No Brasil, 80 denúncias de violência contra crianças e adolescentes são recebidas diariamente pelo Disque Denúncia Nacional (Disque 100), serviço gratuito que encaminha as informações aos órgãos competentes para apuração e devidas providências. Das denúncias recebidas, cerca de 40% correspondem a violência sexual contra meninos e meninas com idade inferior a 18 anos. O número de casos que chegam a virar denúncia certamente não reflete a dimensão do problema no país, onde essa gravíssima violação de Direitos Humanos persiste, desafiando os poderes públicos, as leis e a cidadania como um todo.

A importante cobertura feita pela imprensa de episódios que ocorrem pelo Brasil mostra que a violência sexual contra crianças e adolescentes está presente em todos os estados e classes sociais. E pode acontecer dentro ou fora de casa, apresentando características de abuso ou exploração comercial – quando envolve remuneração.

O enfrentamento dessa triste realidade é uma prioridade para o governo brasileiro, que atua de duas maneiras: na prevenção ao crime e na assistência às vítimas. No entanto, só a repressão já mostrou não ser suficiente para a complexidade que envolve a prática dessa violência. Ela só poderá ser realmente encarada se houver ampla mobilização social em torno do tema.

A necessidade do engajamento efetivo do setor empresarial nesse combate foi uma das principais conclusões do 3º Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, realizado no Rio de Janeiro em novembro de 2008. Mais de 3.500 pessoas, de 160 países, participaram do evento, que foi o maior já realizado no planeta para discutir o tema.

Tal engajamento cresce de importância especialmente em conjunturas como a vivida pelo Brasil de hoje, quando se multiplicam acampamentos para construção de hidrelétricas, ferrovias, rodovias e outros empreendimentos, que envolvem canteiros com até 5 mil trabalhadores, a esmagadora maioria do sexo masculino, longe de suas famílias. Todos sabem que esse cenário representa um atrativo feroz para redes de prostituição, fenômeno que já representa um grave problema social em si, mas ultrapassa todos os limites do tolerável quando inclui crianças e adolescentes.

Se as próprias empresas vencedoras das licitações para as grandes obras adotarem medidas de enfrentamento, em parceria com as autoridades públicas dos três poderes, o esforço conjunto poderá eliminar do Brasil essa mancha que ainda desmancha o verde, o amarelo e o azul de nossa bandeira nacional. Não conseguiremos alçar o projetado posto de quinta economia mundial se não formos capazes de fazer esse tipo de enfrentamento estrutural, absolutamente indispensável para legitimar a imagem de respeito internacional que o país começa a merecer.

Um importante passo nesse sentido foi dado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) que propôs a seus associados assinarem a Declaração de Compromisso Corporativo no Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, obtendo 24 adesões no pontapé inicial. Pelo compromisso, essas empresas públicas e privadas, responsáveis por quase 20% do PIB brasileiro, comprometem-se a realizar ações concretas para sensibilizar funcionários, fornecedores e clientes sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes, podendo estabelecer cláusulas em seus contratos explicitando uma rejeição cabal a esse tipo de crime.

A convocação do setor empresarial para uma atenção especial a temas dos direitos humanos foi oficialmente feita pela ONU, em 2000, com o lançamento do Pacto Global. A iniciativa prevê uma articulação permanente de empresas de todo o mundo – que tem a Petrobras em seu "board" internacional – em torno de quatro temas centrais: direitos humanos, respeito ao meio ambiente, direitos sindicais e trabalhistas e combate à corrupção. Ecoando essa proposta, o presidente Lula reuniu, em 2008, 260 empresas para discutir propostas e compromissos corporativos a respeito dos direitos das crianças, inclusão das pessoas com deficiência, igualdade racial, equidade de gênero e combate ao trabalho escravo.

É nesse combate que o Brasil vem dando exemplo e foi elogiado pela relatora da ONU para formas contemporâneas de escravidão, Gulnara Shahinian, em recente relatório apresentado em Genebra sobre a situação desse problema no mundo. O Pacto Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que reúne mais de 130 empresas e organizações dispostas a cortar relações comerciais com fazendas e patrões que sejam autuados em flagrante por utilização das modalidades contemporâneas de trabalho forçado, foi considerado pela relatora como uma forma exemplar de enfrentamento a esse crime.

A novidade promissora desse novo engajamento das corporações está em fazer colar a tão proclamada energia animal dos empresários, em suas audazes iniciativas empreendedoras -já valorizadas por Schumpeter tanto quanto Marx celebrou a força do proletariado moderno – em questões sociais, onde os direitos humanos ocupam posição mais central do que a leitura tosca e irresponsável a respeito da imediata produção de lucros ou reprodução ampliada do capital.

Essas iniciativas sinalizam claramente o amadurecimento da responsabilidade social da empresa brasileira moderna, em disputa contra velhas tradições ainda enraizadas em setores mais retrógrados, avessos à convivência democrática e republicana. Nessas parcerias éticas para promoção dos direitos humanos pelas corporações cresce também a compreensão de que a sustentabilidade e a segurança para geração de riquezas e lucros estão vinculadas à noção de que as empresas são muito mais fortes quando atuam num país onde a fome e a extrema pobreza vão sendo erradicadas, trocando-se o desespero social e seus desfechos imprevisíveis por um projeto de Brasil onde sejam conjugados adequadamente os grandes ideais milenares da liberdade e da igualdade.

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Paulo Vannuchi é ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

Fonte: jornal Valor Econômico