método leninista para a compreensão da paisagem social e política, para a prática correcta e coerente da vanguarda revolucionária (naquele caso, o Partido Bolchevique) e, o que é ainda mais significativo num contexto revolucionário, como o Partido de vanguarda se torna, na prática e não apenas em palavras, como a força dirigente da classe trabalhadora. Este é um ponto capital, na medida em que quando ocorre a Revolução de Fevereiro de 1917, o Partido Bolchevique está longe de ser a força política com maior influência de massas (em Fevereiro conta com 40,000 membros) e com maior peso na determinação da evolução do processo revolucionário. Em alguns meses o Partido Bolchevique vai passar de um estado de partido de “segunda linha”, no que apenas diz respeito à direcção do processo revolucionário e na condução política das massas, para o papel de força política hegemónica no seio do operariado russo, como partido dirigente e condutor do caminho que as massas operárias teriam de trilhar até à conquista do poder de Estado em 25 de Outubro (7 de Novembro no calendário ocidental) de 1917. Em vésperas da Revolução de Outubro o Partido Bolchevique agrupa nas suas fileiras qualquer coisa como 300,000 militantes organizados, quase dez vezes mais do que 10 meses antes.

Em todo este domínio Lenine tem um papel fulcral na definição do método de análise da situação russa, transformação e aplicação de uma linha programática e táctica correcta com o que se estava a passar e na mencionada constituição do Partido Bolchevique em força dirigente da revolução.

A Revolução de Fevereiro e o panorama geral

Lenine e boa parte dos principais dirigentes bolcheviques encontravam-se exilados na Suiça quando estala a Revolução de Fevereiro e o czar é derrubado. Como é evidente, Lenine saudou entusiasticamente tal feito do proletariado russo e descreve-o da seguinte maneira:

«Os operários de Petrogrado derrubaram a monarquia czarista. Ao cabo de uma luta heróica contra a polícia e as tropas do czar, eles começaram por se revoltar sem armas contra as metralhas e conseguiram ganhar para o seu lado a guarnição de Petrogrado. Os mesmos eventos aconteceram em Moscovo e noutras cidades. Abandonado pelas suas tropas, o czar capitulou, assinando a sua capitulação e a dos seus filhos» (Lenine, 1974e, p.378).

Com a argúcia que sempre lhe caracterizou, Lenine não se fica pela mera descrição factual dos acontecimentos, mas dá conta do significado político de Fevereiro: «a primeira revolução engendrada pela guerra imperialista mundial eclodiu. Essa primeira revolução não será certamente a última» (Lenine, 1974c, p.325). Nos seus escritos principais de Fevereiro e Março de 1917, Lenine aponta o principal factor para o derrube do czar: o interesse de amplas classes na queda do czar. Ou seja, tanto a burguesia como o proletariado (e o campesinato) partilhavam um sentimento comum contra o domínio imperial do czar, a burocracia estatal e os proprietários fundiários de tipo feudal. Mais tarde, em face da torrente revolucionária, a burguesia e seus partidos colocar-se-ão ao lado dos sectores mais reaccionários e retrógrados dos sectores sociais e políticos derrubados em Fevereiro. Voltaremos ao assunto. Entretanto, temos assim dois grandes blocos – um popular e um outro burguês – com uma hostilidade política compartilhada contra o czar, não esquecendo as distintas posições sobre o rumo a dar ao processo revolucionário.

Apesar de tudo, esta não era uma revolução qualquer, mas algo inédito e que a burguesia não tinha visto até então. Em todas as revoluções burguesas (1383-85 em Portugal, 1525 na Alemanha, 1640-1688 na Inglaterra, 1789 e 1830 na França ou 1848 em quase todo o continente europeu) a burguesia ao lutar contra a nobreza e a aristocracia feudal e/ou absolutista, lançava o proletariado na luta política e esse foi sem dúvida um factor para a sua aprendizagem e maturação política. Todavia, a classe trabalhadora, por várias ordens de razões, nunca tinha sido capaz de tomar o poder de Estado em todo um território nacional (a Comuna de 1871 praticamente restringiu-se a Paris e as experiências em cidades como Marselha ou Lyon foram ainda mais curtas). Ora, em 1917 o proletariado russo vai colocar-se numa posição de desafiar abertamente a burguesia na luta pelo poder político e, consequentemente, na luta pela dominância política e económica na sociedade russa.

Que condicionantes permitiram, então, que as possibilidades de o proletariado disputar o poder de Estado à burguesia estivessem presentes? Enunciaremos duas que nos parecem nucleares: 1) a crise do tipo de Estado semi-feudal russo; 2) a dualidade de poderes. Lenine vai aperceber-se destes dois factores objectivos, bem como do nível de organização da classe operária dos centros urbanos russos, e a partir daí apontará as tarefas a concretizar pelo Partido Bolchevique. Antes de se resenhar as propriedades e mecanismos que estão na base da crise do Estado e da dualidade de poderes, importa esboçar as linhas mestras e mais gerais da situação revolucionária de 1917.

