Hoje, quase um século depois, são raros os poetas que não se declaram herdeiros do modernismo. Mas será que são mesmo? Uma nova edição de "Ensaios e Anseios Crípticos", coletânea de ensaios de Leminski lançados em dois volumes pela Criar Edições, em 1986 e 2001, que agora ressurge em volume único com o selo da Editora da Unicamp, nos dá uma chance, preciosa, de voltar às suas ideias sempre inquietantes. E, sobretudo, uma oportunidade para pensar o que delas fazem (como as "mastigam") os poetas brasileiros contemporâneos.

Com a Semana de 22, lembra Leminski, a poesia deixa de ser uma resposta e se transforma em uma pergunta. A pergunta é: "que é poesia?" Os poetas deixam de escrever ingenuamente. Deixam de repetir e de macaquear seus autores preferidos. Agarram a própria voz e se arriscam a dizer o que nunca ninguém disse. "Com eles, a linguagem só não basta. Eles têm uma meta. É preciso metalinguagem." A poesia passa a ser reflexão sobre poesia. Antes de escrever, os poetas estudam os próprios vícios. Tomam distância, meditam, medem. Pensam.

Nessa busca de um sentido, isto é, de uma direção, Vinicius de Moraes chegou à audição, João Cabral à visão, Drummond às próprias palavras. Cada um deles escolheu (inventou) seu caminho, negando-se a seguir por estradas já percorridas. Graças ao modernismo de 22, o século XX brasileiro nos deu magníficos poetas. Deu-nos uma grande poesia, talvez insuperável.

Infelizmente, e afora exceções corajosas – penso em Paulo Henriques Britto, em Rogério Luz, em Alberto Martins -, o século XXI volta a ser, contra Leminski e sua luta, um século de repetidores. Repetidores da dicção e das ideias modernistas, não importa – mas repetidores. Poetas bem-comportados, que ostentam suas leituras e seus diplomas, que se veem como intelectuais refinados – mas não pensam. Ou, se pensam, repetem o já pensado, só pensam com as ideias alheias. Adotam esses poetas de hoje, para continuar nas ideias de Leminski, uma "visão utilitária da poesia": a que confere títulos, prestígio, a que alimenta confrarias e elogios, a que cultua os clubes fechados e os bandos, mas não se coloca em risco. Por que não se arrisca? Porque não pensa ou, se pensa, pensa com a cabeça alheia.

Daí a importância de retomar os "Ensaios e Anseios Crípticos". Relê-los não para repetir e reverenciar, mas para meditar e romper. Romper, até mesmo, com o próprio Leminski e suas ideias. Seguir o que ele, artista sempre inquieto, ensinava: fazer arte é inquietar-se, é interrogar-se, é – de uma forma metafórica, mas igualmente sangrenta – "matar-se", para chegar a ser outro. O poeta é sempre um outro ou não é poeta.

Daí, talvez, a importância cada vez mais urgente do silêncio. Em um mundo de ruídos, de falatório, de talk-shows, de conversa interminável, de zoeira e atordoamento, nada melhor do que silenciar. Fazendo alguns ensaios em versos, como as atordoantes "Variações para Silêncio e Iluminação", escreve Leminski, em "O Silêncio de Pitágoras": – "os astros obedecem a uma matemática/ essa matemática é uma música/ não ouvimos a música das estrelas/ porque nossos ouvidos são impuros".

Ouvir o silêncio. Dar valor à escuta delicada do que desconhecemos. Do que não entendemos. Eis, para Leminski, a atitude do poeta. Admite, citando Pascal: "O silêncio desses espaços infinitos me apavora". Sim: escutar (pensar) dá medo. No entanto, sem a travessia do ilegível, sem a coragem de enfrentar o incompreensível, não se faz poesia. Repete-se a poesia alheia, mas fazer não se faz. Propõe Leminski que, antes de escrever, os poetas atravessem o ilegível para só então chegar ao legível. Isto é: a um novo legível e não às velhas cartilhas poéticas, modernistas ou não.

Foi por isso, por exemplo, que Paulo Leminski sempre se bateu contra a chamada "poesia de mimeógrafo", para ele uma "poesia fácil". Poemas curtos, flashes instantâneos, registros-relâmpagos, estalos líricos: isso pode valer para o desabafo pessoal, ou para lustrar o Eu, ou até mesmo como registro histórico, mas poesia, diz Leminski com coragem, não é. Poesia do Eu, ela aponta para tudo aquilo de que ele, esperto, se desvia. Escrever poesia é desviar-se de si. Só assim nos inventamos.

Em um artigo debochado como "O autor, essa ficção", depois de esboçar uma história do aparecimento da noção de Autor, Leminski – como um bom lutador de caratê – nos desloca os ossos, propondo algumas barbaridades bem saudáveis. Que foi Machado de Assis quem escreveu o "Escrivão Isaías Caminha", não Lima Barreto. Que Euclides da Cunha não escreveu uma só linha de "Os Sertões", livro de Coelho Neto. Que o "Macunaíma", de Mário de Andrade, falsamente atribuído a Guilherme de Almeida, na verdade é obra de Plínio Salgado. Piadas tolas? Muito longe disso. Embaralhando os autores, Leminski nos leva a pensar quanto a noção de autoria antecipa, aprisiona e delimita a visão que temos dos livros. "Eis mais um Raduan", dizemos. "Nas livrarias, a nova Adélia." E o nome (a grife) já nos aponta a maneira "correta" de ler.

Assim também fazem os herdeiros declarados do Modernismo de 22, que escrevem ajoelhados, trêmulos, com receio de se desviar da grande (embora recente) tradição. A poesia, diz Leminski, existe para comunicar o incomunicável. Ela não é, em definitivo, um instrumento de comunicação, mas, sim, um instrumento de contaminação. Cita a prece, o despacho, o Salat e o Za-Zen como quatro caminhos de acesso ao incompreensível. As religiões, é claro, nos sugerem muitos outros caminhos. Mostra Leminski: nenhum deles tão livre e tão libertário quanto o poema.

Pensar se torna, de fato, uma maldição. Algo que marca o pensador com um estigma. Algo que o separa dos demais e o expõe à fúria do maldizer. Pensar é singularizar, Leminski nos diz todo o tempo. Pensar não é aprender e repetir, mas desaprender e arriscar. Propõe Leminski que sigamos o lendário haicai que sentencia: "Não sigam as pegadas dos antigos, procurem o que eles procuraram".

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Fonte: Valor Econômico