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    Comunicação

    Dois Lênin?

    Para ele, nos primeiros anos do século XX, Lênin ainda "aceitava algumas premissas ideológicas fundamentais do marxismo 'pré-dialético' de Plekhanov e seu corolário estratégico, o caráter burguês da revolução russa". Mas, a leitura crítico-materialista de Hegel, realizada a partir de 1914, libertou-o "da construção estreita do marxismo pseudo-ortodoxo da II Internacional e dos limites teórico […]

    Para ele, nos primeiros anos do século XX, Lênin ainda "aceitava algumas
    premissas ideológicas fundamentais do marxismo 'pré-dialético' de
    Plekhanov e seu corolário estratégico, o caráter burguês da revolução
    russa". Mas, a leitura crítico-materialista de Hegel, realizada a partir
    de 1914, libertou-o "da construção estreita do marxismo pseudo-ortodoxo
    da II Internacional e dos limites teórico que esse marxismo impunha ao
    seu pensamento. O estudo da Lógica hegeliana foi o instrumento pelo qual
    Lênin desimpediu o caminho teórico que o conduziu à estação finlandesa
    de Petrogrado". Continua: "Não há dúvida que as 'teses de abril'
    representaram um 'corte' teórico-político com relação à tradição do
    bolchevismo do ante-guerra (…) é inegável que os Cadernos (filosóficos
    – 1914) constituíram uma ruptura filosófica com relação ao 'primeiro
    leninismo'".

    Dentro desse esquadro teórico, a obra Duas táticas da social democracia
    na revolução democrática, escrita no início de 1905, estaria no rol das
    obras não-dialéticas de Lênin. Este seria um texto ainda influenciado
    pelo esquematismo – gradualista e etapista – predominante na 2ª
    Internacional. Escreveu Lowy: "Uma análise rigorosa do principal texto
    político de Lênin nesse período, as Duas táticas da social democracia na
    revolução democrática mostra (…) a tensão no pensamento de Lênin entre
    seu realismo revolucionário geral e os limites que lhe impõe a
    construção estreita do marxismo supostamente 'ortodoxo'". Segue o
    raciocínio: "a fórmula que era a 'quinta essência' do bolchevismo de
    antes da guerra, do 'velho bolchevismo', reflete em seu âmago todas as
    ambigüidades do primeiro leninismo: 'A ditadura revolucionária do
    proletariado e do campesinato' (…) O termo aparentemente paradoxal de
    'ditadura democrática' é a prova da ortodoxia, a presença visível dos
    limites impostos pelo marxismo de outrora". Portanto, "Duas Táticas"
    teria pouca utilidade na compreensão do pensamento político (e
    dialético) do Lênin maduro, seria inútil para entender estratégia
    leninista no processo revolucionário russo a partir de abril de 1917 e
    não serviria para pensar as futuras revoluções populares e socialistas
    que ocorreriam no século XX.

    O poder de argumentação de Lowy e, também, o pouco conhecimento do
    conjunto da obra do próprio Lênin, levaram que a tese da existência de
    uma cisão – uma ruptura epistemológica – na construção teórica e no
    esquema tático-estratégico de Lênin fosse amplamente aceita por círculos
    importantes da esquerda revolucionária mundial. O trotskismo, vertente a
    qual Lowy pertence, foi a principal beneficiária dessa tese. Afinal, a
    conclusão lógica era que Lênin acabou, pouco a pouco, se aproximando ou
    aderindo às formulações teórico-políticas de Trotsky, desenvolvidas já
    em 1905.

    Esse breve artigo procurará demonstrar que esta opinião não corresponde
    à realidade. Lênin foi o pensador revolucionário mais sagaz da primeira
    década do século XX e o socialista que melhor conseguiu aplicar a
    dialética-materialista no campo da ciência da ação política
    revolucionária. A estratégia desenvolvida por Lênin durante a revolução
    de 1905 é a melhor prova disso e Duas táticas da social democracia na
    revolução democrática, que sintetiza esta estratégia, se constitui num
    verdadeiro tratado da ciência política revolucionária do século XX, que
    merece um lugar de honra ao lado das Teses de Abril e de Esquerdismo,
    doença infantil do comunismo. Por fim, pretendo demonstrar que Lênin
    jamais renegou esta obra e continuou sustentando aquela formulação
    estratégica até o fim da sua vida. Defendeu a justeza da caracterização
    da revolução russa até fevereiro de 1917 como burguesa e a necessidade
    das duas etapas naquela revolução – entendo-as como um processo único,
    ininterrupto.