Em primeiro lugar, Lenine assume que a Rússia se encontra numa nova conjuntura detonada pela Primeira Guerra Mundial, em que «cada revolução oferece uma tal riqueza de conteúdo, desenvolve formas de luta e de correlação entre as forças combatentes de tal modo inesperadas e originais» (Lenine, 1974c, p.325). Nesse sentido, Lenine define as forças políticas fundamentais em jogo: «1) a monarquia czarista, os proprietários fundiários feudais, o velho corpo de funcionários e generais; 2) a Rússia burguesa e latifundiária, atrás da qual se arrastava a pequena-burguesia; 3) o Soviete de deputados operários, procurando tornar seus aliados todo o proletariado e toda a massa mais pobre da população» (Lenine, 1974c, p.328). Face a este quadro de classes em confronto, surgiu o novo governo provisório. O primeiro governo surgido da queda do czarismo exprimia um novo bloco no poder, onde a sua fracção hegemónica era agora a burguesia. Não obstante, o velho poder não tinha sido aniquilado (apesar de formalmente ausente do governo provisório), apenas tinha sido relegado para uma posição subalterna relativamente à burguesia. Esta, por seu turno, continuaria a política imperialista de rapina, ao nível externo, e de exploração e de ataque às condições de vida do proletariado e do pequeno campesinato, isto ao nível interno. Portanto, para a burguesia, Fevereiro não era uma oportunidade para superar de vez o carácter feudal que ainda tinha larga presença na sociedade e economia russas nem de desbaratar de uma vez por todas as forças políticas que lhe davam suporte, mas antes subordinar todos esses resquícios feudais aos seus interesses económicos e políticos.

Logo, havia uma diferença enorme entre os interesses do proletariado e das classes populares russas que afirmavam peremptoriamente uma posição de superação da situação existente – a guerra, a fome, a miséria, a terra nas mãos dos agrários, etc. – e a burguesia que procurava tornar-se a principal classe dominante russa na rapina internacional imperialista.

É neste âmbito que Lenine ainda no início de Março de 1917 compreende a orientação da burguesia e do seu governo: «a guerra ligou uns aos outros com cadeias de ferro as potências beligerantes, os grupos beligerantes de capitalistas de capitalistas, os senhores do sistema capitalista, os escravistas da escravatura capitalista. Um só novelo sangrento – eis o que é a vida sócio-política do momento histórico que atravessamos» (Lenine, 1974c, p.328). Carácter sanguinário da(s) burguesia(s) (russa, alemã, francesa, inglesa, etc.) e que no caso em questão era agravado pelo facto de os partidos com maior influência junto do operariado e do campesinato (os mencheviques e os socialistas-revolucionários) apoiarem e mais tarde entrarem no Governo Provisório, bem como não se opunham à continuação da guerra. Daí que Lenine num telegrama enviado aos primeiros bolcheviques que deixavam a Suiça em direcção à Rússia, asseverasse que a postura do Partido em relação ao novo governo passasse pela «desconfiança absoluta e nenhum apoio ao novo governo, suspeitando sobretudo de Kerensky» e no que dizia respeito aos restantes partidos apoiantes do governo, «nenhuma aproximação» (Lenine, 1974b, p.321). Sobre os mencheviques e socialistas-revolucionários, logo em Abril Lenine vai defender
«Um trabalho de crítica, esclarecimento dos erros dos partidos pequeno-burgueses socialista-revolucionário e social-democrata (menchevique), trabalho de preparação e coesão dos elementos do partido conscientemente proletário, comunista, libertação do proletariado da embriaguez pequeno-burguesa geral». (Lenine, 1978a, p.27).

Traçados os eixos fundamentais que enformavam o panorama geral nos primeiros dois meses do processo revolucionário de 1917, torna-se agora pertinente discutir os dois factores objectivos que determinavam o carácter socialista da revolução em mãos: a crise do Estado e a dualidade de poderes.

1) A crise do Estado. Num primeiro momento importa descrever o Estado czarista de acordo com a sua natureza de classe. Sem querermos ser exaustivos, bastará para isso tomar o poder político czarista como semi-feudal. Isto é, era um Estado predominantemente organizado fora de um burocratismo assente em coordenadas burguesas modernas (recrutamento dos funcionários estatais aberto a todas as classes sociais; ideologia do Estado como auto-proclamado defensor do interesse geral de toda a população e situado acima dos interesses das classes e dos indivíduos; direito baseado na igualdade jurídica formal entre todos os cidadãos, etc.). Era, portanto, um Estado detido quase em exclusividade por burocratas provenientes ou ligados à aristocracia nobiliárquica e em que os principais cargos do aparelho de Estado eram fechados a membros da burguesia. Isto obrigou a burguesia a lançar-se na contestação e luta pelo poder de Estado já que este não era compartilhado como na Alemanha de Bismarck, mas era quase monolítico e criava uma contradição crescente entre uma classe economicamente (em vias de se tornar) dominante mas politicamente amarrada. Num mundo crescentemente dominado por nações capitalistas, a permanência de um aparelho de Estado feudal e de uma economia com relações de produção capitalistas restritas, era cada vez mais inviável.

