A Marcha dos 80 Mil

Calcular números de pessoas presentes em manifestações é das coisas mais complexas, mas ao mesmo tempo, dependendo de quem escreve a reportagem, dos olhares políticos, os números podem ser distorcidos. No entanto, existem critérios objetivos. Cheguei a um ponto estratégico no roteiro da Marcha das Centrais, situado na esquina da Alameda Joaquim Eugênio de Lima com a Avenida Paulista. Sabia que a Avenida Brigadeiro Luis Antônio não havia sido liberada para a descida até o Ibirapuera.

Uma esquina estratégica. Todos teriam que passar ali, fazer a pequena curva para seguir adiante. Cheguei às 11h30 nessa esquina. Retirei-me às 13h30. Por duas horas lá fiquei. Observando, analisando, contemplando as diversas cores, as ideologias, as bandeiras, lendo as faixas e seus dizeres. Olhando o semblante das pessoas, sua alegria, suas camisetas, os balões das centrais sindicais e das entidades dos movimentos sociais. Ao mesmo tempo, como de costume, já escrevia a presente matéria.

Nos primeiros 90 minutos, as quatro pistas da Avenida Paulista estavam compactadas e lotadas. Desde a Dr. Arnaldo até esse ponto são mais de dois quilômetros de extensão. As quatro pistas de uma das suas vias tem 25 metros de largura. Só nesse pequeno trecho da Paulista, caberiam, calculando a quatro pessoas por metro – bem espaçado para os padrões internacionais de cálculo de multidões – caberiam em tese até 200 mil pessoas.

Assim, pelo tempo que a multidão usou para percorrer esses dois quilômetros – 90 minutos – a compactação, considerando que mesmo quando estávamos na Joaquim Eugênio de Lima, tinham pessoas saindo do Pacaembu ainda, não tenho dúvidas que tivemos pelo menos 80 mil pessoas na manifestação.

Para os padrões de SP, considerando a – lamentável! – ausência da CUT e do PT da manifestação, seguramente, para os dias atuais, esta deve ter sido a maior manifestação na história recente de sindicalistas (aqui, não levo em conta a campanha das Diretas Já, de toda a sociedade de 1984). Foi uma manifestação convocada por cinco centrais sindicais – CTB, UGT, Nova Central, Força Sindical e CGTB – apoiada pelo movimento social – MST, UNE, UBES, CONAM, UBM, ANPG e Unegro.

As centrais se fortalecem

Diferente de um sindicato, federação ou mesmo confederação, que representam apenas uma determinada categoria profissional ou setor de trabalhadores da economia, uma central sindical representa uma classe social, ou parte de uma classe. No caso dos trabalhadores, as centrais representam segmentos do proletariado brasileiro e seus aliados.

Desde que o presidente Lula legalizou as centrais sindicais em 2008, seis delas conseguiram preencher todos os requisitos da legislação. Os dados atualizados do Ministério do Trabalho, indicam que existem registrados no Arquivo Nacional de Entidades Sindicais 9.672 entidades, das quais 6.736 são filiadas a alguma central sindical, ou seja, 69,64% são filiadas e 30,36% ainda não optaram em filiar-se às centrais.

Do quadro dos que são filiados, a CUT tem hoje 2.099 sindicatos filiados (31,16%), seguida da Força Sindical com 1.684 (25%), a UGT vem depois com 1.008 (14,96%), depois vem a Nova Central com 902 (13,39%), vindo em 5º lugar a CTB, com 519 entidades (7,7%) e por fim a CGTB com 390 sindicatos (5,78%). Existem ainda outros 134 sindicatos filiados a pequenas centrais ainda não legalizadas (1,98%).

Aqui se vê que mais que dois terços de todos os sindicatos que optaram em filiarem-se a uma central sindical – 6.736 no total – as cinco centrais sindicais que organizaram a grande Marcha no Dia Nacional de Lutas representam 4.503 entidades ou 66,84%. A atitude da Central “Única” dos Trabalhadores, de forma deliberada, de ficar fora do Dia Nacional de Luta que ela mesma tinha participado e apoiado há alguns meses, a atitude da CUT de isolar-se como vem fazendo há cerca de dois meses, é uma jogada política de alto risco. Já havíamos criticado essa “volta às origens” da CUT, manifestado em artigo que publicamos respondendo um escrito pelo presidente da Central, o companheiro Arthur Henrique.

O que vimos hoje na Avenida Paulista foi uma excepcional, uma exuberante demonstração de força política, de maturidade. Uma pauta composta por algumas das reivindicações mais antigas e históricas do movimento sindical brasileiro e mais algumas de momento mas de grande importância, marcaram um grande tento para essas cinco centrais. Mas mais do que isso, elas tiveram a capacidade de ganhar outras entidades da sociedade civil organizada e do campo de atuação da Coordenação dos Movimentos Sociais – CMS, da qual a CUT faz parte, mas deliberadamente decidiu não se unificar.

