Entender Nietzsche
Sobretudo na Alemanha, as controvérsias em torno da filosofia de Nietzsche continuam sendo determinadas por um posicionamento infrutífero. De um lado, há uma “hermenêutica da inocência”, inclusive com sinais pós-modernos, que quer entender mesmo as tomadas de posições mais brutais do filósofo – tais como o apoio à escravidão até a eliminação dos fracos -, como sendo apenas uma profunda metáfora; tal como faz, por exemplo, o pósmoderno italiano Gianni Vattimo, que apresenta a sua celebração da guerra como sendo a “negação da unidade do ser”. Por outro lado, continua predominando em muitos da esquerda o paradigma demarcado por Georg Lukács que coloca Nitzsche junto com o “irracionalismo”, tratando-o como precursor espiritual direto do Estado nazista. A abrangente “biografia intelectual” de Domenico Losurdo supera esse bloqueio.
Olhar para o Fin de siècle
A afirmação sobre uma continuidade intelectual e histórica è uma “deformação da história”, argumenta Losurdo (2004, p.657). Ela não apenas passaria por cima da distância histórica entre o período de Nietzsche e a formação dos movimentos fascistas depois da Primeira Guerra Mundial, como também não levaria em conta o divisor de épocas representado pela Revolução de Outubro e as diferenças entre o “radicalismo aristocrático” de Nietzsche e o populismo fascista da direita. Apenas quando se reconstrói o contexto histórico do final do século XIX, se poderia colocar a questão envolvendo as continuidades e descontinuidades ideológicas com o fascismo alemão.
Desse modo, Losurdo supera uma dicotomia que obrigam os adversários na interpretação de Nietzsche ou a atribuir à sua filosofia a “responsabilidade” espiritual pelo fascismo e o holocausto, que sempre tem o efeito de retirar os componentes não-nietzschianos do fascismo; ou então de “absolvê-lo” dessa responsabiliodade, como buscam fazer os hermeneutas da inocência desde Walter A. Kaufmann passando por Henning Ottmann até Gilles Deleuze e Michel Foucault. Sómente quando se quebra o encanto de tal contraposição, torna-se visível o entrelaçamento ideológico que permite ver Nietzsche como parte de um movimento de toda Europa de resistência à Revolução Francesa e por sua superação, bem como do ciclo revolucionário por ela iniciado.
A “análise comparativa dos processos ideológicos” empreendida por Losurdo (p.661), elucida um tema como o de sua justificatição da escravidão. Em vez de minimizá-la como se fosse alegorias inocentes, ou de interpretá-la como a antecipação da escravização nazista do Leste Europeu, ele a analisa no contexto das confrontações pelo fim da escravidão nos Estados Unidos.
Quando o jovem Nietzsche em 1864, no seu trabalho sobre o escritor da Antiguidade Theogonis von Megara, se entusiasma por uma aristocracia escravocrata dório-ariana, a guerra civil americana está ainda em curso e a escravidão só è proibida oficialmente em 1865. Quando invoca o significado cultural do escravismo antigo, ele merece o título geral de patrocinador da escravidão. E o fato de que o maduro Nietzsche trate o cristianismo, a Revolução Francesa e o Socialismo como três etapas de uma “rebelião dos escravos” de caráter moral, pode ser compreendido pela elaboração de uma constelação que predominava em grande medida na época : o movimento pela proibição da escravidão vem do programa dos jacobinos na França do século XIX; ele foi impulsionado, entre outros, pelos primeiros socialistas; já na Gra-Bretanha e nos Estados Unidos, são as igrejas que desempenham um papel dirigente (pp.405-ss.).
As fases do pensamento de Nietzsche
Em geral, Losurdo segue a tradicional divisão do pensamento nietzschiano em três fases: uma fase inicial sob a influência de Arthur Schopenhauer e Richard Wagner, em cujo centro se encontra “O nascimento da Tragédia” (1872); uma fase intermediária, “esclarecida”, na qual Nietzsche elaborou principalmente a obra “Humano, demasiadamente humano” (1876); e uma fase tardia, na qual se incluem, entre outros trabalhos,“Zarathustra” (1883), “A genealogia da moral” (1887) e o “Anti-Cristo” (1888-1889). Entretanto, ele modifica essa classificação na medida em que subdivide a primeira fase entre um período wagneriano e “popular”, e um outro de distanciamento desiludido: enquanto no período da instauração do império alemão, Nietzsche se apresenta como desejando a hegemonia do “espírito alemão”, que ele pretende renovar com as fontes da Grécia pré-socrática; a partir de 1874, ele desempenha o papel de “rebelde solitário”, que rompeu com a “comunidade” (“Volksgemeinschaft” ), preparando assim a passagem para a sua fase “esclarecida” (pp.228-ss.).