A crise do Estado czarista remonta, muito provavelmente, à derrota da Guerra da Crimeia (1854-56) e estende-se durante todo o século XIX. Neste período, com particular incidência no último quartel do século, o número de revoltas camponesas e de operários acentua a crise de legitimidade e de estabilidade do Estado. A derrota na guerra com o Japão (1904-1905) e a revolução de 1905 que colocou Petrogrado, Moscovo e outras cidades industriais em pé de guerra, eram claros sinais, por um lado, da cada vez maior incapacidade de o Estado russo manter uma posição de potência internacional e, por outro, a Rússia torna-se o Estado europeu mais vulnerável às lutas populares e onde estas estão entre as mais avançadas da época.

A repressão sangrenta do movimento revolucionário de 1905, no curto prazo, permitiu salvaguardar o poder de Estado nas mãos do czar. Mas no médio/longo prazo, demonstrou ser a perda de um pilar estruturante para a sobrevivência de qualquer Estado não operário: o controlo ideológico e a reivindicação da sua legitimidade como poder político. Isso significou que entre 1905 e 1917, o Estado czarista apenas se sustentou na permanência de um aparelho repressivo e onde os aparelhos ideológicos de controlo e enquadramento das massas eram vistos pelos trabalhadores com clara desconfiança. Assim, a Primeira Grande Guerra resultou na derrota catastrófica do exército russo frente ao inimigo alemão. De facto, a instituição militar – sustentáculo último do Estado – não só “caía aos bocados” como, por seu turno, as deserções massivas de soldados a partir dos finais de 1916 desembocaram numa crise profunda. A acrescentar às deserções juntavam-se «os soldados russos que fuzilavam os seus oficiais» (Lenine, 1974d, p.355) o que era um claro indicador da subversão da cadeia de comando do exército imperial(ista) russo. Em sintonia com estes acontecimentos, vislumbrava-se «a completa separação do governo das tropas finlandesas [na altura pertencentes à Rússia] e da esquadra do Báltico. Vemos a declaração do oficial Dubassov, não bolchevique, que diz em nome de toda a frente que os soldados não combaterão mais» (Lenine, 1978d, p.321-322). Em síntese, o que sobrava do exército czarista em 1917 era um conjunto muito reduzido de tropas fiéis, a desmoralização completa, um clima de desmobilização e de deserção ainda maior e, correlativamente, a tendência para o armamento do povo e a passagem de divisões militares inteiras para o lado do proletariado em luta. É daqui que surge um dos vectores constitutivos da dualidade de poderes.

2) A dualidade de poderes. Ao mesmo tempo que o Estado czarista se encontrava em decomposição acelerada, a crise económica e o abastecimento alimentar e energético deteriorava-se, a fome e o desemprego alastravam e, em simultâneo com o derrube do czar (res)surgem os sovietes de operários. Isto é, formas de organização operária de base, com um grau elevado de espontaneidade e onde o proletariado russo se organizava autonomamente por zona residencial e/ou por fábrica. Assim, ocorria uma unificação do poder económico e político numa nova instituição social e onde os operários elegiam os seus delegados directamente. Estes eram amovíveis a qualquer momento e expressavam as vontades das assembleias e plenários operários de base. Daqui imanava o surgimento de um poder de classe paralelo ao poder político oficial do governo da burguesia e dos partidos conciliadores (mencheviques e socialistas-revolucionários). Lenine caracterizava a nova situação pós-derrube do czarismo da seguinte maneira:

«Esta dualidade de poderes manifesta-se na existência de dois governos: o governo principal, autêntico e efectivo da burguesia, o governo provisório de Lvov e companhia, que tem nas suas mãos todos os órgãos do poder, e um governo suplementar, secundário, de controlo, personificado pelo Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado, que não tem nas suas mãos os órgãos do poder de Estado, mas se apoia directamente na indubitável maioria absoluta do povo, nos operários armados e soldados» (Lenine, 1978a, p.25).

Obviamente estes dois poderes não poderiam coexistir indefinidamente na medida em que «num Estado não podem existir dois poderes. Um deles tem de ser reduzido a nada» (Lenine, 1978a, p.26).
Em teoria, a orientação dos acontecimentos parecia estar a dar vantagem ao proletariado e aos soldados organizados em sovietes. A continuação do envolvimento da Rússia na guerra pelo governo provisório e a consolidação do poder operário com a difusão dos sovietes um pouco por todo o território do ex-Império poderiam, à primeira vista, indiciar uma vitória certa contra o novo poder burguês. Porém, Lenine e o Partido Bolchevique porque estavam armados com uma teoria revolucionária e porque sabiam municiar um método de análise testado em duas décadas de luta perceberam algo mais e foram além da análise linear acima desenhada.