Essa Central ficou fora dessa manifestação gigantesca. Que mobilizou homens e mulheres, em sua maioria sindicalistas vindos de estados próximos à São Paulo. Muitos viajaram a noite toda e seguiram direto para o estádio do Pacaembu. Contabilizou-se 1,2 mil ônibus fretados. Uma festa popular, sindical e democrática. Bandeiras de todas as cores. A Marcha era como se fosse uma parada escolar, ou um desfile de escola de samba, com suas diversas alas. As centrais, as entidades dividiam-se com suas camisetas, com suas faixas e bonés, com suas bandeiras.

As bandeiras vermelhas da CUT não se fizeram presentes. Nem as do PT. Aqui, em minha modesta opinião, ambos cometem um erro histórico com esse isolamento. Talvez por sentirem-se “melhores”, superiores que os (as) sindicalistas que estavam na Marcha hoje junto com o movimento popular. E nesse sentido, vimos nessa grandiosa festa cívica, o movimento negro organizado (Unegro), os estudantes com suas bandeiras (UNE, UBES, ANPG e UJS), o movimento comunitário (com a Conam), as mulheres (com a UBM). Aliás, é difícil fazermos uma estatística, mas visualmente pude constatar que as mulheres deveriam ser pelo menos de 30 a 40% dos presentes na manifestação. Um grande avanço.

O isolamento a que a CUT vem se impondo, não só pela marca do exclusivismo, do sectarismo, de um personalismo inaceitável, marca também uma forte aproximação com o governo. Não é à toa que a Central vem sendo chamada de “chapa branca”. Os jornais de hoje estampam que a bancada do PT na Câmara vai chamar só a CUT para debater a questão da desoneração da folha de pagamento das empresas. E vão indicar isso para a presidente Dilma, como se só essa Central tivesse o atributo de ser combativa e de representar os interesses dos trabalhadores. Esse é, com certeza, o pior caminho a ser seguido.

Por isso, ganham e se fortalecem essas cinco centrais. Elas souberam articular-se com o movimento social organizado, publicaram um manifesto nacional nos principais jornais do país, com grande destaque. Comunicaram-se bem com a mídia em geral, que noticiou o evento, ainda que com pouco destaque.

No entanto, cumpriram o mais primordial papel que o movimento social organizado deve ter com relação a um governo de feições progressistas e populares como o da presidente Dilma, da qual fazemos tudo para que tenha êxito. Um governo progressista precisa ser impulsionado, criticado, sustentado por um movimento sindical e social autônomo. Nunca podemos deixar nos cooptar. E não sentimos isso do lado dos companheiros cutistas.

O papel da grande imprensa

Já vimos como os despachos das agências noticiosas cobriram a imensa manifestação democrática e cívica dos lutadores sociais deste 3 de agosto. A maioria afirmou ter visto nas ruas “apenas 15 mil pessoas” (sic). Um verdadeiro absurdo. Avaliação unânime das centrais e cálculos sérios e com base em dados reais (fretamentos, por exemplo), não havia menos que 80 mil pessoas na Marcha.

Os jornais do dia seguinte, devem noticiar apenas o inusitado. Vão pegar o anacrônico, o cômico, o pitoresco. Vão achincalhar a manifestação. Não tenho dúvidas disso. Não divulgarão ao público leitor – como deveria ser a sua missão social – as principais reivindicações dos (as) trabalhadores. Vão entrevistar pessoas que podem dizer que não tinham claro os objetivos gerais do protesto. Vão achar algum perdido que recebeu alguma ajuda de custo, um lanche para carrear uma faixa, uma bandeira, um balão. Poderão ficar calculando quanto isso custou com o dinheiro dos trabalhadores, como fizeram na CONCLAT de junho de 2010 no estádio do Pacaembu. E darão destaque a isso, como que desprezando os quase cem mil homens e mulheres que vieram de longe, cansaram, suaram, queimaram seus corpos, para garantir que as reivindicações políticas e sindicais do conjunto da classe, do proletariado brasileiro e dos trabalhadores em geral, possam fazer chegar aos ouvidos do atual governo, um pouco surdo quanto a isso ainda, diga-se de passagem.

Lamentamos que a pauta, ainda que enxuta, que apresentamos, não tenha sido ainda objeto de discussão e que não esteja havendo qualquer simpatia por parte do governo em atender às legitimas reivindicações das centrais e do movimento social organizado. Mas, as centrais cumpriram o seu papel.

______________

* Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Foi vice-presidente da CNPL (2002-2005), presidente da Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil (1996-2002) e presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo (2007-2010). Foi secretário-executivo do FST (2003-2005). Tem cinco livros publicados, colabora para diversos sites e portais e com a revista Sociologia da Editora Escala. E-mail: [email protected]