    A Polêmica entre mencheviques e bolcheviques

    O pressuposto básico da elaboração estratégica leninista – era o mesmo
    de todo o movimento socialista internacional – a revolução russa em
    curso era uma revolução que teria, pelas tarefas a serem realizadas, um
    caráter democrático-burguês. Mas, então, qual foi a novidade introduzida
    pelo leninismo no processo de revolução russa entre 1903 e 1905? A
    primeira delas é a constatação de que deveria se procurar construir a
    hegemonia proletária ainda na primeira etapa da revolução e que somente
    esta classe poderia conduzí-la até seu final, criando assim as melhores
    condições para a passagem para uma segunda etapa, que seria socialista.

    O livro, escrito entre junho e julho de 1905, procurou expor de maneira
    sistemática as divergências táticas e estratégicas existentes entre
    mencheviques e bocheviques que, segundo Lênin, "conduziram a uma
    discrepância radical de apreciação de toda nossa revolução burguesa
    desde o ponto de vista das tarefas do proletariado". Na plataforma
    revolucionária dos bolcheviques expressa naquele opúsculo, constavam: 1.
    liberdade política mais completa possível; 2. proclamação da republica
    democrática; 3. governo provisório revolucionário; 4. convocação da
    assembléia nacional constituinte – baseada no sufrágio universal, igual,
    direto e secreto. A condição prévia para realização dessa plataforma
    seria a derrubada da autocracia czarista. Os mencheviques, por sua vez,
    negavam a possibilidade – e a oportunidade – dos operários hegemonizarem
    uma revolução democrático-burguesa apoiando-se nas massas camponesas.

    Lênin, não defendia apenas a necessidade de se construir uma hegemonia
    proletária na revolução democrática como também a constituição de um
    poder revolucionário provisório no qual a social-democracia deveria
    participar ativamente. Esta formulação, tipicamente leninista, era uma
    completa novidade para época e soava quase como uma idolatria para os
    doutrinários socialistas – quer de direita quer de esquerda.

    Para estes seria uma contradição em termos falar numa revolução
    democrática burguesa hegemonizada pelo proletariado e, pior, pensar na
    constituição de um governo provisório (ainda não-socialista) com a
    participação de social-democratas. Assim Lênin respondeu aos seus
    críticos: "Em princípio a participação da social-democracia no governo
    provisório revolucionário (na época da revolução democrática e da luta
    pela república) é admissível. O Terceiro Congresso do POSDR rejeitou
    terminantemente a idéia segundo a qual a participação da
    social-democracia no governo provisório revolucionário seria uma
    variedade do millerandismo e, portanto, inadmissível do ponto de vista
    dos princípios, pois significaria uma possível consagração da ordem
    burguesa, etc etc". A participação socialista num governo não-socialista
    teria dois objetivos: "1º combate implacavelmente às tentativas
    contra-revolucionárias; 2º defesa dos interesses e da independência da
    classe operária".

    Lênin foi um dos primeiros a desenvolver a dialética da ação de "cima
    para baixo", através da participação no poder provisório, e de "baixo
    para cima", através da pressão das massas populares sobre esse mesmo
    governo. Recusou terminantemente o tratamento unilateral dessa questão
    crucial para o processo revolucionário. "A prolongada época de reação,
    afirmou ele, nos deixou bastante familiarizado com a idéia apenas da
    ação 'de baixo para cima', nos deixou demasiadamente acostumados a
    considerar a luta apenas do ponto de vista defensivo (…) Em um período
    como o que a Rússia está atravessando, não é possível tolerar que
    fiquemos limitados aos velhos lugares comuns. É preciso difundir a idéia
    da ação 'de cima para baixo'". Chegou mesmo, contra os mencheviques e
    anarquistas, pregar a utilização, em benefício da revolução, "das armas
    e dos métodos do 'regime estatal burguês'". Ele, no entanto, tinha plena
    consciência que a pressão "de cima para baixo" era uma possibilidade que
    não poderia ser definida de antemão. Pelo contrário, a pressão "de baixo
    para cima" deveria ser permanente – uma necessidade de todo e qualquer
    processo revolucionário.

