Se eu fosse fazer um filme sobre as eleições para presidente de 2010, eu não filmaria uma única imagem: faria um filme com imagens de arquivo. Esclareço: chamamos “imagens de arquivo” aquelas feitas por outras pessoas que não o cineasta que as articula, e produzidas para outro fim que não o filme que as utiliza.

As imagens de arquivo que eu usaria seriam aquelas produzidas e veiculadas pelos jornais impressos e televisivos, mas não só! Estas estariam articuladas com aquelas produzidas para os horários eleitorais, na TV e no rádio. Além disto, poderia usar imagens captadas pelos chamados “cinegrafistas amadores”, ou melhor, pelo enorme contingente de novos portadores de celulares e/ou câmeras portáteis que captam imagens e sons em movimento. Contaria ainda com uma infinidade de vídeos musicais, fotos, cartazes, filipetas, panfletos e demais materiais gráficos e sonoros produzidos sobre as eleições, a campanha dos candidatos, os candidatos, os fatos políticos, sobre as denúncias, a cobertura da imprensa e a imprensa propriamente dita.

O material é rico e variado: trechos dos programas eleitorais tiveram versões funk, techno remix, electro house, hip hop, funk remix montadas por “editores amadores”. Outro esclarecimento: edição e montagem são a mesma coisa, ou seja, um recurso da linguagem audiovisual que articula as imagens umas após a outra, dando-lhes significado. Os programas de edição de imagem e computação gráfica também se tornaram acessíveis a muitos brasileiros criativos que passaram a produzir e divulgar conteúdo em sites, blogs ou redes sociais.

É por isto que, se eu fosse fazer um filme sobre as eleições de 2010, eu não filmaria uma única imagem original.

O filme teria momentos bem-humorados. Estas eleições foram marcadas pela paródia, a tiração de sarro, pela charge bem ou mal-humorada. Não poderia ignorar o vasto material produzido em torno do episódio da bolinha de papel. Acho que nunca se produziu tanto conteúdo cômico a partir de um fato público, desde os tempos de D. Pedro II.

Ainda não sei como articularia tantas imagens. Mas tenho uma ideia de como eu poderia terminar o filme. Há poucos dias atrás, antes do domingo da votação para segundo turno, assisti no youtube uma imagem que me impressionou: um “cinegrafista amador” grava a ida de Indio da Costa, candidato à vice-presidente pelo DEM, à Rocinha, no Rio de Janeiro. A visita deve ter ocorrido em algum dia de outubro de 2010. Numa rua do bairro, alguns moradores estão reunidos em torno de câmeras de jornalismo que acompanham Indio da Costa. A cena no youtube já começa no alto, em pleno bafafá: um homem, que parece ser um morador, acusa o candidato, e fala para a câmera:

– Ele nunca fez nada!

Penso em Odorico Paraguaçu, personagem de Dias Gomes imortalizado na TV por Paulo Gracindo. O vídeo no youtube remete a um arquétipo da cultura brasileira: o político que governa a seu favor e se elege através de promessas para com o povo simples, promessas as quais não cumpre.

Volto ao youtube, um repórter pergunta ao morador, se referindo ao Indio:

– O que o deputado fez pela Rocinha?

O homem repete, com ênfase:

– Nunca fez nada e nem vai fazer! Ele prometeu um monte de coisas pra comunidade e até hoje não voltou. Só voltou hoje!

O bate-boca se intensifica, a câmera, sempre na rua, no meio da altercação. Outros moradores ganham coragem, se aproximam, passam a engrossar o coro.

Índio da Costa se afasta, sozinho, sob vaias. A câmera permanece junto dos moradores, observando o candidato ir embora, aguardando um ônibus passar para atravessar a rua.

Eu fiquei olhando a solidão do Indio da Costa se afastando escorraçado. Devaneio…

Pensei se aquela imagem não está querendo nos dizer que o arquétipo do político que vai ao povo pedir votos, e nunca mais volta, não estaria ultrapassada. Talvez estejamos vendo o surgimento de uma nova dramaturgia. Talvez seja a hora de construir um novo arquétipo do político: o do representante eleito para encaminhar propostas dos eleitores, com os quais se compromete.

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Tata Amaral é cineasta. Dirigiu os longas Antônia, Através da Janela e Céu de Estrelas.

Fonte: CartaCapital