As catástrofes econômicas e bélicas que transbordariam em fome e genocídios na primeira metade do século XX, encadeadas à crise de 1929 e à II Guerra Mundial, pavimentariam o caminho para que políticas de natureza anticíclica na área fiscal e monetária ganhassem legitimidade crescente incorporando-se à teoria econômica e ao instrumental do Estado em nosso tempo.

A criação da FAO reflete a institucionalidade resultante dessa dupla travessia política e teórica cujo passo seguinte seria a consolidação da agenda da segurança alimentar e nutricional no pós-guerra.

Bastaram três anos críticos, de 2006 a 2009, para que conquistas obtidas em 15 anos fossem revertidas, evidenciando-se a debilidade das dinâmicas de inclusão no sistema econômico. Em 2009, a fome castigou 53,1 milhões de habitantes.
A principal novidade nesse avanço é que as ações contra a fome e a desnutrição assumiriam contornos de uma salvaguarda permanente da sociedade. Não mais um recurso emergencial.

Além de prevenir e atenuar crises, sua importância deriva da capacidade de qualificar os períodos de alta do ciclo econômico, associando o crescimento à expansão de políticas estruturantes destinadas a equacionar as causas da pobreza e da fome. O incentivo à agricultura familiar é um desses desdobramentos.

Perdas e danos contabilizados na América Latina e Caribe pelo recente colapso da finança mundial evidenciaram a necessidade de reforçar essas diretrizes nas economias locais.

Embora a região tenha resistido melhor à turbulência recente, comparativamente a outros períodos críticos como o colapso da dívida externa, nos anos 80, persistem sinais preocupantes de vulnerabilidade em seu metabolismo.

A Cepal estima um crescimento de 5,2% para a região este ano, um ritmo de recuperação superior ao verificado em crises anteriores (1994-1995; 2001-2004), mas recheado de marcantes assimetrias.

Enquanto o PIB da América do Sul caminha para uma alta média de 6%, as economias da América Central ficarão no meio do caminho (3,1%). Pior é a situação dos países do Caribe, onde se concentram algumas das maiores taxas de pobreza e sete prognósticos de PIB negativo. Esse conjunto terá uma expansão inferior a 1%.

O entrelaçamento de fragilidade e robustez – que se reproduz também no interior de cada país, com graus variados de perversidade – ajuda a entender outro paradoxo. Bastaram três anos críticos, de 2006 a 2009, para que conquistas obtidas em 15 anos de luta contra a fome fossem revertidas, evidenciando-se a debilidade das dinâmicas de inclusão no sistema econômico regional.

Entre o início da década de 90 e 2007, o total de pessoas com fome na América Latina e Caribe recuou de 54 milhões para 47 milhões. Em 2009 a gangorra da fome elevou-se novamente a um patamar próximo ao dos anos 90, castigando a vida de 53,1 milhões de habitantes da região.

Embora o núcleo duro da fome no século XXI encontre-se na África, onde estão oito dos nove países devastados atualmente pela subnutrição, América Latina e Caribe figuram como o único ponto do planeta onde não se verá uma redução expressiva dessa chaga em 2010: a redução prevista limita-se a um modesto contingente de 600 mil pessoas comparado com 2009.

O Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe 2010, divulgado esta semana pelo Escritório Regional da FAO, aponta três causas que explicam o aumento da fome entre 2006 e 2009 e porque a diminuição foi modesta em 2010. O documento, que pode ser acessado em www.rlc.fao.org, mostra, em primeiro lugar, que o impacto da crise na região foi mais forte do que se esperava; como consequência, populações que conseguiam manter-se sobre a linha da pobreza foram empurradas abaixo dela pelo desemprego e o aumento dos preços dos alimentos; finalmente, a maioria dos Estados nacionais deu mostras de sua fragilidade institucional para responder a crises dessa envergadura, em tempo hábil.

Esse revés, bem como a heterogeneidade do crescimento, guarda sintonia implacável com a acanhada munição fiscal das economias locais, incapazes de acionar medidas anticíclicas para enfrentar a crise. Hoje, a carga tributária média na América Latina e Caribe é de 18% do PIB; a da União Europeia, 39,8%. Pior, mais de 50% da receita da nossa região baseia-se em impostos indiretos, com efeitos regressivos sabidos numa estrutura de renda já perversa.

Sem um novo pacto fiscal, a limitação orçamentária tende a reproduzir a desigualdade e agravar a exclusão. A Guatemala é um caso síntese desse torniquete: o país tem o pior índice de desnutrição da AL e o menor gasto social per capita da região (US$ 350/ano). Na crise, deu-se o inevitável. A exemplo do que ocorreu também em El Salvador, Honduras e Nicarágua, a Guatemala aumentou o endividamento público em 2009. Hoje, os quatro países negociam um programa de ajuste com o FMI que implicará em cortes adicionais no já anêmico gasto social.

Um círculo vicioso como esse não admite a postergação de reformas importantes, mas não deve aspergir desespero neste Dia Mundial da Alimentação. Com 6% da demografia mundial, a America Latina figura hoje como um dos maiores celeiros de alimentos do planeta, gerando 16% da oferta total de carnes, 11% dos lácteos e 7% da colheita de grãos. Sua debilidade, portanto, não advém dos frutos propiciados pela natureza, mas do seu manejo inadequado pela sociedade.

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José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para América Latina e Caribe

Fonte: jornal Valor Econômico