Introdução

As transformações econômicas e políticas globais parecem ter se acelerado nas últimas duas décadas. Afinal, qual a raíz destas transformações que abalam o sistema internacional? E que sentido possui o crescente protagonismo dos países emergentes neste quadro de reorganização no balanço de forças em escala mundial? Esta é a problemática que este artigo tenta – nos limites deste espaço – contribuir para elucidar.

As raízes das transformações contemporâneas

O sistema internacional entrou num período de transição desde a década de 1970, cujo resultado tem sido a reestruturação econômica e o reordenamento de poder no mundo. Os anos 1980, entretanto, assistiram a uma expressiva reação neoconservadora que culminou no final da Guerra Fria (Ver VIZENTINI, 2003, vol 2 e 3). A desintegração da URSS e o fim da bipolaridade transmitiram, sobretudo à elite norte-americana, a falsa percepção de que seria viável a consolidação de um sistema internacional unipolar e a interrupção do processo de multipolarização.

Nesse contexto, os EUA projetaram um ciclo de expansão de seu poder em âmbito mundial. No campo político-militar, houve um recrudescimento das intervenções militares, em especial no Oriente Médio e no entorno da Rússia. No campo econômico, a desregulação de parte da economia mundial sujeita à agenda neoliberal e à senhoriagem do dólar abriu espaços para o fortalecimento temporário da posição norte americana. Passadas as duas décadas de reação neoconservadora (1980-90), a história retomou seu curso e as transformações sistêmicas têm asumido novos contornos neste século XXI. Está cada vez mais perceptível a intensificação da competição político-econômica entre os países mais poderosos, com a redução da capacidade arbitral (unilateral) dos EUA, a rápida fragmentação do sistema mundial, a volta da luta pelas supremacias regionais e, como efeito, o aumento do grau de incerteza no mundo (FIORI, 2007, p. 78-89).

Poderíamos complementar, na linha do autor (FIORI, 2007, p. 90-94), destacando as dificuldades dos EUA no Grande Oriente Médio, do Iraque ao Afeganistão, passando pelo fortalecimento do eixo xiita, e, agora, recrudescido pela “primavera árabe” e pela intervenção na Líbia; a indisfarçável resistência ao unilateralismo norte-americano e ao poder militar da OTAN; o fortalecimento da Alemanha e o ressurgimento da Rússia; entre outros aspectos.

Em outras palavras, os EUA perderam o contraponto funcional à sua hegemonia (a URSS) e encontram dificuldades em reconstruir mecanismos capazes de criar uma nova coesão internacional. Ao contrário, o neoliberalismo e as estratégias baseadas na “guerra ao terrorismo” e/ou “ataque preventivo” tiveram uma duração efêmera ou aceleraram movimentos anti-hegemônicos, seja na forma da criação de novas articulações e competições interestatais, seja na forma do fortalecimento de movimentos sociais de resistência à guerra ou às reformas impopulares. E o reforço da guerra e da competição neste quadro de reordenamento de poder expõe, a um só tempo, a força e a fraqueza da superpotência.

Os países emergentes e a nova ordem

Para compreender as transformações sistêmicas, é preciso capturar e dar um quadro coerente aos inúmeros elementos da atual conjuntura internacional. No nosso entendimento, os países emergentes são justamente parte essencial das novas configurações de poder e da reorganização das capacidades sistêmicas que estão em curso (ARRIGHI; SILVER, 2001).

De um lado, as estruturas hegemônicas de poder enfrentam uma crise sem precedentes. Primeiro foi a grave crise financeira que eclodiu nos EUA em 2008; e agora é a Europa que tem se enredado numa complexa vulnerabilidade financeira, enquanto o Japão, com o Tsunami de 2011, encontra ainda mais dificuldades para superar o precário desempenho econômico de mais de duas décadas. Mais do que fenômenos conjunturais, este quadro evidencia profundas dificuldades destes países centrais, expresso tanto na necessidade de pesados subsídios e barreriras para proteger vários setores da economia, quanto na perda de dinamismo demográfico.