A verdade é que se a energia espontânea das massas é o motor da revolução, também não é menos verdade que não há veículo motorizado sem condutor. Por outras palavras, não basta a espontaneidade das massas para derrotar a burguesia mas é igualmente necessária a condução política da revolução, a presença de uma organização de vanguarda na liderança do movimento de massas. Tal papel de vanguarda não decorre da afirmação em palavras ou por auto-decreto mas da prática efectiva da luta concreta das classes em conflito. Ora, o que se passava nos sovietes e com especial destaque no CEC (Comité Executivo Central) do Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, é que estes eram maioritariamente controlados pelos partidos conciliadores com o governo burguês. Esse facto era um poderoso factor de amortecimento de amplas camadas operárias que continuavam a votar e a apoiar massivamente os mencheviques e os socialistas-revolucionários. Lembremos que mesmo em Junho de 1917 os bolcheviques ainda detinham apenas cerca de 10% dos delegados ao I Congresso de Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia (apenas 105 do total de 1090 de delegados eram bolcheviques). Como afirmava Lenine no escrito “As tarefas do proletariado na nossa revolução” (desenvolvimento extensivo das Teses de Abril), «o Soviete de deputados soldados e operários de Petrogrado, que goza, segundo todos os indícios, da confiança da maioria dos Sovietes locais, entrega voluntariamente o poder de Estado à burguesia e ao seu Governo Provisório, cede-lhe voluntariamente a primazia, concluindo com ele um acordo para o apoiar, e contenta-se com o papel de observador» (Lenine, 1978a, p.25). Dado esse contexto específico de tentativa de controlo dos sovietes pela burguesia e partidos reformistas e dado todo o panorama geral aqui traçado que tarefas se colocavam ao Partido Bolchevique para inverter a direcção da situação, isto é, de lançar o proletariado na luta pelo socialismo?

Tarefas colocadas aos bolcheviques

Em Abril de 1917, quatro grandes questões confrontavam Lenine na sua chegada à Rússia em ebulição:

1) Transformar a guerra imperialista em revolução socialista:

«Nós queremos reconstruir o mundo. Queremos pôr fim à guerra imperialista mundial, na qual estão envolvidos centenas de milhões de homens, à qual estão ligados centenas de milhões de homens e à qual não se poderá pôr fim com uma paz verdadeiramente democrática sem a revolução proletária» (Lenine, 1978a, p.45).

2) Definir uma correcta política de alianças tanto no plano interno como externo. Daí que Lenine tenha exposto, de um lado, «a grande massa da população dos semiproletários e dos pequenos camponeses da Rússia» e, de outro lado, «o proletariado de todos os países beligerantes e de todos os países em geral» (Lenine, 1974c, p.335 e 336) como os aliados fundamentais da classe operária russa.

3) A necessidade de o proletariado tomar o poder de Estado: «nós temos necessidade de um poder revolucionário, temos necessidade (por um certo período de transição) de um Estado (…); somos pela utilização revolucionária das formas revolucionárias do Estado na luta pelo socialismo» (Lenine, 1974d, p.353). Desta frase pode-se retirar a central relevância da conquista do poder de Estado, da necessidade em conquistar o poder político em ordem a se iniciar, posteriormente, a socialização dos meios de produção e, em paralelo, combater a reacção contra-revolucionária.

4) Perante estes desafios e tarefas prementes o Partido Bolchevique tinha de estreitar ainda mais a ligação às massas, ganhá-las para uma linha revolucionária e desenvolver um trabalho partidário de propaganda e agitação num nível quantitativa e qualitativamente superior. Ou seja, «a propaganda e a agitação pela revolução social deve revestir um carácter o mais concreto, o mais palpável e o mais imediatamente prático possível, de modo a que seja não só inteligível aos operários organizados, mas também à maioria dos explorados, dizendo-lhes que o jugo do capitalismo é incapaz» (Lenine, 1974a, p.156) de satisfazer as suas necessidades e interesses. A partir daqui, Lenine lança a seguinte palavra de ordem a todo o Partido:

«Organizai-vos em cada fábrica, em cada regimento e em cada companhia, em cada bairro. Trabalhai pela organização em cada dia e em cada hora, trabalhai vós mesmo, pois este trabalho não pode ser confiado a ninguém. Procurai conseguir com o vosso trabalho que a completa confiança das massas nos operários de vanguarda se vá formando gradual, firme e indestrutivelmente. Eis o conteúdo fundamental, eis a lição principal de todo o curso da revolução. Eis a única garantia do êxito.

Camaradas operários! Exortamo-vos a realizar um trabalho difícil, sério e infatigável, que una o proletariado consciente, revolucionário, de todos os países. Este caminho, e só este, conduz à saída, à salvação da humanidade dos horrores da guerra, do jugo do capital» (Lenine, 1978b, p.101-102).

Este vasto cenário é traçado por Lenine em Março e Abril de 1917 e recebe a contribuição dos pontos de vista e das experiências de militância provenientes dos seus camaradas bolcheviques. Portanto, toda a súmula de experiências, de vivências e de individualidades inteiramente dedicadas à causa e ao ideal comunista desembocaram na realização da VII Conferência de Abril do POSDR (bolchevique). Aí todo o Partido consagraria a maioria das análises e recomendações práticas desenvolvidas por Lenine e adoptaria o tipo de intervenção táctica que lhe iria permitir tornar-se na força política dirigente do processo revolucionário.