Um ponto forte da investigação è a diferenciação estabelecida entre as diversas fases do pensamento nietzschiano. De fato, na fase “esclarecida” encontram-se posicionamentos da fase anterior quase que inteiramente reformulados: Nietzsche rompe com o germanismo e volta-se assim também contra a reforma luterana, que ele substitui por uma orientação voltada para a cultura renascentista (pp.239-ss.); contra o nacionalismo ele se coloca a favor de um cosmopolitismo europeu, onde a “Europa” enquanto conceito cultural deve abranger também a “pátria filha” ( “Tochterland” 3 ) América, mas não a Rússia (pp.334-ss.); no interior da Europa, a França novamente desempenha o papel principal, cuja natureza deve estar mais “bem próxima” dos gregos do que a natureza dos alemães (p.248). Entre outras coisas, o novo é a avaliação positiva dos judeus, a quem Nietzsche atribui um papel de vanguarda na criação da Europa. Eles defenderiam a Europa frente à Asia, e assim contribuiam – contra o cristianismo “orientalizante” –, para “ocidentalizar sempre o Ocidente”; ou seja, para tornar “a tarefa e a história da Europa uma continuação da grega” (KSA 2, pp.310-s.).
Naturalmente, nem tudo aqui retrocedeu. A virada de Nietzsche para o Renascimento se deu com a intenção de libertá-lo das suas ligações históricas com a Revolução Francesa. Nisso, ele se alia com o “sentimento anti-revolucionário” de Voltaire contra Jean-Jacques Rousseau, cujo mito do homem bom fundamentava o “fanatismo moral” dos revolucionários (Losurdo 2004, p.291). Através de um cuidadoso estudo de texto e contexto, Losurdo mostra que o “esclarecimento moral” do Nietzsche da fase intermediária volta-se principalmente contra duas posições complementares: em primeiro lugar, contra as exigências de justiça das classes subalternas; em segundo lugar, contra a “religião da compaixão” como resposta correspondente das camadas superiores (ver pp.285-ss.).
A crítica do discurso popular da justiça baseia-se não apenas em Rousseau e nos jacobinos, como também no socialismo, que “[mete] a palavra ´justiça´ como um prego na cabeça das massas semi-alfabetizadas” (KSA 2, p.307-s.). Quando Nietzsche submete as representações do cotidiano a uma “dissecação psicológica”, isso è constantemente louvado pelos seus admiradores como mostra de refinada crítica metafísica e moral. Pois, na maioria das vezes, isso leva até a posição banal do egoismo privado burguês: o que aparece espontaneamente para os não esclarecidos como sendo justiça, virtude, altruismo e compaixão, é apenas a manifestação de amor-próprio, de egoísmo, de vaidade e do “desejo de possuir”.
Diferentemente de outros pesquisadores de Nietzsche, Losurdo situa a passagem para a última fase não apenas no tempo de preparação do “Zarathustra” (1883), mas já durante a redação da “Gaia Ciência”, isto è, antes de 1882. A esse recorte histórico antecipado, se poderia contrapor o fato de que o rompimento com Lou Andreas-Salomé e Paul Rée, pleno de consequências biográficas, bem como o abandono de Spinoza relacionado com isso, só ocorreram por volta do final de 1882. Para fundamentar a sua posição, Losurdo (p. 346-s.) menciona o discurso de Wilhelm I. no Reichstag 4 de 17 de Novembro de 1881, em que ele anuncia, em nome da “dignidade” do trabalho e do trabalhador, leis sociais drásticas. Frente às concessões sócio-políticas do governo Bismarck, Nietzsche reagiria então com o projeto reacionário-aristocrático para “cultivar” uma nova elite “reforçada militarmente” na época industrial ( pp.350-s., 367-s., 375-s. ), caracterizada pelas formas nobres de uma “raça superior”. A novidade seria a inclinação para uma solução cesarista que se livraria de suas presas parlamentares (pp.384-ss.).
“Dirigente partidário” da elite.
Aos poucos, Losurdo vê Nietzsche falar como um “dirigente partidário” que, a exemplo dos jesuitas na contra-reforma, quer fundar um “partido de luta” (p.377). Proclama-se um novo “partido da vida”, “forte o suficiente para praticar a grande política”, que colocaria em suas mãos o “cultivo superior” da vida”, bem como a “desapiedada eliminação de tudo o que fosse degenerado e parasitário”. Ele se coloca frontalmente não apenas contra o socialismo e a democracia, como também rompe com o liberalismo e o conservadorismo na medida em que professa um anti-conformismo decidido e a desacralização das tradições religiosas e políticas vigentes.
