O seu novo livro, lançado pela Editora Unesp, intitula-se «Brasilidade Revolucionária: um século de cultura e política". Nele, segundo suas próprias palavras, pretende-se analisar «uma vertente específica de construção da brasilidade, aquela identificada com idéias, partidos e movimentos de esquerda (…) Trata-se de uma aposta nas possibilidades da revolução brasileira, nacional-democrática ou socialista, que permitiria realizar as potencialidades de um povo e de uma nação. Essa brasilidade revolucionária, como criação coletiva, viria a definir-se com mais clareza a partir do final dos anos 1950, ganhando esplendor na década seguinte (…) Ela envolveria o compartilhamento de idéias e sentimentos de que estava em andamento uma revolução, em cujo devir artistas e intelectuais teriam um papel expressivo, pela necessidade de conhecer o Brasil e de aproximar-se de seu povo”.

Um projeto generoso que embalou toda uma geração de intelectuais. Mas, foi obstaculizado nos anos que se seguiram – primeiro reprimido pela ditadura e incorporado à indústria cultural; depois, atingido pela onda pós-moderna e neoliberal dos anos 1980 e 1990.

Leiam abaixo o texto de introdução ao livro escrito pelo próprio autor e, gentilmente, cedido ao Portal da Fundação Maurício Grabois.

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Introdução: uma brasilidade revolucionária?

Por Marcelo Ridenti

O termo brasilidade, corrente para os brasileiros, talvez não seja facilmente compreensível do ponto de vista de um estrangeiro. Quiçá ele soe familiar, por analogia, em outros países da América Latina, que também se afirmaram nacionalmente nos últimos duzentos anos, onde se fala por exemplo em argentinidade, peruanidade, mexicanidade e assim por diante. Ele significa, no sentido corrente, “propriedade distintiva do brasileiro e do Brasil”, fruto de um certo imaginário da nacionalidade próprio de um país de dimensões continentais, que não se reduz a mero nacionalismo ou patriotismo, mas pretende-se fundador de uma verdadeira civilização tropical. Seria possível encontrar elementos de brasilidade ao menos desde o século XIX, mas foi a partir dos anos 1930 que ela se desenvolveu no pensamento social brasileiro, nas artes, em políticas de Estado e também na vida cotidiana – de formas distintas e variadas à direita, à esquerda, conservadoras, progressistas, ideológicas ou utópicas.

Criaram-se tradições diversificadas de pensamento sobre o Brasil, por autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr., depois Celso Furtado, Raimundo Faoro, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Darcy Ribeiro e tantos mais. Talvez eles tenham em comum apenas a aposta, cada um a seu modo, em buscar uma originalidade criadora para as contradições enraizadas na sociedade brasileira. Não se pretende aqui, contudo, tratar propriamente do pensamento social.

Por sua vez, o termo revolução também está longe de ser unívoco. E tem sido incorporado no Brasil das mais diversas formas pelos agentes sociais, a partir de miragens das grandes revoluções internacionais, desde a francesa de 1789. Na história brasileira do século XX, o termo revolução ganhou sentidos diferentes, não só à esquerda. Por exemplo, nas chamadas revoluções de 1930, 1932 e 1964, em que as esquerdas ficaram de fora ou mesmo foram perseguidas, e que muitos não consideram como autênticas revoluções, por não terem promovido rupturas estruturais.

Então, o título deste livro, Brasilidade revolucionária, não é explicativo por si só. Cabe explicitar que ele tem um caráter provocativo e se refere a aspectos de uma vertente específica de construção da brasilidade, aquela identificada com idéias, partidos e movimentos de esquerda – e presente também de modo expressivo em obras e movimentos artísticos. Trata-se de uma aposta nas possibilidades da revolução brasileira, nacional-democrática ou socialista, que permitiria realizar as potencialidades de um povo e de uma nação. Essa brasilidade revolucionária, como criação coletiva, viria a definir-se com mais clareza a partir do final dos anos 1950, ganhando esplendor na década seguinte, seguido de seu declínio. Ela envolveria o compartilhamento de idéias e sentimentos de que estava em andamento uma revolução, em cujo devir artistas e intelectuais teriam um papel expressivo, pela necessidade de conhecer o Brasil e de aproximar-se de seu povo.