O processo revolucionário de Março/Abril até à vitória em Outubro

No dia 20 de Abril de 1917 o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Miliukov, confirmava a decisão do governo provisório em respeitar todos os tratados concluídos pelo governo do czar, ou seja, continuar com a presença na Rússia na guerra imperialista. No dia seguinte o operariado de Petrogrado realiza uma manifestação de protesto conseguindo juntar 100 mil operários e soldados. Face à contestação operária o governo provisório recua tacticamente. Demite Miliukov e coopta vários membros do Comité Executivo Central dos Sovietes: Skobelev, Tchernov, Tsereteli. Era a entrada de ministros dos partidos conciliadores no governo provisório que procurava a todo o custo derrubar o poder paralelo dos sovietes operários e camponeses. Entretanto, Kerensky muda de pasta governamental e passa a Ministro da Guerra e da Marinha. O novo executivo, dada a sua natureza de classe, em nada correspondia aos anseios revolucionários das massas:

«Vejamos o que procuravam alcançar as massas de operários e camponeses ao realizar a revolução. Que esperavam elas da revolução? É sabido que esperavam liberdade, paz, pão e terra. E o que vemos hoje?
O povo quer a paz. Mas o governo reiniciou a guerra de conquista na base dos mesmos tratados secretos estabelecidos pelo ex-czar Nicolau II com os capitalistas ingleses e franceses, no interesse da pilhagem de outros povos pelos capitalistas russos.

Não há pão. A fome aproxima-se novamente. Toda a gente vê que os capitalistas e os ricos obtêm lucros inauditos com os preços altos e absolutamente nada se faz para um controlo sério da produção e da distribuição dos produtos pelos operários. Os capitalistas tornam-se cada vez mais insolentes, põem os operários na rua, e isto no momento em que o povo sofre a falta de víveres e de meios de subsistência.
Numa longa série de congressos, a imensa maioria dos camponeses declarou alta e claramente que considera a propriedade latifundiária da terra como uma injustiça e um roubo. E o governo provisório continua há meses a enganar os camponeses e a enche-los de promessas e adiamentos» (Lenine, 1978c, p.139-140).

O prolongamento desta situação iria resultar na convocação de uma manifestação por parte do Partido Bolchevique para o dia 10 de Junho. A esta convocatória responderia o CEC e o governo provisório com a proibição de manifestações de rua durante 3 dias, inviabilizando assim a manifestação. O Partido Bolchevique cancela a manifestação. No dia 12 a direcção socialista-revolucionária/menchevique do Congresso dos Sovietes aprovou uma resolução acerca da realização de uma manifestação para o dia 18. O objectivo era claro: ganhar as massas para o lado do governo provisório e passar a imagem de que a população estava de acordo com os propósitos do governo em continuar com a guerra imperialista. No dia da manifestação (18 de Junho) participaram 500 mil operários e soldados de Petrogrado. Contudo, a maioria dos participantes desfilou ao som das palavras de ordem do Partido Bolchevique contra a guerra imperialista o que constituiu um êxito retumbante do Partido de Lenine, evidenciando a sua crescente influência e prestígio junto das massas.

A esta grande iniciativa das massas operárias da capital seguiu-se a organização de uma nova manifestação para os dias 3 e 4 de Julho. As massas predispunham-se a realizar um levantamento armado contra o governo provisório. Mais de 500 mil operários saíram às ruas para preparar um ataque. Os manifestantes exigiam que o CEC dos Sovietes tomasse o poder nas suas mãos e o entregasse ao povo.

Ao mesmo tempo, o Partido Bolchevique compreendeu que o sucesso de tal iniciativa não estava de modo algum assegurado e empreendeu esforços para que a manifestação decorresse de forma pacífica e ordeira. Assim aconteceu. Mesmo assim o governo provisório, com o consentimento do CEC socialista-revolucionário e menchevique, lançou destacamentos de soldados e cossacos contra-revolucionários que abriram fogo sobre os manifestantes. Iniciou-se a repressão aberta da luta operária e a perseguição aos bolcheviques. Estes vêem-se obrigados a passar à clandestinidade.

Porém, aumentava o fosso entre os interesses e aspirações do proletariado russo e da burguesia e da burguesia, dos operários organizados nos Sovietes e da burguesia agrupada em torno do governo de Kerensky. Os desaires militares sucediam-se, a desarticulação do exército prosseguia e a contestação operária ameaçava permanentemente o poder político burguês. A incapacidade de o governo provisório colocar um ponto final no clima de instabilidade social levou à saída do partido democrata-constitucionalista (o partido da burguesia) do governo provisório, deixando Kerensky e os partidos socialista-revolucionário e menchevique à sua mercê. É nesta altura – Agosto de 1917 – que se dá a contra-insurreição de Kornilov, um levantamento armado contra-revolucionário da burguesia e dos latifundiários feudais. A classe dirigente tinha-se unido e a única solução para salvaguardar o poder político estatal era, portanto, sair do governo provisório e realizar um putsch armado que derrubasse de vez não só o governo provisório mas, sobretudo, que assegurasse uma repressão impiedosa do operariado e do campesinato russos. Kerensky sempre foi conivente com a preparação do golpe de Kornilov, mas quando se apercebeu que não iria ser poupado denunciou Kornilov como amotinado contra o governo provisório. O Partido Bolchevique, por sua vez, iria em conjunto com o proletariado de Petrogrado erguer barricadas contra a revanche de Kornilov e conseguiram derrotá-la. De referir que grande parte dos cossacos de Kornilov recusou combater contra a Guarda Vermelha, o que proporcionou uma vitória rápida aos operários e soldados de Petrogrado.

