A situação dessa família uniparental – assim denominada pelo IBGE – inspira diversas reflexões sobre a questão social. Creio que, na Região Metropolitana do Rio, 17% das famílias são uniparentais. Mais da metade tem como cabeça de família uma jovem mulher. Com um ou mais filhos, quase sempre o pai não assume qualquer paternidade. Muitas dessas jovens desconhecem o fecundador. Formam o segmento de mão de obra não qualificada mais vulnerável do Rio de Janeiro. Em sua maioria, pretendem um emprego de doméstica, porém é raro o empregador que aceite a presença de filho(s). Geralmente, obtém renda monetária em cooperativas de prestação de serviços de limpeza em escritórios, negócios e até mesmo fábricas. Essas cooperativas não respeitam a legislação trabalhista e escondem "gatos" que exploram o trabalho dessas mulheres. Em qualquer repartição pública como a UFRJ ou o IBGE, entre outras, essas mulheres estão reproduzindo a situação de doméstica vulnerável a uma intermediação.

Guarda e proteção é o item que as famílias da pobreza mais desejam para suas crianças
Não é difícil projetar a situação de pobreza estrutural e de baixa capacidade de organização sindical dessa fração social que forma, a meu juízo, o maior contingente de pobres urbanos sem destino. Sempre me surpreendeu não ver movimento feminista assumir esse contingente de "irmãs".

Sempre me pergunto qual será o destino dessa novíssima geração de brasileiros das famílias pobres uniparentais. Não há nenhum programa sistêmico de melhoria das condições de trabalho das "mães-crecheiras". A retórica de creche para todos parece desconhecer o custo de operação como uma barreira financeira à educação pré-escolar. Apenas uma minoria de crianças é atendida pela rede de creches. Se, na creche popular, prevalecer o que vem acontecendo nos primeiro anos da rede escolar temos nessa crianças uniparentais um contingente desassistido. Não é difícil nem exagero imaginar sementes de violência – entre os meninos – e de reprodução precoce de família uniparental. Os dois fenômenos são manifestações estruturais da vida urbana barbarizada.

Defendo o Bolsa Família, porém qualquer política de cobertura dessa fração extremamente vulnerável do corpo social – mães pobres chefes de família – exigiria, ao menos, uma preferência por vaga em creche pública, uma política de educação, vigilância médica e melhoria de instalações das "mães-crecheiras", além de suficiente cobertura pediátrica para as crianças.

Quando Brizola propôs os Cieps, imaginou a escola pública de tempo integral com educação complexa e completa de alta qualidade. Teve o mérito de sublinhar a necessidade de guarda e proteção dos menores de 14 anos. Guarda e proteção é o item que as famílias da pobreza mais desejam para suas crianças, pois mesmo nas famílias de casal, normalmente pai e mãe trabalham para compor a renda familiar, porém morrem de medo que seus filhos estejam nas ruas em horário fora das aulas, sendo cooptados por traficantes e marginais e/ou confundidos com "meninos de rua" e bandidos-mirins. Imaginem o medo da mulher pobre, cabeça de família, que ganha um salário mínimo, e vê a rua como um espaço perigoso para seu filho, após as horas de escola. Essa jovem mãe é torturada pela tesoura do salário baixo e a necessidade de guarda e proteção.

O padrão Ciep é impossível de ser generalizado em um país que prioriza o pagamento de juros e que compromete, com esse tipo de rendimento, um gasto muito superior a tudo o que é gasto em saúde e educação.

Obviamente, no Brasil, programas como os do Ciep cobrem uma fração relativamente pequena da população-alvo, porém, já seria possível ampliar a guarda e proteção de todas as crianças de 7 a 14 anos com o aumento do tempo de permanência na escola, com atividades extra-curriculares. Após as horas de aula, deveria a escola reter suas crianças com um leque de atividades que caminha desde a realização dos deveres, passando por atividades culturais até a difusão de jogos e brincadeiras. Haverá quem argumente que não é possível ampliar a carga horária dos atuais professores primários. É reconhecida a insuficiente remuneração que leva a quase todos terem mais de uma matrícula, porém há um contingente disponível para um "voluntariado" de apoio nos horários extra-classe: os aposentados, a população de terceira idade que, em função da desagregação da família patriarcal, tem tempo livre e gostaria de "ensinar" as crianças a fazerem os deveres, acessar elementos culturais e a fazer brinquedos e brincar.

Imaginem a alegria desses voluntários e a "reconstituição" da saudável relação que deve existir entre idosos e crianças. No horário extra-classe, submetidos às orientações da direção da escola, os voluntários poderiam desdobrar múltiplas atividades. As crianças devem aprender a criar brinquedos e a brincar. Aquele que ensina uma criança a jogar bola de gude e a fazer um papagaio, aquele que lê contos e, talvez, poemas, aquele que ensina atividades artesanais, que socializa a história da cidade, do bairro e do lugar, que chama a atenção para as artes, que faz piadas e convive sem autoritarismo com as crianças é por elas considerado um ser inesquecível e amado, encaminha o menor em direção à cidadania e à socialização pelo convívio produtivo com seus colegas.

A convivência idoso-menor pode exorcizar fantasmas da vida atual. A sociedade do consumo, que ensina a sucatear as coisas, a valorizar apenas o que é novo/novidade exclui a criança pobre da visibilidade e naturalidade do ciclo de vida. Penso que a escola com voluntariado idoso para atividades extra-curriculares resgata o valor e a sabedoria do velho, elemento imprescindível para a vontade de viver.

A hipervalorização do mercantil, do objeto recém-fabricado, o sonho de consumo da novidade, a moldagem de uma sociedade do desperdício pode levar a uma desvalorização do viver e da vida. É uma semente de brutalidade para um povo pobre, e é particularmente daninho para a criança da família uniparental pobre, sem a referência da figura paterna. Creio que a psicologia social identificaria nisso sementes de uma brutalização social. Ninguém deve se surpreender se a criança pobre sem guarda e proteção escolher seus elementos míticos e valores nos traficantes bem-sucedidos. O trabalho terá uma imagem terrível se o relato for o da mãe sofrida que, após oito ou mais horas de atividades sub-remuneradas, tenha ainda a exaustão do tempo de ir e vir. Trabalho, lar e família são categorias fracas na vivência da criança pobre da família uniparental.

Como a presidente da República quer eliminar as raízes da pobreza, anotei essas sugestões, que merecem ser financiadas, ao invés da exaustão pública com o pagamento de juros obscenos.

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Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES

Fonte: Valor Econômico