O ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso escreveu, no artigo divulgado no dia 12, uma série de coisas que provocaram estranheza e reação inclusive entre seus correligionários. Entre elas há um tema sobre o qual talvez tivesse sido melhor, para ele, ter-se calado para manter o assunto num esquecimento “obsequioso”: o abuso de medidas provisórias para governar.

As medidas provisórias foram uma inovação da Constituição de 1988 para eliminar a figura do “decreto lei” que dava poderes excessivos ao chefe do Executivo, reforçando suas prerrogativas ante o Congresso Nacional.

O exame das Medidas Provisórias enviadas ao Congresso Nacional desde 1988 (a lista está disponível na página eletrônica da Presidência da República) revela a fúria legislatória de FHC, entre 1995 e 2002, mantendo o país em uma legalidade rigorosamente provisória elaborada à margem do Congresso e, muitas vezes, contra ele.

A acusação que fez a Lula de governar com Medidas Provisórias é um convite ao exame daquela lista e revela que FHC empregou este recurso com desenvoltura capaz de fazer corarem os generais presidentes do período da ditadura de 1964.

Os presidentes anteriores a FHC foram comedidos em seu uso. Sob José Sarney houve 118 MPs, ou duas por mês; Fernando Collor foi responsável por 84, ou 2,5 por mês, tendo reeditado 10; sob Itamar Franco o número foi menor, 74 MPs, voltando a duas por mês, sendo 36 delas reeditadas.

Naquela época a lei determinava que a MP devia ser aprovada pelo Congresso em 120 dias, depois dos quais deixava de vigorar. Uma forma encontrada para contornar esta disposição legal foi a reedição das medidas provisórias não aprovadas reapresentando-as sob outro número, mantendo assim sua vigência, apesar de Isto é, passando à margem do Congresso Nacional.

O abuso deste “jeitinho” sob Fernando Henrique Cardoso foi tamanho que a resistência parlamentar e social levou a uma mudança em seu regime. Em 2001 a Emenda Constitucional nº 32 proibiu a reedição das MPs e impôs um rito sumário para sua aprovação, restaurando as prerrogativas do Congresso Nacional em relação à atividade legislativa.

Fernando Henrique Cardoso foi disparado o campeão no uso desta ferramenta para governar à margem do Congresso, vilipendiando sua soberania e independência. Emitiu, em oito anos de governo, 418 medidas provisórias, uma média de quatro por mês. Mas reeditou 253 (60% delas), e é aqui que o abuso legiferante de FHC revela toda sua absurda extensão.

Formalmente a MP reeditada precisava, para cumprir a lei, ser tratada como uma nova MP, inclusive com número próprio. Pois bem, FHC usou 4.977 vezes o recurso de reeditar MPs que foram rejeitadas pelo Congresso Nacional ou sobre as quais não houve deliberação no prazo constitucional.

Somadas às que são foram reeditadas, isso gera a quantia de 5.395 MPs. Foram 56 por mês, ou duas por dia! Sob Lula, foram 419 MPs, com uma média mensal de quatro.

Isto é, Fernando Henrique Cardoso, como um autocrata, governou afrontando o Congresso Nacional e transformando em permanente um recurso legislativo que os constituintes de 1987-1988 adotaram para uso em situações de emergência e que, por isso mesmo, designaram de “provisório”.

Trocar o “povão” pela classe média

Causou estranheza também, mesmo entre políticos do campo conservador, a recomendação feita pelo presidente de honra do PSDB (e fartamente destacada pela mídia): deixar de lado a disputa pelo “povão” (a maneira desrespeitosa com que a elite e os neoliberais referem-se aos cidadãos brasileiros mais pobres) e mirar na “classe média”.

Partindo de Fernando Henrique Cardoso, não há novidade aqui. Nos oito anos em que passou à frente da Presidência da República ele governou para os ricos e – segundo relato feito em entrevista ao jornal O Pasquim por um jornalista de suas relações, cotado inclusive para ser seu ministro do Esporte no primeiro mandato – disse certa vez que não há lugar para todos na modernidade e por isso uma parte da população teria mesmo que ser sacrificada.

De qualquer forma, o artigo de Fernando Henrique Cardoso é revelador das opções da oligarquia neoliberal e de sua maneira de fazer política. Ele está baseado num erro formal que aparece logo em seu início, quando FHC o compara a outro, publicado no jornal Opinião (que foi uma trincheira da resistência democrática contra a ditadura) na década de 1970. Nos dois artigos ele se refere à atuação da oposição, e usa inclusive om mesmo título: “O papel da oposição”.