Nisso, Nietzsche deve se demarcar do “espírito livre” por ele proclamado e de qualquer “liberalidade”, que na Alemanha era reinvindicada pela esquerda. De fato, na crítica às ideologias dominantes ocorrem pontos de contato entre a “direita” e a “esquerda”, o que induziu, por exemplo, Jürgen Habermas (1985, p.121), a condenar tanto Nietzsche como também Theodor Adorno e Max Horkheimer enquanto radicais “críticos da ideologia” que colocavam em questão as “conquistas da racionalização ocidental”. Frente a tais associações superficiais, Losurdo logra novamente um trabalho indispensável de esclarecimento ao confrontar a crítica à ideologia feita por Nietzsche com a do jovem Marx: Nietzsche esmiuça as “flores imaginárias da corrente” não para que o homem se livre dela, mas para que ele a “carregue a corrente sem fantasia e sem consolo” (MEW 1, p.379; citada em Losurdo, pp.455-s., e p.460). Dito de outra maneira: Nietzsche exerce com sagacidade própria uma radical “crítica da ideologia afirmativa à dominação” (Haug 1993, p.18).
Losurdo lembra ainda da diferença feita por Antonio Gramsci entre um sarcasmo progressivo, “criador”, que procura conferir uma nova forma ao “núcleo vivo” da ideologia criticada, e um sarcasmo “de direita” que “sempre è ‘negativo’ , cético e destrutivo, não apenas em relação à ‘forma’ contingente, como também a qualquer conteúdo ‘humano’ de todo sentimento e das representações envolvendo crença” (citação in Losurdo 2004, p.536). Quando Nietzsche representa o “aristocratismo radical” com o gesto de um “anarquismo” radical, a questão que estaria em jogo è a de, para poder se destruir o movimento revolucionário, lhe arrancar a bandeira da liberdade e da “falta de escrúpulo do espírito” (pp.373-s.).
Opinião de classe …
A recusa em tratar Nietzsche como precursor direto de Hitler não implica, de modo algum, em minimizar o significado de sua filosofia para a ascensão do fascismo. Losurdo revê diferentes estratégias de isenção e mostra as suas incongruências. A lenda mais conhecida é a da irmã “má” de Nietzsche, que, na biografia e na edição de ”A vontade de poder” (1901), teria retocado a filosofia de Nietzsche no sentido do fascismo alemão. Losurdo examina a questão e mostra que Elisabeth de modo algum deixa de mencionar o rompimento de Nietzsche com o antisemitismo de Wagner, como, por exemplo, ainda è afirmado por Ottmann (1999, p. 249-s.). Ao contrário, a sua manipulação consiste em retirar da imagem de Nietzsche as “inconvenientes” passagens antisemitas e brutais, apresentando-o como um bom europeu (Losurdo 2004, pp.767-ss.).
É claro que o seu procedimento não è nada parecido com o da acusadora interpetração liberal de Nietzsche. A tese de que Nietzsche como “homem da cultura” apolítico que não teria nada a ver com o fascismo alemão, fracassa já pelo fato de que mesmo Mussolini e Hitler cultivavam um “pathos antipolítico” e pretendiam dirigir as massas como se fossem “artistas”. Para a “estética da política” ( Walter Benjamin ), o gênio cultural de Nietzsche è uma rica fonte de inspiração (pp. 795-ss.). Nas “Conversas de mesa” de Hitler se encontram reunidos quase todos os temas relevantes de Nietzsche, e também uma elogiosa menção ao Nietzsche “esclarecido” (p. 882). Chama a atenção ainda a naturalidade com que são retomadas e aplicadas pelos círculos dirigentes do regime nazista as tomadas de posição de Nietzsche contra a revolução, o “homem bom”, contra Paulo como iniciador de uma rebelião “comunista” dos escravos, etc (pp.875, 880-ss.).
Porém, o “esquema continuista” não é mais convincente que a hermenêutica da inocência, afirma Losurdo (p.861), não apenas por conta do grave recorte entre a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro, mas em razão de uma diferença social no interior da direita: Nietzsche faria parte da reação aristocrática que penetrou nas altas esferas das instituições políticas entre 1890 e 1914; o choque com os movimentos socialista e democrático produziria uma “falta de compaixão da elite”, a quem Nietzsche oferecia expressão ideológica com a sua polêmica contra a compaixão e a docilidade frente aos subalternos ( p.785 ). Concorrendo com isso, formava-se um “populismo autoritário” que queria integrar as classes em uma “comunidade” orgânica (Volksgemeinschaft), que se define por oposição a outros povos e raças (p.834).