    A democracia burguesa e proletariado revolucionário

    Os bolcheviques advogavam a necessidade de conquistar uma república
    democracia – ainda que burguesa – e destruir a estrutura autocrática do
    Estado militar-feudal czarista. Por isso, as alianças políticas poderiam
    – e deveriam – ser as mais amplas possíveis. Afirmou Lênin: "gostam de
    nos acusar de ignorância do perigo da diluição do proletariado na
    democracia burguesa (…) Contestamos nossos contendores: a social
    democracia, que atua no terreno da sociedade burguesa, não pode
    participar na política sem marchar, em casos isolados, ao lado de
    democracia burguesa (…) Nossas palavras de ordens táticas (…)
    coincidem com as da burguesia democrático-revolucionária e republicana".

    A democracia burguesa, contraditoriamente, seria favorável a dominação
    de classe da burguesia e, ao mesmo tempo, seria a forma de governo (ou
    regime) que criaria as melhores condições para organização,
    conscientização e luta do proletariado. "Quem quiser ir ao socialismo
    por outro caminho que não seja o da democracia política, chegará
    inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias", afirmou ele.

    Ele critica, também, a falsa idéia dos esquerdistas russos que negavam
    que a revolução burguesa e o desenvolvimento do capitalismo pudessem
    trazer alguma vantagem para os trabalhadores. Escreveu: "Quanto mais
    completa e decisiva, quanto mais conseqüente for a revolução burguesa,
    tanto mais garantida estará a luta do proletariado contra a burguesia,
    pelo socialismo" e, concluiu, "em certo sentido, a revolução burguesa é
    mais vantajosa para o proletariado que para a burguesia". Por isso, o
    marxismo "não ensina o proletariado a ficar à margem da revolução
    burguesa, a não participar dela, entregar a sua direção à burguesia
    (…) O triunfo completo da atual revolução, afirmou, será o fim da
    revolução democrática e o começo da luta decisiva pela revolução
    socialista (…) então substituiremos a palavra-de-ordem da ditadura
    democrática pela da ditadura socialista do proletariado".

    Mas, será que o Lênin pós-1914 passaria a negar o seu esquema tático e
    estratégico anterior? Quando, afinal, ele passou a defender uma mudança
    substancial na política bolchevique e quais as razões dessa alteração,
    ocorrida em abril de 1917?

    No seu conhecido informe sobre a revolução de 1905, escrito em janeiro
    de 1917, ele ainda afirmaria: "a peculiaridade da revolução russa é que,
    por seu conteúdo social, foi uma revolução 'democrático-burguesa',
    enquanto por seus métodos, foi uma revolução 'proletária'. Foi
    democrático-burguesa porque o objetivo imediato a que se propôs, e que
    se poderia alcançar diretamente com suas próprias forças, era uma
    república democrática, a jornada de trabalho de oito horas e o confisco
    dos imensos latifúndios da nobreza, todas medidas que a revolução
    burguesa da França realizou quase plenamente em 1792 e 1793". Esse foi
    o último texto de Lênin escrito antes da eclosão da revolução russa –
    mas, após ter estudado Hegel. Nele ainda está presente o que Lowy chamou
    de "corolário estratégico do marxismo pré-dialético: o caráter burguês
    da revolução".

    Talvez, o impacto da revolução de fevereiro pudesse ter catalisado –
    fundido a concepção dialética recém assimilada e a política leninista –
    e feito o "velho bolchevique" superar-se ao aderir ao trotskismo (ainda
    que mitigado). Ou seja, teriam o feito negar o caráter burguês da
    revolução russa desde o seu início. Creio, também, que não foi isso que
    aconteceu. Façamos uma leitura, ainda que rápida, dos textos posteriores
    a fevereiro de 1917.

    Nas Teses de Abril que, segundo Lowy, representaria "um 'corte'
    teórico-político em relação à tradição do bolchevismo do ante-guerra",
    ainda podemos ler: "Nossa tarefa imediata não é a 'introdução' do
    socialismo, mas apenas passar imediatamente ao controle da produção
    social e da distribuição dos produtos aos Sovietes de deputados
    operário". Decerto, essa não é uma formulação presente em "Duas
    táticas".

    Afinal, o que acarretou essa mudança na estratégia bolchevique no
    pós-fevereiro de 1917? Ora, foi a própria realização da revolução
    democrático-burguesa. Um fato praticamente desconsiderado por Lowy. "Na
    Rússia, escreveu Lênin, o poder de Estado passou para as mãos de uma
    nova classe, a saber, a burguesia e os latifundiários que se tornaram
    burgueses. Desta forma a revolução democrático-burguesa está consumada
    na Rússia". Eis aqui o segredo revelado! A revolução
    democrático-burguesa já está consumada na Rússia.