De outro, é notável o vigor das mudanças que estão ocorrendo na periferia do sistema internacional. Apesar das vulnerabilidades, é perceptível uma ampliação da autonomia e da capacidade de formulação de projetos próprios na África e na América Latina. Mais do que isto, o fortalecimento das relações Sul-Sul pode ser observado pela evolução do comércio, dos investimentos e das iniciativas diplomáticas, como discutimos no caso das relações comerciais do BRIC com a África ou na criação do Fórum de Cooperação China-África (PAUTASSO, 2010a; 2010b).

Os países emergentes, notadamente Brasil, China e Índia, têm desenvolvido atributos que amplificam sua projeção internacional, como o aumento de seus recursos de poder (comercial, financeiro, diplomático, militar) e da consequente capacidade de contribuir para a gestão do sistema internacional (HURRELL, 2009). Mais ambição e reconhecimento significam que estes países estão mudando de posição na hierarquia do poder mundial, como revela a própria criação do G20.

Desse modo, os países emergentes tem, de uma forma geral, buscado desenvolver estratégias que combinam a reafirmação do status quo, ao se apoiarem nas próprias instituições multilareais (FMI, OMC), e a busca pela construção de alternativas, sobretudo ao promoverem iniciativas no âmbito Sul-Sul. As relações Sul-Sul são tanto uma realidade quanto uma estratégia para países como China, Brasil e Índia diversificarem e fortalecerem sua inserção no mundo. Ironicamente, é justamente os EUA que, na busca da reafirmação de seu poder, violam e/ou enfrentam dificuldades em lidar com os mecanismos de governaça por eles próprios criados para gerir o sistema internacional.

Assim, a geografia do poder mundial tem tornado-se progressivamente multipolar, de modo que o mundo contemporâneo torna-se mais complexo do que as estruturas hegemônicas de poder criadas e coordenadas pelos EUA no Pós-Guerra. Isto cria o imperativo de o sistema internacional adequar-se à nova configuração de poder, preservando sua legitimidade e sua eficácia, sob pena de refletir seu descompasso com a política internacional, provocando, por extensão, inoperância, crises políticas e/ou escaladas de violência.

Considerações finais

O fim da bipolaridade lançou o desafio de os EUA reconstruírem a legitimidade construída durante a Guerra Fria. Apesar de possuírem instrumentos de poder abrangentes e eficazes, os EUA têm enfrentado dificuldades para preservar e/ou reestabelecerem sua supremacia. O sintoma da mudança em curso foi que o predomínio norte-americano sobre os organismos internacionais e à financeirização da economia liderada por eles tem sido concomitante ao recuo do universalismo, assim como à hipertrofia do recurso à força. A consequência é a dificuldade de preservação de equilíbrios de poder regionais, o recorrente unilateralismo e o tensionamento mesmo no âmbito dos poderes ocidentais, ao mesmo tempo em que recrudesceram a concorrência diante do crescente peso dos países emergentes (China, Índia) e se tornaram insuficientes e/ou ineficazes os arranjos institucionais do Pós-Guerra.

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Referências bliográficas

ARRIGHI, G.; SILVER, Beverly. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. UFRJ, 2001.

FIORI, José. A nova geopolítica das nações e o lugar da Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul. In: Oikos. Rio de Janeiro, nº 8, ano VI, 2007, pp. 77-106.

HURRELL, Andrew. Hegemonia, liberalismo e ordem global: qual é o espaço para potências emergentes? In: HURRELL, Andrew et alli. Os BRIC’s e a ordem global. Rio de Janeiro: FGV, 2009, pp. 9-41.

PAUTASSO, Diego. A África no comércio internacional do Grupo BRIC. In: Meridiano 47 (UnB). v.120, 2010a, pp. 54-59.

__________. A Economia Política Internacional da China para Angola e os caminhos da transição sistêmica. In: Século XXI. v.1, 2010b, pp. 107-126.
VIZENTINI, Paulo. Geopolítica e conflitos contemporâneos. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.

É doutor e mestre em Ciência Política e graduado em Geografia pela UFRGS. Atualmente é professor de Relações Internacionais da ESPM. Agradeço ao financiamento da pesquisa pelo NuPP/ESPM. E-mail:
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