A brasilidade revolucionária tampouco deve ser substancializada, como se existisse e fizesse sentido por si mesma. Ainda que alguns intelectuais e artistas supusessem que davam voz a uma espécie de potência inata da condição de ser brasileiro, eles estavam construindo imaginariamente uma utopia. Explicitada nos anos 1960, ela resultou da construção coletiva de diversos agentes sociais, comprometidos com projetos de emancipação dos trabalhadores ou do povo, a partir de experiências de vida e de luta descontínuas ao longo do século XX, no processo de modernização da sociedade. Não é fruto de uma continuidade linear. Ao contrário, as constantes intervenções repressivas e a rapidez dos acontecimentos deram a muitos agentes, de diversas gerações, a impressão de que sua luta começava da estaca zero, sem conexão com experiências anteriores, mesmo que se buscasse algum elo perdido no tempo.

Politicamente e no âmbito do pensamento, essa brasilidade é herdeira de lutas sociais diversificadas que geraram amálgamas e rupturas entre o anarquismo, o positivismo, o tenentismo, o comunismo e outras inspirações políticas e intelectuais – tema abordado no primeiro capítulo, a partir do estudo da vida e da obra de um militante intelectualizado, Everardo Dias, que se envolveu com os principais projetos de transformação de seu tempo, notadamente até a década de 1930.

Everardo Dias transitou como poucos pelos movimentos contestadores da República Velha, da maçonaria ao anarquismo, do livre pensamento ao comunismo, do republicanismo ao tenentismo. Expressa o sentimento de brasilidade revolucionária nascente, em seu encontro de imigrante originário do movimento operário paulistano – forçado ao exílio em nome de supostos valores nacionais que os grevistas de 1919 estariam violando – com os trabalhadores “morenos” de Recife. Depois, no seu envolvimento com o comunismo, o jornal A Nação, e ainda os tenentes. Pagou um preço por suas escolhas, em temporadas nas “bastilhas” locais e na constante perseguição pela polícia política.

O sentimento de revolta com a situação mais geral da nação, do povo e dos trabalhadores, vinha junto com a busca de fazer ouvir a sua voz nos fechados círculos políticos e intelectuais. Esse sentimento era compartilhado por outros intelectuais relativamente marginalizados do universo dos bacharéis, como Astrojildo Pereira, que viria a ser o principal dirigente comunista nos anos 1920.

A continuidade e a descontinuidade das lutas sociais do período podem ser notadas na trajetória de Everardo. Sua obra expressa a sensível mundança, em pouco tempo, do universo sobretudo anarquista do fim dos anos 1910 para o nacionalimo tenentista predominante na década seguinte, quando surge também o Partido Comunista do Brasil (PCB).

Talvez o fruto principal da mistura insólita entre anarquismo, comunismo e tenentismo tenha sido o PCB. Seus membros e simpatizantes foram agentes expressivos na elaboração da brasilidade revolucionária, mesmo no período mais autoritário internamente, no auge da Guerra Fria, quando havia uma relação complexa de artistas e intelectuais com o Partido, objeto do segundo capítulo. Nele, pretende-se analisar aspectos dessa relação, no contexto da modernização da sociedade na década de 1950. O problema não caberia numa equação simples, como aquela que supõe que a militância comunista de intelectuais e artistas fazia parte de um desejo de transformar seu saber em poder. Tampouco seria adequado, no outro extremo, supor que houvesse mera manipulação dos intelectuais pelos dirigentes do PCB. Não se trata essencialmente de uso indevido e despótico da arte e do pensamento social para fins que lhes seriam alheios, mas de uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agentes envolvidos, que implica ainda uma dimensão utópica que não se reduz ao cálculo racional.

A militância comunista implicava riscos – como o de perseguição, de prisão e, em casos-limite, de morte –, além de exigir disciplina e obediência às ordens da direção do PCB na clandestinidade, sem contar o preconceito socialmente disseminado contra o comunismo. Mas também oferecia uma rede de proteção e solidariedade entre os camaradas no Brasil e no exterior, o sentimento de pertencer a uma comunidade que se imaginava na vanguarda da revolução mundial e podia dar apoio e organização a artistas e intelectuais em luta por prestígio e poder, distinção e consagração em seus campos de atuação, para si e para o Partido. É o que se conclui na análise da trajetória de artistas como Jorge Amado na literatura, Nelson Pereira dos Santos no cinema, Nora Ney e Jorge Goulart na canção, Dias Gomes no teatro, entre outros com presença nas artes plásticas, na arquitetura, na imprensa, na universidade e em diversos meios intelectualizados.