Deste acontecimento resultou um conjunto de efeitos. O primeiro consistiu numa derrota em toda a linha da burguesia e da aristocracia russas. Um segundo efeito correspondeu ao isolamento completo do governo de Kerensky. Com as classes dominantes desmoralizadas e temporariamente sem saber o que fazer (estado de letargia que durou pouco tempo pois em meados de 1918, com amplo apoio e participação do imperialismo internacional, iniciaram a sangrenta Guerra Civil de 1918-21), o exército regular de rastos, a formação e proliferação de milícias populares armadas, a Kerensky só lhe restava resistir como pudesse e ganhar tempo até que os alemães entrassem na Rússia e desbaratassem as hostes bolcheviques e os sovietes de operários, soldados e camponeses. Riga, actual capital da Letónia, foi entregue ao governo alemão e Petrogrado estava em vias disso segundo o que mais tarde se veio a tomar conhecimento através da publicação dos tratados secretos estabelecidos entre Kerensky e o governo alemão. A Revolução de 25 de Outubro, com a tomada do Palácio de Inverno, impediu que a carnificina sobre a revolta operária tivesse ocorrido. Um terceiro efeito teve a ver com a enorme ascensão do Partido Bolchevique junto das massas. Prestígio e influência expressas na vitória esmagadora dos bolcheviques nas eleições para os sovietes de Moscovo e Petrogrado, as duas maiores cidades do país.

Neste quadro em que o Partido Bolchevique se tornou a força dirigente e maioritária na condução da luta popular e onde, em simultâneo, a disposição do proletariado em tomar o poder de Estado era bem vincada e afirmativamente evidenciada na desconfiança relativamente aos mencheviques e aos socialistas-revolucionários, a saída foi a insurreição popular de 25 de Outubro e a tomada do Palácio de Inverno. Esse dia ficou marcado na História da humanidade a letras de ouro, e expressou, de um lado, a luta das massas populares contra as classes dominantes e, de outro lado, a abnegação dos revolucionários bolcheviques, com Lenine à cabeça, a sua fidelidade ao marxismo (o que é sinónimo de fidelidade aos interesses do povo explorado e oprimido), a sua coerência de princípios e a sua maleabilidade táctica que lhes permitiu ajustar a orientação e actuação do Partido aos diversificados andamentos e movimentos, às curvas e contracurvas do processo revolucionário.

Duas lições…
 

Do processo revolucionário de Fevereiro a Outubro de 1917 (sabendo que ele não terminou no momento da tomada do poder de Estado), podem-se tirar duas breves ilações com um impacto político relevante.

1) Na esteira de Marx, Lenine repetiu inúmeras vezes que a insurreição é uma arte. Ou seja, a actividade política dos comunistas não se efectua no meio da fraseologia inconsequente, estéril e vazia (esquerdismo), no envolvimento irreflectido em acções em que supostamente a revolução estaria ao virar da esquina, desconsiderando o contexto de correlação de forças entre as classes e os partidos políticos que as representam (aventureirismo), da mera abstracção e discussão teórica (academismo) ou no sacrificar das massas populares e da classe trabalhadora às mãos da classe dominante (reformismo e conciliação de classe). Assim, a insurreição obedece a um estudo objectivo da realidade, quer dizer, dos factores estruturais – situação económica, grau de organização (ou desorganização) do Estado, nível de eficácia das ideologias dominantes nas massas, posicionamento geopolítico e económico de um país na cena internacional – bem como de factores conjunturais – maior ou menor património de luta, existência ou não de uma organização política e/ou social de vanguarda e o tipo de influência destas junto das massas, nível de organização, mobilização e consciencialização da classe trabalhadora, estado da relação de forças entre a burguesia, o proletariado e respectivos aliados de ambas as classes fundamentais. Ao mesmo tempo, a insurreição é um assunto delicado e sério e que não pode nunca ser tratado com leviandade pelos comunistas. Ou seja, nem como uma impossibilidade prática ad eternum, como defendem os reformistas, nem como uma possibilidade aberta a qualquer momento (esquerdismo). Concretizando: Lenine inspirando-se em Marx enumerou, não como receituário fixista mas como um guia para a acção, as regras mais importantes da arte da insurreição e que explicam boa parte do que se passou no dia 25 de Outubro de 1917:

1) Nunca jogar com a insurreição e, uma vez começada, saber firmemente que é preciso ir até ao fim.

