Para falar da perturbação política brasileira atual muito se tem falado em “crise das instituições”, “polarização fratricida”, “desordem geral”, “iminência de guerra civil”. Os ingredientes desse cenário perturbador todos conhecemos. Por isso, não os retomarei aqui. O essencial é que se tem disseminado na população, à esquerda e à direita, mal-estar, incerteza e medo com relação ao que está ocorrendo no país. Como não estamos acostumados ao debate democrático, essa receita social cheia de pólvora vive na iminência de descambar para a rixa, o safanão e daí para o ódio e a violência sistêmicos.

Entretanto, parece-me que o sentido profundo que já se anuncia no presente é o de amadurecimento político da sociedade, que dará novo fôlego a grupos sociais emergentes e reposicionará os dados no tabuleiro político e econômico do país. É isso que está em disputa hoje: um novo projeto de nação ansiado, anunciado e talvez até conduzido por energias que vêm do âmago mais radical da sociedade brasileira. Gosto de pensar que há possibilidades realmente progressistas em gestação e que agora se anunciam para a nação num futuro não muito distante.

Acredito que o Brasil vive, ao menos desde junho de 2013, um processo socialmente dolorido, animado pela dialética entre o avanço popular necessário e a desejada regressão à velha dinâmica subserviente de capitalismo periférico. Nesse processo, a democracia brasileira confronta-se com seus limites, dando a ver os dilemas de uma época de transição. Lembrando o grande filósofo italiano Antonio Gramsci: a velha ordem já não faz mais sentido e a nova ordem ainda não tem as condições materiais para se impor. As forças populares sabem que o pequeno avanço conquistado até aqui demanda certas condições políticas que propiciem o seu aprofundamento e (quem dera!) a sua radicalização. As forças regressivas, aninhadas no conforto dos desígnios do grande capital especulativo internacional, encontram na velha elite de ranço colonial, e nas classes médias que macaqueiam o comportamento dos de cima, os porta-vozes do ódio contra poder político e contra a democracia. Mas nada disso consegue se impor no sentido de se construir um verdadeiro pacto desenvolvimentista. Entretanto, e isso é o que “temos para hoje”, delineia-se claramente, por um lado o desejo de radicalização democrática e de outro a expressão de um ethos fascista que, na verdade, nunca foi estranho ao país moderno, e que hoje veste a máscara neoliberal.

É evidente que o debate energiza-se e o risco de atritos graves e reais é grande, porque, ao que tudo indica, estamos próximos de um desfecho pontual do processo com a votação, na Câmara dos Deputados do processo de impeachment da Presidenta, a se realizar no correr de abril. A conclusão temporária desse processo, qualquer que seja o seu resultado, não estabelecerá necessariamente um “pacto pelo Brasil” de imediato. Tudo indica que ele será apenas uma estação do talvez relativamente longo processo de reconfiguração de ciclo político econômico, que está pedindo da sociedade um projeto claro de país que deve ser pactuado. O que a mídia venal, a quem interessa a “paz dos cemitérios”, chama negativamente de “acirramento nocivo do debate político” é, na verdade, uma interpelação pedagógica da História aos cidadãos de hoje, pedindo-lhes posicionamento e comprometimento com uma época de crise. É a História, em sua força material, indicando que um certo ciclo se encerrou e que a etapa seguinte está plenamente em disputa.

E me permito ser otimista. Hoje ser otimista não é um luxo; é uma exigência política ao pensamento. Vejo que esta é uma mudança de ciclo político-econômico que, como talvez nenhuma outra na história do país, está sendo vivenciada em real e amplo dissenso e a partir de uma forte participação popular nos acontecimentos. Diferentemente de outras épocas, o povo brasileiro não está assistindo o contrato social de entrada em um novo ciclo nacional ser protagonizado apenas pelos atores sociais de cima com participação residual de alguns representantes institucionais mais alinhados aos interesses do povo. O povo, como protagonista da cena política, tem hoje exigências claras em relação aos desdobramentos da nova fase que se anuncia. Exigências que se tornaram ainda mais claras para ele com o avanço na qualidade de vida das classes subalternas ocorrido nos últimos governos do Partido dos Trabalhadores. Essa é uma das razões pelas quais os setores conservadores estão tão incomodados, a somatizar constantemente, com gestos de violência e arbítrio, o risco iminente e sério de terem antigos privilégios de alguma forma abalados.

