Diz ter se dedicado por 10 anos a tornar uma fazenda rentável para em seguida fazer apenas e tão somente o que melhor sabe fazer: poesia. Ofício do qual nunca mais se afastou, e ao qual se entregou em tempo integral, o que quer dizer que o ócio tornou-se poesia. E poesia não pode ser chamada de trabalho. É ócio criativo, inventado antes que Domenico Di Masi o elevasse à condição de conceito.

O filme alterna o depoimento de Manoel de Barros com vários outros testemunhos. E o espectador se verá diante de uma impressionante sucessão de imagens sobre o inútil, sobre coisas velhas, sobre um mundo aparentemente decadente, materiais descartados, um tempo insondável, ferrugens, um mergulho no cenário de materiais imprestáveis.

É a esses materiais que Manoel de Barros dá fala, vida, existência. Torna o inútil, útil. Torna o velho, novo e real. Faz poesia sobre os cogumelos no armário. Indica vida onde a morte se prenuncia. Só dez por cento é mentira, noventa por cento é invenção. É o pensamento de Manoel de Barros.

Só a imaginação poderosa dele pode criar poesia em cima do aparentemente inútil. Só ele poderia criar o esticador de horizontes. Numa idade bastante avançada, fala com alegria da vida. E à pergunta de como gostaria de ser lembrado – o que não é propriamente uma pergunta elegante na idade dele, e ele registra isso no filme – não se furta, e responde: como poeta. O poeta que comprou o ócio.

Uma jovem catarinense o visita e começa a passar as mãos em suas pernas. Passa uma, passa duas, passa três. “Moça, o que é isso?”. “É pra ver se o senhor existe mesmo”. Conta isso no filme, quase com constrangimento pelo que pode significar de auto-elogio. Mas, de fato, Manoel de Barros é tão impressionante que a indagação da moça tem sua razão de ser. Quem nunca o tenha lido, seria bom que o fizesse logo.

A leitura de Manoel de Barros, ao menos nos espíritos mais sensíveis, pode provocar impactos fortes, outro olhar sobre a natureza humana e outra visão sobre as coisas, particularmente sobre aquilo que consideramos inúteis. A imaginação poética dele transfigura o mundo. Quem quiser que confira. Quem sabe, terá outra visão também sobre o tempo.

Há um texto, em Memórias inventadas, relativas àquilo que ele chama segunda infância, em que ele diz que “não amava” que botassem data em sua existência. Ele gostava mais era de encher o tempo. “Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio”. E olhe que bonito: “tem hora que eu sou quando uma árvore”, e com isso, podia apreciar melhor os passarinhos.

Não se queira compreender isso. Pretenda-se, diante do altar do poeta, imaginar, dar asas à imaginação. A poesia só tem sentido quando, diante dela, não se quer compreender. Deixar-se levar pelas asas da imaginação, não se incomodar com os 90 por cento de invenção,nem com os 10 por cento de mentira. “Eu sou quando uma árvore” dá para compreender? Só dá se o espírito estiver livre para ouvir os muitos passarinhos em torno. Só dá se você se sentir quando uma árvore.

Mas esse tempo, tempo do quando, onde não existiam datas, era o tempo do quando crianças. “Quem é quando criança a natureza nos mistura com as suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu”.

Por tudo isso, por essa beleza, ultimamente sempre recorro ao tempo do quando para diversas situações, para não me angustiar com o tempo. O tempo do quando simplifica tudo, embeleza tudo. O tempo do quando nos dá esperanças, nos faz lutar por nossos sonhos. Se a leitura de Manoel de Barros for atenciosa, carinhosa. Se voar nas asas da imaginação do Pantanal, onde ele nasceu e se criou. Onde tanta gente linda se criou. Onde a natureza se fez beleza.

Se não viajarmos na idéia dos 90 por cento de invenção, não podemos compreender Manoel de Barros. Assim como compreender que uma senhora de nome Ana Belona, de um lugarejo chamado Desprezo, “queria ser árvore para ter gorjeios”? E por que ela queria ser isso? “Ela falou que não queria mais moer solidão”. E tinha razão: é muito ruim moer solidão. Cansa. Melhor ser árvore e ter gorjeios.

Tão grande, tão grande Manoel de Barros que é capaz de dizer não saber “nada sobre as grandes coisas do mundo” e completar: “sobre as pequenas eu sei menos”. Um louco poeta perdido no ócio e disposto sempre aos paradoxos da vida. Que sempre quis desfazer o normal.

Desfazer o normal há de ser uma norma. Pois eu quisera modificar nosso idioma com as minhas particularidades. Eu queria só descobrir e não descrever. O imprevisto fosse mais atraente que o dejá visto. O desespero fosse mais atraente do que a esperança.

Um homem que diz isto não é normal. É poeta. Nunca descrever. Só descobrir. O susto, o alumbramento vem do descobrir. E só se descobre apalpando com as mãos e a imaginação. E nada se descobre com palavra do tanque: “as palavras do tanque são estagnadas, estanques, acostumadas”.

E anotem: palavras do tanque “podem até pegar mofo”. Para o descobrir só um “idioma de larvas incendiadas”, palavras de fontes e não de tanques. Tudo isso é dito como lições de um professor de latim, Mestre Aristeu. Mas ninguém sabe se a referência se enquadra nos 90 por cento de invenção ou nos dez por cento de mentira, e isso pouco importa.

O que interessa mesmo é que a vida é feita do descobrir e não do descrever. É o descobrir que nos assusta e nos deslumbra, nos dá a permanente surpresa do viver, sem o que morremos. Por isso, o poeta diz que aprendeu tanto com Sócrates, que “aprendia melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar”.

Vou deixar o final desse texto provocado pelo filme, com o próprio Manoel de Barros. Está, como as demais citações, no Memórias Inventadas, Segunda Infância:

Eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.

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Fonte: CartaCapital