2) É necessário concentrar no lugar decisivo, e no momento decisivo, uma grande superioridade de forças, pois de outro modo o inimigo, possuindo melhor preparação e organização, aniquilará os insurrectos.

3) Uma vez começada a insurreição, é preciso agir com a maior decisão e passar obrigatória e incondicionalmente à ofensiva. A defensiva é a morte da insurreição armada.

4) É preciso esforçar-se para apanhar o inimigo de surpresa, captar o momento em que as suas tropas estão ainda dispersas.

5) É preciso obter diariamente êxitos ainda que pequenos, mantendo a todo o custo a superioridade moral» (Lenine, 1978e, p.368-369).

Escusado será reafirmar que a aplicabilidade destes princípios varia com a situação nacional de cada contexto revolucionário, e que é apenas aplicável para cenários em que a insurreição é uma possibilidade histórica e política real, portanto ao alcance directo dos revolucionários, e não a todo e qualquer momento da conjuntura da luta de classes.

2) Como qualquer comunista tem conhecimento, é na luta que os militantes e quadros se formam política, ideológica e organizativamente. A luta, seja pequena ou grande, económica ou política, é o meio mais capaz de formação dos militantes comunistas. Contudo, tal método de aprendizagem política não se circunscreve aos comunistas mas tem uma igual importância para as massas e para os trabalhadores. Se a luta em tempos de “acalmia social” é uma escola de vida e de consciencialização, é-o ainda mais em períodos revolucionários: «durante a revolução, milhões e dezenas de milhões de homens aprendem em cada semana mais do que num ano de vida habitual e sonolenta. Pois numa viragem brusca da vida de todo um povo vê-se com especial clareza quais são as classes do povo que perseguem tais ou tais objectivos, de que forças dispõem, com que meios actuam» (Lenine, 1978c, p.139). Portanto, o princípio marxista de ver o povo como sujeito da história não é um qualquer fetichismo ideológico mas uma realidade concreta e válida. Porque se o povo e os trabalhadores lutam, agem e se mobilizam é porque detrás desse padrão de comportamento, existe todo um património de aprendizagem política no terreno concreto e prático da luta de classes.

…e alguns eixos mais significativos e actuais do legado histórico das interpretações de Lenine acerca do processo revolucionário de 1917

De todo o conteúdo focado neste ensaio despontam ainda mais quatro vectores particularmente representativos da actualidade dos escritos de Lenine sobre o período Fevereiro-Outubro de 1917.
Em primeiro lugar, Lenine na linha da melhor tradição marxista evidencia o carácter de classe do Estado czarista. Mas, como Lenine demonstrou, não basta enunciar que o Estado serve os interesses da classe dominante. Na realidade, importa também perceber que fracção de classe ou que classe detém o poder de Estado e como se relaciona essa fracção ou classe hegemónica com as restantes classes e fracções também pertencentes à classe dominante. Portanto, o Estado é uma estrutura que sofre os efeitos da luta de classes e projecta determinadas políticas de acordo com a classe que detém o poder político. Ora, sendo um Estado o conjunto de instituições que asseguram a coesão da estrutura social global e o organizador político geral da classe dominante, a classe trabalhadora tem a necessidade de tomar o poder de Estado. Só assim pode abrir portas, numa primeira instância, à nacionalização de sectores económicos fundamentais (bancos, energia, combustíveis, comunicações, principais unidades industriais, transportes, etc.) e, ulteriormente, socializar os meios de produção. Dessa forma é possível transformar as relações de produção e ao longo de um processo mais ou menos longo – e, acrescente-se, num estado muito elevado do desenvolvimento das forças produtivas e de expansão do controlo popular e operário sobre o processo de trabalho – superar a existência das classes sociais. Sintetizando, Lenine e a experiência de 1917 demonstram que o Estado é um problema que deve estar sempre no centro da acção política dos comunistas e dos revolucionários.

Em segundo lugar, como 1917 e a posterior tentativa de construção do socialismo na URSS demonstraram, só uma organização socialista da sociedade assegura a superação dos males e efeitos negativos provocados pelo capitalismo e pelo imperialismo. Os exemplos do fim da I Guerra fruto da revolução soviética, da vitória contra o nazi-fascismo em 1945 graças à luta heróica do povo soviético, ou da efectivação de importantes de direitos sociais, económicos e políticos dos trabalhadores, são ilustrativos da superioridade do socialismo sobre o capitalismo. Independentemente dos erros e desvios do ideal e da prática comunistas, é inegável que o socialismo é a única alternativa social e política viável à guerra, fome, desigualdades sociais, destruição ambiental, desemprego e exploração que o capitalismo e o imperialismo originam (e que têm acentuado cada vez mais a sua face devastadora).