E o primeiro privilégio que se esboroa aos seus olhos é o da “opinião pública”. Acostumados a sempre terem razão, não se furtam os cheirosos neofascistas tupiniquins aos mais mirabolantes golpes contra a democracia e contra a legalidade para impor os seus caprichos. Os caprichos de quem quer continuar mandando, mas que agora tem de pactuar de modo minimamente democrático com os debaixo o que será da política e do país mais à frente. A elite brasileira, sempre tão cheia de razão, Não dá valor ao contraditório democrático e tem muito medo da radicalização real dos direitos. Mas muito medo mesmo! Vejam o comportamento dos gangsteres do Congresso, acuados pela possibilidade de se verem em cana; vejam a patética e precipitada “saída” do PMDB do Governo; vejam o comportamento das revistas, rádios, televisões e jornais tradicionais, desesperados com a perda de audiência e de credibilidade; vejam o comportamento do juiz Sergio Moro, metendo os pés pelas mãos a todo momento, deixando evidente que sua ação não é Justiça mas de Perseguição; vejam o comportamento do Ministro Gilmar Mendes, agindo como uma hiena carniceira, desmerecendo, com o golpismo ingente da classe dominante, a cadeira na mais alta corte do país.

Essa narrativa está dada. Ela evidencia um assalto à democracia formal do país. E esse assalto se dá exatamente no momento em que as classes populares voltam a se unir e apresentar uma consciência de que sem a sua participação, o pacto social que nos ajudará a sair da crise não será feito. É irreversível; é inexorável. O que dispomos de democracia formal garante a possibilidade de que as demandas populares estejam contempladas num cenário que supere a atual crise. Quem quer que queira governar doravante terá de aprender a lidar com as vozes populares organizadas e nas ruas. No último mês de março, a palavra democracia uniu setores progressistas da sociedade brasileira em torno de uma ideia comum e a narrativa ficou ainda mais clara: o que era kafkiano foi se tornando realista, o absurdo foi assumindo endereço histórico.

No último mês de março aprendemos. Ganhamos coletivamente cada vez mais consciência de que o impeachment é um golpe contra a democracia e não apenas contra o Partido dos Trabalhadores; conquistamos coletivamente a consciência de que, se houver o golpe, ele tende a ser apenas o primeiro passo do ataque mais profundo e cabal à democracia real. Depois desse golpe viriam, sem dúvida, golpes contra as conquistas sociais e contra os direitos dos trabalhadores, apenas para citar a superfície do terror. Assim, a equação hoje é inegavelmente evidente: a defesa da democracia formal se expressa faticamente na defesa do mandato da presidenta Dilma Rousseff e na  necessária exigência de que os processos legais da operação Lava-Jato preservem as garantias fundamentais do estado de direito democrático.

Mas não é só isso que queremos. Esse é apenas o nosso ponto de hoje. O que desejamos mesmo, percamos ou não essa batalha iminente, é a radicalização da democracia real. E a democracia real é aquela que garante a continuidade do processo de reversão das desigualdades estruturais do país; que sabe que a meritocracia neoliberal é apenas uma forma de violência simbólica praticada para a manutenção de privilégios; que garante direitos às mulheres, aos negros, aos homossexuais, aos mais vulneráveis; que garante comida a quem vive na miséria; que garante escola e universidade aos filhos dos trabalhadores; que garante reforma agrária; que garante uma política e uma mídia livres, no sentido de que não sejam controladas pelos interesses do grande capital.

Posso estar agora sendo otimista demais. Mas, se acuaram as esquerdas e a política democrática em geral nos últimos anos, ouviram de nós uma resposta que anima. Agora há respeitáveis senhores e senhoras com medo do contragolpe, porque o contragolpe não será conduzido apenas por Lula e por Dilma. Ele será conduzido pelo povo organizado em movimentos sociais, partidos políticos, associações de classe, sindicatos, gente livre e democrática. Tremem, então, aqueles que disseram, não faz muito tempo, que a esquerda não existia, que a política tinha se exaurido, que a história tinha acabado. Nós estamos nas ruas desmentindo essas estranhas legendas. Haja ou não haja impeachment: “nada será como antes amanhã”.

 

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

 

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.