Mas o erro de avaliação é incontornável. Há 35 anos ele se dirigiu à oposição democrática e patriótica contra os governos dos generais. É irrelevante a comparação que ele sugere entre a popularidade do ditador general Emílio Médici, derivada do crescimento que o país vivia, e a popularidade de Lula, também ancorada em grande parte no crescimento da economia. Há uma diferença fundamental à qual FHC não se refere: a natureza do crescimento econômico. Sob Médici, vigorava o dogma de que o bolo devia crescer antes de ser distribuído; era um modelo de pés de barro, que favoreceu os ricos e mimou a classe média mas deixou o povo ainda mais pobre. Com Lula e Dilma, crescimento e distribuição de renda são ocorrem juntos, e os trabalhadores sentem na pele (e na mesa) a diferença.

Mas a questão central é o erro formal em que se baseia a argumentação de FHC sobre o papel da oposição. Para ele oposição é oposição, se opõe ao governo, e só. Mas outra face que fica oculta nesta frase: oposição depende de programa. No artigo de 35 anos atrás ele se dirigiu à oposição formada pelo Movimento Democrático Brasileiro, o MDB que depois virou PMDB, e pelas oposições não institucionais, isto é, os movimentos e partidos clandestinos, entre eles o Partido Comunista do Brasil. Dirigia-se aos socialistas que lutavam contra a ditadura. Do outro lado, dirigindo, servindo e beneficiando-se do regime militar, estavam os conservadores, os atuais neoliberais, a direita.

O fim da ditadura em 1985 e a eleição de Lula para a Presidência da República em 2002, provocaram uma rotação neste cenário. Hoje, a oposição é formada por políticos oriundos dos quadros da ditadura unidos aos neoliberais que, naquela época, estavam contra os militares por não aceitarem a intervenção do Estado e do governo para fomentar o desenvolvimento. Eles formam, desde a década de 1990, o eixo principal do conservadorismo e da direita no Brasil, a aliança entre o PSDB e o DEM (ex-PFL, ex-Arena).

Assim, o formalismo de FHC leva-o a se dirigir a uma “oposição” que, há 35 anos, controlava o país com mãos de ferro, e a conclama a atuar contra aqueles que, nos anos da ditadura, enfrentaram o arbítrio e, agora, estão à frente do governo federal.

Daí a “complexidade crescente” à qual o ex-presidente se refere e que só causa perplexidade a ele e a seus parceiros de programa conservador e neoliberal em virtude daquele erro formal que fundamenta sua argumentação.

Ele se dirige a protagonistas cujas posições foram alteradas ao longo da luta política e também aos programas que defendiam e defendem. Aqueles que mandavam sob a ditadura hoje estão na oposição, são aliados de FHC; sempre defenderam – ontem e hoje – os interesses do grande capital, a eliminação dos direitos sociais e a limitação dos direitos cívicos e políticos do povo e dos trabalhadores. Este é um programa que FHC não pode explicitar sob o risco de afundar ainda mais no ostracismo. Não foi por outra razão, aliás, que os candidatos do PSDB, do DEM e do PPS, simplesmente esconderam as “realizações” de FHC nas campanhas eleitorais de 2002, 2006 e 2010 – eles tinham consciência do estrago político que provocariam em seu desempenho eleitoral, como de fato ocorreu mesmo sem menção a esse legado nocivo para o país e para o povo.

FHC supõe ser possível atrair a “classe média”; conta com isso apostando num suposto conservadorismo e na amnésia histórica dos trabalhadores que tiveram ganhos de renda sob os governos de Lula e Dilma. Não leva em conta que esta “classe média” é formada por trabalhadores assalariados, além da grande parcela que atua por uma alegada “conta própria” que disfarça o domínio e a exploração de seu trabalho pelo capital.

Esta é a contradição frontal – a oposição entre capital e trabalho e a grande multiplicidade em que ela se apresenta – que fundamenta programas políticos diferentes e opostos. Este é um problema que FHC esquece, embora seja de enorme importância para o conhecimento das bases reais que podem fundamentar programas políticos e a adesão ou rejeição que eles encontram.

A saída fácil de FHC, dos tucanos, conservadores e neoliberais, é bater na tecla de que os governos Lula e Dilma “compraram” o voto do povo mais pobre com programas de transferência de renda (como o Bolsa Família), menosprezando a lógica de classe que há na avaliação popular a respeito de um governo que, ao distribuir renda (embora sem a profundidade necessária) e valorizar o trabalho e o emprego, faz aquilo que nunca antes foi feito neste país (obrigado, Lula, pela frase): preocupar-se com o bem estar do povo e a força da economia, e não somente com os interesses do grande capital financeiro, que foi a marca frisante do período FHC.

