Faço, logo de início, uma pergunta retórica: quem leu a proposta de novo Código Florestal aprovada pela Câmara de Deputados por 410 (!) votos a favor e 63 contrários? Ao acompanhar o intenso debate de viés catastrófico na mídia sobre o novo código, fiz o óbvio: procurei na internet o texto do que fora aprovado para procurar a razão de tanto deus-me-acuda-que-o-mundo-está-acabando. Li todo o projeto de lei Nº 1.876-C de 1999 procurando encontrar ali o artigo ou parágrafo que anistiava os desmatadores; o artigo ou parágrafo que retirasse dos proprietários a obrigação de manter as APPs – áreas de preservação permanente – e, pasmem, não existe nada que permita tais leituras, pelo contrário, a proposta procura abarcar, de forma extremamente detalhada, as situações diversas e para cada uma delas aponta uma solução resultante da análise da situação concreta mais a intervenção dos órgãos de proteção ambiental afeitos à demanda.

Como de gente mal-intencionada, comprada ou irresponsável não se pode cobrar brio, sugiro ao leitor honesto que faça a coisa razoável: procure também ler a proposta de lei do novo Código Florestal. Porém, gostaria de discutir como a "peste" da fofoca se espalha, como reputações são "queimadas" e de como isso não é uma novidade na sociedade dos homens. Por isto comecei citando Alessandro Manzoni e o seu clássico universal: Os noivos ( I promessi sposi , no original). Os capítulos 31 e 32 desta obra-prima da literatura universal são dedicados ao argumento de como uma verdade, considerada falsamente como desagradável, pode ser escamoteada. Ali se pode ver como a ignorância, os interesses mais contraditórios e irresponsáveis se juntam em um objetivo comum: caluniar e espalhar a "boa" mentira. Os portadores de mentira, em regra, querem ser amados. E nada mais adequado para suprir essa carência de afeto, nos dias de hoje, do que se colocar como amante da natureza. Que a carência de afeto esteja envolta em questões econômicas e científicas da maior gravidade, pouco importa para os pedintes de reconhecimento, eles querem ser maria-vai-com-as-outras.

Pouco importa saber que a recente posição de força econômica do Brasil no mundo se deve em larga medida à pujança de sua agropecuária, pouco importa saber ou desconfiar que os países ditos centrais jogam com todas as peças do tabuleiro, inclusive com as crenças populares e as mistificações como, por exemplo, de que se deve multar indiscriminadamente quem desmatou, mesmo que o tenha feito por força de lei, por falta de lei, por exorbitância da lei ou pela prática de crime ambiental. Mas a ignorância, só em alguns casos de boa fé, vai mais longe, ela chega a insinuar que seria possível dar de comer desde à superpopulação de animais domésticos até a explosão demográfica humana que a ciência propiciou, sem desmatamento! Como se a casa em que esses mistificadores moram não tivesse sido em algum momento uma mata, como se fosse possível tomar banho quente sem que para isso algum tipo de energia, nos limites tecnológicos do presente, fosse necessário, como se o reino da natureza fosse uma arcádia, como se houvesse de fato existido na história a Idade de Ouro (mais sobre a Idade de Ouro se pode conferir no ótimo Woody Allen de Meia Noite em Paris , ou no excepcional ensaio de Raymond William, O campo e a Cidade ), como se Darwin não tivesse razão ao observar que: "Contemplando a face da natureza resplandecente de alegria, vemos com frequência superabundância de alimentos; mas não vemos, ou esquecemos, que os pássaros que cantam ociosos ao nosso redor vivem em sua maioria de insetos ou sementes e estão assim constantemente destruindo vida; esquecemos com que abundância são destruídos estes cantores, seus ovos e seus filhotes pelas aves e mamíferos rapaces".

A voz do povo, em Manzoni, não queria ver, ou não podia ver por causa de seu compromisso com suas próprias mentiras, mistificações e fantasias, que era a peste que grassava e que, sobretudo, um dado da realidade não é possível de ser suprimido pelo discurso caridoso, aparentemente correto, mas que, na verdade – como sempre acabará por se revelar – é o próprio fel destilado. À pergunta se não existiam vozes que se levantassem contra a desinformação generalizada ao tempo da peste em Milão, Manzonzi responde afirmativamente: "O bom senso existia, mas calado, com medo do senso comum".

Para não tirar do leitor que quer ter a sua opinião o dever de ir à fonte para, de forma autônoma, fazer a sua interpretação do projeto de lei sobre o novo Código Florestal que ora tramitará no Senado, adianto que o que esses desmatadores da verdade colocam sub judice é um procedimento já consolidado na legislação brasileira, em especial pelo Ministério Público: o princípio do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O TAC, ou suspensão da multa, como está na proposta do novo Código Florestal, nada mais é que, depois de provada a ilegalidade, o implicado na transgressão ter a chance de reparar o dano causado a alguém ou, no caso, à natureza. A reparação do dano, ou, onde for o caso, o replantio da vegetação nativa, não seria mais salutar do que multar e, ao mesmo tempo, obrigar o replantio e, como consequência, quebrar o produtor e forçá-lo a vender a sua terra? Do ponto de vista da preservação ambiental e da produção agropecuária, não seria o TAC a melhor solução para ambas as causas? Não, diz o lobby dos interesses escusos abrigados em ONGs internacionais e dos ingênuos de boa fé. Na verdade, eles não acreditam no procedimento legal que mimetiza o TAC. Por isso querem uma lei acima da lei: a multa indiscriminada que, inevitavelmente, caso houvesse governo que conseguisse aplicá-la, deixaria o Brasil na condição de importador de alimentos dos Estados Unidos e da Europa.

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Anselmo Pessoa Neto é pró-reitor de Extensão e Cultura da UFG

Fonte: O Popular

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