A propósito, Jürgen Habermas (1929- ), em seu Mudança Estrutural na Esfera Pública (Editora Tempo Brasileiro, l984) afirmava que a imprensa não podia deixar de se comprometer politicamente com o combate pela liberdade da opinião pública, pela publicidade e pela crítica enquanto princípios, porque a esfera pública não tinha ainda adquirido um estatuto legal e estável. O que a história mostra é uma longa caminhada dos jornais em busca de seu lugar na esfera pública.

Muitos foram os filósofos e pensadores que se debruçaram sobre a questão. Por exemplo, para Immanuel Kant (1724-1804) a liberdade de imprensa era o verdadeiro paladino da liberdade, batendo-se por uma imprensa livre que não existia; e mesmo na França, onde estava instituída essa liberdade, a imprensa inscrevia-se na ordem pedagógica da cidadania, no sentido de levar ao povo as luzes da verdade, como penhor e formação da uma vontade para sempre inibitória do retorno dos velhos fantasmas absolutistas.

Os animadores de notícias

E hoje, o que vemos? Muitas dessas "luzes da verdade" brilhando através de lâmpadas fabricadas pelo interesse corporativo, quando não meramente político-partidário. Não se trata mais de impedir o retorno dos "velhos fantasmas absolutistas" porque muitos desses, na verdade, nunca saíram de cena; ou pior, estiveram sempre muito próximos do fogo ateado pelas paixões políticas, pelas ideologias, pelos muitos "ismos": liberalismo, conservadorismo, socialismo.

É mais que evidente que a instituição da liberdade de expressão, como a dimensão cultural da natureza bipolar da imprensa, exigia o desenvolvimento da dimensão econômica, a liberdade de empresa, vista nos primórdios da atividade jornalística instituída como condição fundamental para o exercício do debate público. E não se pode descartar que a sobrevivência material e financeira aparecia como característica primeira da liberdade de imprensa para que pudesse manifestar, sem qualquer censura, coação ou violência, as opiniões e informações contrárias ao Estado ou ao poder político.

Deixemos as digressões ao largo, ao menos por alguns instantes, e vamos tentar entender isso que nossos principais jornais e revistas (ao menos em número de circulação diária ou semanal) entendem como tal. É, no fundo, um falso debate. Isto porque há Liberdade de Expressão e liberdade de expressão. Enquanto a primeira se grafa em versalete ou em caixa alta, a segunda se contenta em povoar endereços virtuais de quinta categoria, confraterniza animadamente com blogues nem sempre limpinhos e aparece sempre replicada por uma tal Teia da Cidadania que reúne os deserdados pelo capital, pelas ideias, pela fama e renome.

A primeira é aquela defendida com unhas, dentes, tinta, papel, rádio, TV, internet e simpósios pelo patronato da grande imprensa, os que são proprietários de conglomerados midiáticos, os também chamados – nem sempre respeitosamente – mercadores da informação. São poucos, não perfazem duas mãos os nomes dos que detêm quase como os antigos sesmeiros do Brasil colonial o poder de tornar comerciável o que é e o que não é notícia, o que é e o que não é bom para o Brasil, a visão de mundo que desejamos e aquele mundo tóxico, sempre indesejável, que desperdiça seus recursos materiais e humanos para melhorar a paisagem, quase sempre parada, de muita pobreza e miséria.

A segunda é a liberdade prima-pobre, não é tema de editoriais, nem de primeiras páginas de jornais de grande circulação; a esta são sonegadas observações lisonjeiras de jornalistas que em bancadas de telejornais de grande audiência se comportam como animadores de notícias. É a liberdade de imprensa invocada, pretendida, suplicada, requerida nos tribunais pelos sem-jornais, sem-TVs, sem-portais na internet, sem-rádios, sem-apoio financeiro de corporações empresariais.