    Contudo, a revolução estava se realizando não da maneira desejada pelos
    bolcheviques – nem da maneira pretendida pela burguesia
    liberal-monárquica. As particularidades do processo revolucionário russo
    – a correlação de forças real – criaram também uma situação política e
    uma estrutura de poder original. "Essa circunstância excepcionalmente
    original, levou ao entrelaçamento de duas ditaduras: a ditadura burguesa
    e a ditadura do proletariado e do campesinato". O desenvolvimento
    revolucionário "já ultrapassou os limites da revolução
    democrático-burguesa comum, porém ainda não atingiu uma ditadura 'pura'
    do proletariado e do campesinato". Em outra passagem afirmou: "O
    'Soviete de Deputados Operários e Soldados' – aí tendes a 'ditadura
    revolucionária e democrática do proletariado e campesinato' já consumada
    na realidade". Voltamos a velha fórmula, considerada a "quinta essência
    do bolchevismo de antes da guerra".

    É claro que ele não negava a justeza – e a operacionalidade – dessa
    fórmula e sim que ela havia se realizado de maneira imprevista e,
    portanto, já estava sendo superada pela vida. Em uma de suas Cartas de
    Longe, escritas também em abril de 1917, constatou: "as palavras de
    ordem e idéias bolcheviques, no seu todo, tem sido confirmadas pela
    História; mas, concretamente, as coisas resultaram de forma diferente;
    são mais originais e mais peculiares. Mais variadas do que se poderia
    ter esperado". Por isso mesmo, a fórmula bolchevique estaria sendo
    ultrapassada (pois realizada): "A ditadura revolucionária e democrática
    do proletariado e do campesinato já se transformou em realidade, mas de
    maneira altamente original, e com um número de modificações extremamente
    importantes". Uma das particularidades era que os sovietes, expressão
    dessa ditadura popular, estava voluntariamente "cedendo o poder à
    burguesia, tornando-se voluntariamente um apêndice da burguesia".

    O caráter democrático-burguês da revolução russa e os pressupostos
    estratégicos bolcheviques, condensados em "Duas Táticas", seriam
    defendidos anos depois da grande revolução socialista de outubro. Na
    brochura A revolução proletária e o renegado Kautsky, escrita em 1918,
    Lênin afirmou: "Já em 1905 os bolcheviques esclareceram completamente a
    questão embrulhada por Kautsky. Sim, a nossa revolução era burguesa
    (…) Tínhamos clara consciência disso, dissemo-lo centenas e milhares
    de vezes desde 1905, nunca tentamos saltar por cima deste degrau
    necessário do processo histórico nem tentamos aboli-lo por decreto (…)
    Mas, em 1917, desde o mês de abril (…) dissemos abertamente e
    explicamos ao povo: agora a revolução não pode se deter nisto, pois o
    país avançou, o capitalismo deu passos em frente, a ruína atingiu
    proporções nunca vistas, o que exigirá (quer queira quer não) passos em
    frente, para o socialismo".

    O leninismo, ao contrário dos esquemas esquerdistas, afirma a
    necessidade de se respeitar as fases e etapas dos processos
    revolucionário concretos, sem cair em visões estanques e etapistas. Para
    ele a revolução deveria ser um processo ininterrupto e os
    revolucionários não deveriam erigir uma Muralha da China entre as etapas
    democrático-burguesa e socialista – esperando calmamente que as forças
    produtivas se desenvolvessem como advogavam os reformistas. O leninismo,
    em última instância, foi a negação do economicismo – que fazia das
    "forças produtivas" o demiurgo da história – pois colocou no centro a
    política revolucionária e reafirmou o papel da ação consciente dos
    homens na história.

    ________________________

    Bibliografia

    LENIN, V.I. – Duas táticas da social democracia na revolução
    democrática, Livramento, S.P, s/d.

    ————– – Cartas desde lejos, Editorial Progresso, Moscou, 1980

    ————— – Cartas sobre táctica, Editorial Estampa, Lisboa, 1978

    ————– – Teses de abril, Editora Acadêmica, S.P., 1987

    LOWY, Michael – "Da grande lógica de Hegel à estação finlandesa de
    Petrogrado" in LOWY, Método dialético e teoria política, ed. Paz e
    Terra, S.P, RJ., 1985.

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