Em terceiro lugar, importa resgatar o método leninista de análise e aperfeiçoá-lo continuamente. Isto significa que:

• Sem uma análise de classe que coloque os trabalhadores como a classe de vanguarda nos processos de transformação social e que o proletariado e restantes classes populares necessitam de uma organização dirigente e coordenadora da sua iniciativa política;

• Sem a busca e identificação entre factores estruturais e conjunturais e sua articulação;

• Sem a compreensão de que a teoria revolucionária não vale por si mesma mas que é uma ferramenta para afinar e aperfeiçoar a prática política;

• Sem a assunção de que o capitalismo tem raízes históricas e contradições estruturais e não é uma produção natural e eterna da acção humana;

• Sem a especificação de quais as classes, partidos e organizações que se enfrentam no xadrez político e como se inter-relacionam (alianças, antagonismos, etc.) entre si;

• Sem ter consciência de que só a luta de classes inscreve transformações no tecido social e não qualquer expectativa vã em dádivas caritativas das classes dominantes; é de todo inviável que um Partido ou organização revolucionária venham a conseguir transformar-se em reais vanguardas de classe.


Portanto, uma das mais relevantes contribuições  de Lenine ao marxismo consubstancia-se na construção de uma grelha analítica capaz de cientificamente captar as dinâmicas sociais e políticas mais profundas e daí retirar as tarefas a empreender na prática quotidiana. Método leninista indispensável para a calibração de uma prática revolucionária consequente e não assente na frase fácil e pseudo-radical. Rematando, o método leninista tem demonstrado uma vitalidade histórica assinalável – basta lembrar os exemplos de Gramsci, Dimitrov, Mao (até ao início da década de 60), Fidel, Álvaro Cunhal, Ho Chi Minh, entre outros – e a sua aplicação criativa na actualidade em diversas organizações políticas, reforçam a ideia de que o seu cerne conceptual e metodológico é indispensável para a luta revolucionária de hoje.

Em quarto lugar, e para finalizar, Lenine captou de uma forma particularmente perspicaz a relação entre organização e espontaneidade. Isto é, Lenine já em 1905 se tinha apercebido da importância histórica do surgimento dos sovietes como órgãos criados espontânea e autonomamente pelos trabalhadores de Petrogrado. Em 1917, Lenine enfatiza ainda mais o papel de espontaneidade das massas como força motriz de um processo revolucionário. No fundo, são as massas operárias e populares que constituem o sujeito da História. É nesse sentido que se aborda aqui o fenómeno da espontaneidade. Por outro lado, Lenine chama a atenção que mesmo numa situação revolucionária em que a maioria do povo se encontra mobilizado em prol da transformação social, existe uma gradação dos níveis de consciência política. Em simultâneo, as massas não são uma entidade abstracta que por si só sejam capazes de tomar o poder de Estado. Basta pensar em termos pragmáticos e funcionais para se constatar, por exemplo, a impossibilidade de se marcar a data de uma insurreição através da discussão directa entre dezenas e dezenas de milhares de operários. O Partido ou organização de vanguarda é igualmente o (a) portador(a) da consciência de classe mais desenvolvida e mais avançada. Por conseguinte, é necessária a existência de uma organização de vanguarda capaz de assumir um papel de dirigente e coordenador político e organizativo da luta de classe proletária. Assim, Lenine apreende a espontaneidade (das massas) e a organização (o Partido) não como parcelas opostas e exclusivas mas como dois dados complementares e mutuamente dependentes e necessários. Lenine e a Revolução de Outubro mostraram-nos como é frutífero o resultado do potenciar de ambos ao máximo.

*Prof. do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Bibliografia
LENINE, Vladimir (1974a) – Les tâches des zimmerwaldiens de gauche dans le parti social-démocrate Suisse. In Oeuvres, tome 23, Paris: Edicions Sociales. p.150-162
LENINE, Vladimir (1974b) – Télégramme aux bolcheviks partant pour la Russie. In Oeuvres, tome 23, p.321
LENINE, Vladimir (1974c) – Lettres de loin, lettre 1: La premiére étape de la premiére revolution. In Oeuvres, tome 23, p.325-336
LENINE, Vladimir (1974d) – Lettres de loin, lettre 3: De la milice prolétarienne. In Oeuvres, tome 23, p.348-361
LENINE, Vladimir (1974e) – La révolution en Russie et les tâches des ouvriers de tous les pays. In Oeuvres, tome 23, p.378-382
LENINE, Vladimir (1978a) – As tarefas do proletariado na nossa revolução. In Obras escolhidas em três tomos: tomo 2. Lisboa: Edições Avante, p.21-48
LENINE, Vladimir (1978b) – Introdução às resoluções da sétima conferência de Abril do POSDR (b). In Obras escolhidas em três tomos: tomo 2. Lisboa: Edições Avante, p.100-102
LENINE, Vladimir (1978c) – As lições da revolução. In Obras escolhidas em três tomos: tomo 2. Lisboa: Edições Avante, p.137-150
LENINE, Vladimir (1978d) – A crise amadureceu. In Obras escolhidas em três tomos: tomo 2. Lisboa: Edições Avante, p.317-325
LENINE, Vladimir (1978e) – Conselhos de um ausente. In Obras escolhidas em três tomos: tomo 2. Lisboa: Edições Avante, p.368-369