Direito restrito

É, repito, um falso debate. Os que empunham as bandeiras de liberdade de imprensa o fazem mais para preservar "conquistas" empresariais que para defender um conceito que se contraponha ao estado de exceção que começa promovendo a censura aos meios noticiosos e ninguém sabe direito como termina. É falso porque não se ampara em intenções honestas, em defesa de princípios lídimos. Não é debate porque o lado da caixa alta – Liberdade de Expressão – detém todos os meios adequados à verbalização e imediata repercussão de seu ideário, pressupostos e conclusões. Ao outro lado, o da caixa baixa – liberdade de expressão – resta apenas o jus esperniandi, o velho direito romano e agora tão abrasileirado direito de espernear.

E mesmo essa manifestação de contrariedade é quase sempre sufocada pela desqualificação dos que se atrevem a espernear: são ex-profissionais ressentidos que um dia ocuparam cargos relevantes no negócio da imprensa, jornalistas de quinta, comediantes travestidos de jornalistas, escrevinhadores saudosistas do stalinismo e por aí vai.

É falso este debate porque os debatedores convidados – e os únicos com direito a voz e sua consequente repercussão – articulam sempre o mesmo discurso e o fazem com maestria, de forma que quando um editorial termina em "a" o outro começa em "e" de maneira a logo termos a sequência correta do conjunto de vogais convocadas.

É curioso – bastante curioso! – que os que pugnam por mais liberdade de expressão são justamente os atores sociais que a esbanjam, que detêm o monopólio de seu uso de forma irrestrita e quase sempre discricionária. Não há dúvida que muitos anônimos anseiam por ampla liberdade de expressão, mas estes terão que se conformar com o estado de coisas – poderão se expressar da forma que quiserem, mas não poderão ser ouvidos na amplitude que se possa considerar abrangente e minimamente justa.

De que adianta ter o direito de livre expressão se não existem meios para potencializá-lo, para alcançar o público-alvo pretendido? Aqueles que já passaram pelo calvário que é requerer a reposição de justiça quando seu nome é jogado ao lodaçal das más reputações, quando sua honra é enxovalhada sem que se lhe ofereça o direito basilar de autodefesa, conseguem perceber quão cruel pode ser o usufruto da liberdade de expressão tão-somente por aqueles que dispõem dos meios de comunicação massivos. E até que parcela majoritária da sociedade brasileira possa ser ouvida, de maneira equânime, ciente de que todos têm o mesmo direito perante a justiça, já que o conceito de justo – bem o sabemos – é anterior ao conceito de bem, não poderemos dizer que no Brasil a liberdade de expressão é um direito de todos e de todas.

Privativo dos meios de comunicação

Não menos nociva é a confusão que tem sido semeada de forma bastante articulada: liberdade de expressão e liberdade de imprensa significam o mesmo. Ora, há que se pensar a liberdade de imprensa não mais apenas como um direito individual privado, mas como um direito social coletivo, fundamentado numa concepção igualitária de justiça. Fazendo isso, passamos a colocar estas ideias em seus eixos. Urge que pensemos a imprensa novamente como um espaço de reflexão crítica, consciente e esclarecida, capaz de garantir o direito de participação de cada sujeito no processo político e na prática comunicativa. Em algum dia voltaremos a tratar dessa "confusão premeditada".

A farsa que se monta chega a ser perversa em sua própria natureza: a bandeira da vítima passa ser empunhada com vigor sempre redobrado pelo algoz, de forma que gradativamente o conceito de liberdade de expressão passa a ser privativo dos meios de comunicação e de seus representantes per excellence, i.e., os proprietários dos canais, dos portais, dos parques gráficos, das empresas jornalísticas em geral. E ai daquele que se aventurar a requerer como seu este direito. Entrará na história ou como vândalo das ideias ou como inocente útil manipulado por organizações da sociedade civil como mera massa de manobra – gente incapaz de pensar por si mesma e, mais que isso, incapaz de exercer seu direito à livre expressão.

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Fonte: Observatório da Imprensa