… pela discriminação racial ***
O Nietzsche da fase intermediária, bem como o da fase tardia, è contrário a esse projeto porque que a seus olhos ele leva ao confronto mortal entre as classes dominantes da Europa e à formação de blocos “patrióticos”, o que apaga a diferença posição entre senhores e escravos (p.835).
Essa distinção è relevante também para o bloqueado debate em torno do anti- ou antisemitismo de Nietzsche, que se esgota amplamente no balanço de citações contra e a favor dos judeus. Losurdo diferencia três figuras antisemitas, ou seja : o trabalhador emigrante do Leste; o intelectual “subversivo” judeu – que è responsabilizado por grande parte da intelligenzjia européia pelo ciclo revolucionário; e o “capital financeiro judaíco” (pp. 603-ss.).
Deve-se observar que, após o rompimento com Paul Rée, Nietzsche intensifica as suas manifestações de aversão aos judeus, seja contra os judeus proletários do Leste, seja contra os intelectuais “subversivos” ( prótipo Paul ). O posicionamento corresponde com o das publicações antisemitas, cujos redatores e adpetos passam a ver em Nietzsche um aliado após a publicação de “Zarathustra” ( pp. 605, 608-ss. ).
Mas ao mesmo tempo, Nietzsche pretende cooptar a terceira figura antisemita, a dos círculos financeiros e das camadas superiores bem formadas, para constituir uma nova “casta dirigente européia”, a ser ´cultivada`, e precisamente de forma eugênica para que seja irreversível ( por exemplo, parágrafo 251 em “Para além do bem e do mal” ). Isso deve possibilitar uma ofensiva de toda Europa contra a “rebelião dos escravos”, entre os quais Nietzsche inclue em igual medida os inimigos e antisemitas populistas dos dois primeiros tipos de judeus, como Eugen Dühring – eles representariam o protesto da “gentelha”, que August Bebel caracterizou como o “socialismo dos tontos” ( pp.613-ss; pp.617-ss. ).
Analiticamente, Losurdo distingue uma “discriminação racial horizontal” e outra “transversal”. Enquanto a primeira se apoia na diferença étnica entre povos e nações, a segunda se refere diretamente ao antagonismo social das sociedades de classe antigas e modernas. Nietzsche empreende uma “discriminação racial das classes subalternas, que corresponde a uma teoria da guerra civil internacional ( pp.823-ss. ). De fato, não apenas no “Anti-cristo”, nota-se que “judeu” ( no sentido do “instinto judeu” ) caracteriza imediatamente uma posição social, servindo para classificar uma classe subalterna internacional. Um tal amalgama “transversal” entre rascismo e questão de classe devia entrar em oposição com as principais correntes do antisemitismo já nos finais do século XIX. A conquista da hegemonia pelo fascismo e a mobilização da “comunidade” ( “Volksgemeinschaft” ) para a guerra exigia em primeira linha um rascismo “horizontal” : Por que os soldados deveriam arriscar a sua vida se eles são chamados de “chandala” 5 , de inferiores, de “subhumanos” ?
Naturalmente, o material apresentado por Losurdo mostra que a contraposição das duas variantes do rascismo è uma construção de tipo ideal. Assim por exemplo, uma “discriminação racial” pode se voltar primeiro “transversalmente” contra os colonizados e o subproletariado local, para depois ser transmitida para os povos vizinhos. Ou então ela avança da figura do judeu “subversivo” para a da “raça judia”. Na realidade da luta ideológica, ambos os aspectos se entrecruzam e se atravessam. Assim analisou o Projeto da Teoria da Ideologia ( 1980, pp.61-ss.) o caso dos discursos de Hitler, ou seja, vendo como o discurso passa do nível semântico de uma revolução socialista ameaçadora para o nível da “conquista do mundo pelos judeus”. Provavelmente, essa oscilação entre articulação “transversal” e “horizontal” é uma condição básica direta para a eficácia ideológica dos apelos rascistas.
Un filosofo totus politicus ?
