A indústria da construção civil é espacialmente distribuída, seus canteiros podem estar da zona rural até rumo aos céus nas metrópoles. Tem o mérito de difundir atividades econômicas e auxiliar a fiscalidade nos três níveis da federação. Como mercadoria, tem valor relativamente elevado e é espaço de ganhos normais até lucros especulativos. A construção civil pioneira é a demiurga de novos espaços habitados.

Na perspectiva da imensa maioria de compradores, o imóvel é sua maior aquisição individual e a família que o adquire, geralmente, se dedica a habilitá-lo com vasta coleção de objetos domésticos, inclusive aqueles ligados a boas recordações e a componentes de memória afetiva. Pela dimensão patrimonial, na maioria dos casos o comprador está capitalizando os aluguéis. Pelo ângulo patrimonial, o comprador geralmente emite divida primária e fica incluída na prestação uma parcela de juros. Como é um objeto com valor e valorização, o financiamento, geralmente de longo prazo, baseia-se na hipoteca da moradia. Entre as múltiplas exigências da hipoteca está o registro imobiliário do título de propriedade do terreno.

A autoconstrução deveria ser objeto de um financiamento massivo. Existem milhões de casas construídas pelo povo

Não é assim para a imensa maioria do povo brasileiro. Não tem acesso ao sistema de financiamento imobiliário hipotecário pois geralmente é ocupante informal de um terreno não vigiado nem utilizado por seu proprietário formal. Em muitos casos, só lhe é possível a moradia retirando-lhe os atributos de mercadoria e ativo financeiro imobiliário. Em bom português, o povo constrói no terreno que lhe for acessível com materiais de construção que compra em pequenas porções. Na maioria dos casos, a habitação popular é construída sem qualquer apoio técnico e sua materialização é a concreção de uma poupança que foi acumulando tijolos e outros materiais de construção e que é construída por frações, mediante a prática do mutirão (auxílio de amigos, sem remuneração), principalmente ao colocar o concreto para fazer a laje.

No Brasil, existem milhões de moradias construídas pelo povo e sem registro imobiliário. A autoconstrução deveria ser objeto de um financiamento massivo. O povo brasileiro é, reconhecidamente, bom pagador de prestações, pois não pode “sujar seu nome”, pois isto significa retirá-lo da proximidade de uma série de objetos de necessidade e desejo. A venda financiada de materiais de construção, dispensando o financiado da comprovação da posse do terreno, multiplicaria os canteiros de obras informais. O próprio povo resolveria uma parte do problema da moradia. O poder público deveria dar orientação quanto a métodos de construção e verificar a segurança da construção – e o problema da moradia seria, então, de ampliação e melhoria das infraestruturas.

A Caixa Econômica Federal tem um programa modesto de financiamento de materiais, mas poderia realizar um gigantesco programa de apoio à moradia autoconstruída, mediante uma linha individual com limites modestos de empréstimos. O acesso a essa linha tem de ser radicalmente simplificado e, talvez, a Caixa pudesse inspirar organizações tipo Casas Bahia a serem os operadores primários e atuar redescontando as promissórias ligadas a esse programa.

A multiplicação de proprietários de moradia tem um efeito associado de enorme e crescente importância. A ideologia da globalização procurou substituir, nos corações e mentes, a ideia de nação pela ideia de fácil acesso “ao mercado”. A indústria de bens de consumo e a fábrica de ilusões, fantasias e desejos materiais têm operado admiravelmente bem, a partir das técnicas publicitárias. Contudo, é a moradia própria, situada no lugar, o desejo primário de todos os jovens que pretendem ser habitantes de um país.

A globalização, que obteve livre movimentação mundial para mercadorias, empresas, tecnologias, operações de compra e venda patrimonial, ativos mobiliários, enfim, para o capital, não aplicou os mesmos princípios neoliberais à livre movimentação da força de trabalho e das populações. O tema social permaneceu no âmbito nacional e sob responsabilidade dos governantes dos Estados nacionais. Para o capital, livre mercado; para o trabalho, barreira de toda natureza.

Com a ideologia neoliberal da globalização não iremos atender às necessidades sociais dos quase 200 milhões de brasileiros. Para enfrentar a questão social, o Brasil-Nação é a instituição-chave e necessita, para seu desenvolvimento, de um forte sentimento de pertencimento e identidade nacional em busca de um projeto nacional.

A postura nacionalista de crer e saber que é possível uma civilização brasileira deveria conferir enorme prioridade ao acesso popular aos bens de raíz. Todo camponês proprietário de um lote agrícola conhece suas vocações, precariedades, peculiaridades; aquele é seu lugar, é onde está sua moradia, quase sempre autoconstruída. Todo dono de moradia própria conhece os detalhes de sua residência; sabe que tem vizinhos e que depende da presença pública para uma variedade de serviços fundamentais à sua vida. O lugar onde mora é o seu lugar, com uma particularidade tipicamente popular brasileira. Qual de nós não ouviu de alguém do povo a declaração: “Lá, todo mundo me conhece e eu conheço todo mundo”. Nesta declaração está o afeto intenso ao lugar como componente básico da identidade. Quando o funkeiro, em sua composição musical, declara que “só queria ser feliz, andar tranquilamente na favela onde nasceu”, estava afirmando identidade e paixão pelo lugar. No lugar onde está a sua moradia estão, também, suas raízes.

Desde tempos coloniais e até 1988, a autoridade policial, a seu critério, podia deter qualquer pessoa a pretexto de ser “vadio” (contravenção por vadiagem) e a prova contrária estava no exame dos calos existentes nas mãos ou, a melhor prova, na carteira de trabalho. É típico do brasileiro ter uma fraca, intermitente – e, por vezes, nula – experiência de chão de fábrica ou assoalho de escritório, sendo que, no lugar de sua moradia, onde “todos o conhecem” ele não seria detido como vadio. Isto deu, historicamente, ao lugar brasileiro uma carga afetiva que se manifesta no domínio religioso e das festividades.

O lugar pode fazer parte do território – espaço tornado homogêneo pelas instituições. O Brasil Nação, reforçando os bens-de raiz dos sem-terra e dos sem-teto, poderia ressuscitar o sonho da civilização brasileira, do forte sentimento de pertencimento à pátria e o manso orgulho com a sua identidade. Um programa de moradias autoconstruídas poderia ser um mobilizador para a restauração do sonho nacional do desenvolvimento. Colocaria, com visibilidade, a necessidade de o Estado executar e manter infraestruturas gerais. Valorizaria a ideia do espaço público, e não seria difícil mostrar que o desenvolvimento das forças internas na nação é indispensável para mais tijolos, alimentos, vestuário, serviços educacionais e de saúde.

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Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ

Fonte: jornal Valor Econômico