Os artistas e intelectuais do PCB faziam parte de uma empreitada mais ampla da época, de popularizar a arte e a cultura brasileira, registrando a vida do povo, aproximando-se do que se supunha fossem seus interesses, comprometendo-se com sua educação, buscando ao mesmo tempo valorizar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento – mesmo que por vezes incorressem em certa caricatura do popular e em práticas autoritárias e prepotentes. Ou seja, artistas e intelectuais comunistas foram agentes fundamentais na formulação do que se pode denominar de brasilidade revolucionária, ao mesmo tempo em que buscavam afirmar-se em seus respectivos campos de atuação profissional.

Apenas na década de 1960 – paradoxalmente junto com o desenvolvimento da indústria cultural e com o crescimento das possibilidades de institucionalização profissional nos meios intelectualizados – a brasilidade revolucionária chegaria ao apogeu como construção de artistas e intelectuais, consolidando-se como “estrutura de sentimento”, conceito de Raymond Williams que norteia o terceiro capítulo. Amadureceu o sentimento, presente por exemplo nas mais diversas produções artísticas, de pertencer a uma comunidade imaginada, para usar o termo de Benedict Anderson, sobretudo nos meios intelectuais e artísticos de esquerda comprometidos com projetos revolucionários. Compartilhavam-se idéias e sentimentos de que estava em curso a revolução brasileira, na qual artistas e intelectuais deveriam engajar-se.

Recuperavam-se as representações da mistura do branco, do negro e do índio na constituição da brasilidade, tão caras, por exemplo, ao pensamento conservador de Gilberto Freyre. Nos anos 1960, contudo, eram formuladas novas versões para essas representações, não mais no sentido de justificar a ordem social existente, mas de questioná-la: o Brasil não seria ainda o país da integração entre as raças, da harmonia e da felicidade do povo, pois isso não seria permitido pelo poder do latifúndio, do imperialismo e, no limite, do capital. Mas poderia vir a sê-lo como conseqüência da revolução brasileira.

Quiçá a formulação mais sintética que se pode dar para as expressões diferenciadas e socialmente difusas da arte, da cultura e do pensamento, agregadas no que aqui se denomina de brasilidade revolucionária, esteja nas seguintes palavras de Caetano Veloso: “se tivéssemos, talvez, chegado ao socialismo [nos anos 1960], não me interessa tanto saber o que o socialismo faria de nós, mas o que o Brasil faria do socialismo”. Ou seja, mais que uma aposta no socialismo, havia a crença arraigada de que a condição de ser brasileiro poderia contribuir significativamente para construir uma nova civilização, em que as pessoas poderiam desenvolver todas as suas potencialidades, contidas pelos limites da organização social, política, econômica e cultural existentes. Ao mesmo tempo, a construção da brasilidade revolucionária não deixava de ser uma variante de fenômeno que ocorreu em todo o mundo, num momento de afirmação política e cultural dos países subdesenvolvidos. O capítulo aborda também o declínio do sentimento revolucionário de brasilidade a partir da década de 1970, na medida em que se esgotavam as bases históricas em que se inseriu.

O quarto capítulo detém-se mais especificamente na análise de canções e filmes expressivos da brasilidade revolucionária como estrutura de sentimento nos anos 1960. O ponto de partida é a hipótese de Jean-Claude Bernardet, de que a primeira fase do Cinema Novo esteve marcada pela ideologia desenvolvimentista em voga na época, elaborada sobretudo pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Sem discordar inteiramente do autor, busca-se problematizar seus argumentos, por exemplo, pela análise do filme da época, Os fuzis, de Ruy Guerra. Argumentos como o de Bernardet são usualmente difundidos para tratar de todas as artes no período, o que também merece debate, tomando-se a música popular brasileira como referencial.