A obra de Losurdo, de mais de mil páginas, é não apenas a mais abrangente, como também a mais minuciosa investigação sobre as ligações entre a filosifa e a política em Nietzsche. Caso se dê uma olhada no livro de Ottmann – “Philosophie und Politik bei Nietzsche” -, onde desde o início se assegura que, consciente e solicitamente, partido, décadence, guerra e eliminação, não poderiam “ser considerados em sentido literal” porque o filósofo estaria tratando de “justiça” ( 1999, pp.440-pp.), aprende-se a valorizar a visão precisa de Losurdo ao desenvolver pacientemente os nexos entre os textos e os contextos, analisando o material do ponto-de-vista da teoria social em vez de se perder na corrente das avaliações ligeiras.
Claro que também aqui a tomada de posição leva, às vezes, a uma seletiva colocação do ponto essencial. Com razão, Losurdo se volta contra uma pesquisa que para salvar Nietzsche enquanto “filósofo” o transforma em um “idiota” despolitizado, como ele próprio fez com Jesus. Para preservar Nietzsche desse salvamento de honra, Losurdo, por vezes, carrega na direção contrária. Cada fase do desenvolvimento do pensamento nietzschiano parece ser muito coerente em si para se poder analisar a constelação política de forma clarividente e à altura da época. Mas já naquele período, uma estratégia de Apartheid social segundo o antigo modelo se mostrava, exatamente do ponto-de-vista político, como algo que não estava à altura de seu tempo, mas anacrônico.
Logo depois, Max Weber, junto com outros “reformadores sociais” liberais, defendem um compromisso de classe com a “aristocracia operária” tal como ocorre mais tarde no fordismo. Essa decisão de método em analisar Nietzsche enquanto “filosofo totus politicus” e a classificação das fases por um recorte político, seguramente abre importantes possibilidades explicativas mas também pode levar a uma sobrepolitização, tornando invisíveis os determinantes filosóficos e psicológicos. Por exemplo, elas desconsideram tanto a influência da crítica da moral de Spinoza sobre o Nietzsche “intermediário”, como também o significado de seu incisivo distanciamento do “tuberculoso” e “rancoroso” Spinoza para o conceito de poder senhorial da fase tardia, que Nietzsche sempre coloca em campo contra o princípio da auto-preservação de Spinoza. Que Losurdo ( por exemplo, pp.281-ss., pp.981-ss. ) se delimite de um reducionismo psicológico faz pleno sentido, mas que ele desconsidere completamente os recortes biográficos – do amor fracassado por Lou Andreas-Salomé até o desencadeamento das doenças -, prejudica a própria análise política.
Desaparece a enorme tensão entre o sofrimento existencial de Nietzsche e o ódio destruidor frente a aflição e aos aflitos, e isso dificulta o entendimento sobre porque Nietzsche tornou-se atrativo para as elites reacionárias da Europa, como também para muitos dos “menos favorecidos” – desprezados por ele. Adorno deixa entrever uma parte dessa tensão quando descreve o adorador do destino como um prisioneiro que “não è capaz de nada além de amar a cela, na qual ele está preso”.Uma crítica marxista de Nietzsche não deve se afastar de sua psicologia, mas pode incluí-la em uma análise das estruturas ideológicas alienadoras.
Entretanto, Losurdo tem inteira razão quando afirma que sem considerar a posição política de Nietzsche no contexto ideológico do século XIX, tampouco se pode entender o excedente teórico de sua filosofia ( pp.935-ss.). A experiência de um “nietzschianismo de esquerda” pós-moderno – que volatiza as mais claras tomadas de posição do “mestre”, tomando-as como alegorias de alta profundidade -, deveria, entrementes, ter demonstrado isso.
Literatura
Habermas, Jürgen. (1985). Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main.
Haug, Wolfgang Fritz. (1993). Elemente einer Theorie des Ideologischen. Hamburg/Berlin.
Losurdo, Domenico. (2004). Nietzsche, il ribelle aristocratico. Biografia intelletuale e bilancio critico. Torino, 2004.
Nietzsche, Friedrich. (1980). Kritische Studienausgabe (KSA), hg. Von Giorgio Colli und Mazino Montinari. München, 1999.
Ottmann, Henning. (1987). Philosophie und Politik bei Nietzsche. 2. Auflage, Belin/New York, 1999.
Projekt Ideologietheorie (1980). Faschismus und Ideologie. Bände 1 und 2, Hamburg/Berlin.
Rehmann, Jan. (2004). Postmoderner Links-Nietzscheanismus. Deleuze & Foucault. Eine Deskonstruktion. Hamburg.
Idem. “Nietzsches Umarbeitung des kulturprotestantischen Antijudaismus – das Beispiel Wellhausen”, in: Das Argument 255, pp.278-291.
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Professor do Instituto de Filosofia da Universidade Livre de Berlim