A política opõe programas, que tem fundamentos classistas, e são eles que definem a atuação e a aprovação popular, e não o fato circunstancial da ocupação de um governo. FHC, os conservadores e os neoliberais continuam identificados por estes rótulos condenados, no governo ou fora dele, e não há mágica discursiva que altere esta situação concreta. O não reconhecimento desta verdade elementar leva à identificação, por FHC, de uma “complexidade crescente” no quadro político nacional, que ele articula ao que chamou de “certa perplexidade das oposições”, uma maneira suave de se referir ao esfacelamento das fileiras que o têm como guru e referência.

Alguns aspectos do programa avançado e apoiado pelos brasileiros, que FHC condena, podem ser notados na ação dos governos Lula e Dilma em relação às agências reguladoras ou, por exemplo, no ministério do Esporte, que ele citou nominalmente. Haroldo Lima, diretor geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP) já demoliu, em declarações a este portal (“Haroldo Lima: FHC faz ataques injuriosos ao PCdoB”, em 20/04/2011) as críticas de FHC às agências reguladoras que, em sua época, eram “independentes” do governo mas controladas justamente pelos interesses privados que elas devem fiscalizar e controlar.

Em relação ao Ministério do Esporte, há uma clara “dor de cotovelo” devida ao notável desempenho do ministro Orlando Silva, um quadro do Partido Comunista do Brasil, que tirou o esporte de uma agenda dedicada apenas aos negócios e fez dele um fator de inclusão social, de educação e saúde em benefício daquela parcela da população que sempre esteve à margem da ação dos órgãos públicos.

Método de Goebbels

Há um leque de temas tratados no longo artigo de Fernando Henrique Cardoso que exigem comentário – ele se refere ao que chama de anacronismo dos partidos políticos (uma tese surpreendente para o presidente de honra de um deles!), sonha com o uso da internet para mobilizar as multidões (como teria ocorrido nos levantes do Oriente Médio), imagina ser possível mobilizar a juventude em torno de uma agenda conservadora universitária (nos tempos do ProUni?).

Mas ele surpreende mesmo ao aconselhar a maneira de fazer a propaganda das ideias que defende e, de certa forma, momento em que atualiza as recomendações do ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels: uma afirmação muito repetida acaba sendo vista como verdade.

Neste sentido, defendeu teses controversas. Depois de escrever: “é preciso persistir, repetir a crítica, ao estilo do ‘beba Coca Cola’ dos publicitários”, propôs a teatralização e o uso da emoção, sem as quais a “crítica – moralista ou outra qualquer– cai no vazio” E reconhece: sem estes métodos marqueteiros, “sem Roberto Jefferson não teria havido mensalão como fato político”. Isto é, foi com estes recursos propagandísticos que criaram o chamado “mensalão”!

O argumento subjacente é o de que seres humanos podem ser manipulados pois, pensa, “não atuam por motivos meramente racionais”. Noutra altura, volta ao assunto dizendo que interessar “diretamente ao povo”, despertar seu interesse, “depende de como a oposição venda o peixe”. Ele tem razão quando diz que, ”na vida política tudo depende da capacidade de politizar o apelo e de dirigi-lo a quem possa ouvi-lo”. Mas, ao dizê-lo, levanta a ponta do véu que encobre a natureza deste apelo a ser politizado quando diz ser preciso gritá-lo “todos os meios disponíveis”.

E defende uma agenda para “concentrar esforços e dar foco, repetição e persistência à ação oposicionista”. As palavras chaves aqui são “repetição e persistência”. A política, para o ex-presidente, não existe para organizar o povo, elevar sua consciência e conquistar sua adesão a um programa político que seja a expressão de seus interesses e necessidades. Ao contrário, ela é uma atividade de propaganda voltada para a manipulação e para a imposição, ao “povão” – e, como ele pretende, à “classe média” – de “verdades” às quais apenas um bando de iluminados tem acesso, que o povo não compreende mas às quais pode aderir desde que sua emoção seja corretamente manipulada.

Ele não podia ser mais claro a respeito de suas intensões e dos sentimentos que norteiam os conservadores brasileiros. Eles são anacrônicos no sentido pleno da palavra: estão fora do tempo. Não compreendem as mudanças profundas que os brasileiros vivem na nova etapa aberta com a eleição de Lula em 2002. Para seu conforto, reduzem aquelas mudanças a aspectos superficiais e comezinhos, como a difusão da telefonia móvel privatizada, que eles promoveram.

Mas os brasileiros vão muito além: querem um Brasil cuja modernidade signifique justiça, trabalho, melhoria na renda dos trabalhadores, conquistas de novos direitos sociais e políticos, fortalecimento da soberania nacional, avanço na democracia e ampliação do protagonismo político do povo. Este é um programa que FHC e seus liderados não aceitam mas ao qual não podem se opor abertamente. Dai sua prisão a formalismos como a expressão acaciana e vazia usada por ele segundo a qual oposição existe para se opor ao governo, deixando de lado a questão crucial: com que programa?

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Jornalista, editor do jornal Classe Operária