Muitas canções de meados dos anos 1960 evocavam os favelados, os migrantes para a cidade grande e outros desvalidos urbanos. Elas também remetiam aos homens do campo, aos pescadores, a certa imagem de um mundo pré-industrial que parecia se perder. Isso ficava explícito na obra de Edu Lobo, Geraldo Vandré e tantos mais. Mas, para trilhar um rumo menos evidente, são comentadas em especial algumas canções de Caetano Veloso e de Gilberto Gil daquela época. Ademais, composições de outros autores, como os irmãos Valle, são analisadas para mostrar a convivência ambígua entre mercado e revolução na música popular do período.

No capítulo final, aponta-se para o esgotamento da brasilidade revolucionária nos meios artísticos e intelectuais, pela análise da recepção no Brasil ao livro de Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar. Ela ajuda a compreender o entrelaçamento entre o campo intelectual e a indústria cultural, bem como as relações entre o mercado e o pensamento de esquerda nos anos 1980. O sucesso da obra pode ser explicado por uma conjunção de fatores, desde o investimento editorial inovador no mercado, até a predisposição para recebê-la nos meios intelectualizados, em plena transição da ditadura para a democracia. Ela foi acolhida no Brasil por pessoas interessadas em compreender melhor a modernidade e suas experiências de vida, em meio às mudanças locais e mundiais dos anos 1980, quer para dar um salto qualitativo em sua participação política e social, quer para abandonar o compromisso coletivo com transformações socializantes. Mudava o lugar do intelectual na sociedade brasileira, em meio a redefinições também no pensamento e na prática de esquerda.

O tema do livro de Berman – a modernidade que implicaria o autodesenvolvimento ilimitado dos indivíduos, sempre abertos a mudanças – viria a aparecer em diversas obras de arte brasileiras a partir dos anos 1970, no contexto do fim da vaga radical, quando artistas e intelectuais deparavam-se com o avanço da indústria cultural e da modernização autoritária, caso da canção Sampa, de Caetano Veloso, e de Metamorfose ambulante, de Raul Seixas. Ambas portadoras da mesma ambiguidade da obra de Berman, atestando os dilemas dos intelectuais com certo amadurecimento da institucionalização de suas ocupações.

Na certa, o tema da brasilidade revolucionária é polêmico e pode dar pano para manga, como se dizia antigamente, não só nos seus aspectos artísticos e intelectuais, mas também naqueles mais especificamente políticos. Vários aspectos são abordados aqui apenas de modo marginal e poderiam ser desenvolvidos, como as inter-relações, as continuidades e descontinuidades, entre cultura e política na tradição nacionalista dos tenentes nas décadas de 1920 e 1930, do trabalhismo e do brizolismo dos anos 1940 aos 1960, dos diversos períodos em que o PCB e outros partidos formularam seus projetos de revolução. E ainda as possíveis ligações da brasilidade revolucionária com o modernismo, suas intersecções com a brasilidade conservadora, com o varguismo, sua presença diferenciada nas obras de artistas e intelectuais que, afinal, foram seus criadores. Apesar dos limites, contudo, o livro busca dar uma contribuição à análise do tema, no que se refere à trajetória de artistas e intelectuais que colaboraram para estabelecer uma certa intelligentsia brasileira de esquerda ao longo do século XX.

Versões iniciais dos capítulos haviam sido publicadas anteriormente em revistas e coletâneas, indicadas em notas de pé de página. Não se trata, contudo, de reunião aleatória de escritos. E sim de articulação entre aqueles cuja unidade é costurada pelo fio vermelho (e verde-amarelo) da constituição de certa brasilidade revolucionária nos meios artísticos e intelectuais. Todo o trabalho foi revisado, reescrito e reorganizado em um todo original. As notas de rodapé, que são várias, foram elaboradas para os leitores mais interessados nas fontes. Elas são provavelmente dispensáveis para os que preferirem uma leitura mais fluente.

Neste final da primeira década do século XXI – quando a brasilidade tem sido retomada em versões de consumo fácil, para vender mercadorias do Brasil no mundo todo, bem como para explorar a imagem do próprio país e de seus habitantes como mercadoria –, espera-se que seja ao menos provocativo propor o tema da brasilidade revolucionária.