Na última segunda-feira (27/06) o jornal Valor Econômico publicou o artigo intitulado “Conteúdo local prejudica Petrobras, diz TCU”, redigido por Murilo Camarotto e Andrea Jubé. No referido texto, de viés fortemente contrário à chamada política de estímulos à produção local, há uma série de inferências e afirmações baseadas na auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Já de início os autores afirmam que “a política de conteúdo local que vigora desde 2003 na indústria do petróleo é ideológica, danosa e tem a Petrobras como principal vítima”. Ora, tal declaração não tem também um forte caráter “ideológico”? Aliás, o que não é ideológico nesta intensa disputa pela definição dos rumos da política energética brasileira?

Esse preconceito que vem se acentuando contra as ideologias, principalmente após a infeliz declaração do presidente interino Michel Temer de “que essa questão de ideologia está inteiramente fora de moda” é que vem se mostrando danosa à democracia.

Ideologia não é como uma roupa que se usa e joga fora e muito menos algo efêmero e passageiro. Pelo contrário, todo e qualquer projeto político, seja ele estatizante ou privatizante, carrega em si seu conteúdo ideológico. Escamotear os dois projetos conflitantes, ou seja, o nacional desenvolvimentismo versus o liberalismo econômico, condenado e defendido sub-repticiamente no artigo, respectivamente, em nada contribui para o debate.

Assim sendo, me parece óbvio que essa análise técnica feita pelo TCU tenha sido “solenemente ignorada pela presidente afastada Dilma Rousseff” pela simples razão de o diagnóstico ser apenas técnico. Tecnicamente falando pode ser “danoso” para a Petrobras, principalmente no curto prazo, fabricar um navio 100% no Brasil e para o Brasil. Mas essa decisão política, com p maiúsculo, não é “danosa” ao país e muito menos para a até então decadente indústria naval brasileira.

Aliás, não servisse a Petrobras também para contribuir “para o desenvolvimento do Brasil e dos países onde atua”, tal como atesta sua Missão Institucional, não haveria a necessidade desta empresa continuar sendo uma estatal. Poder-se-ia privatizá-la e deixá-la atuar livremente aos embalos do mercado, visando sempre, e tão somente, a sua eficiência, eficácia e efetividade, tal como defende em primeiro plano a ideologia liberal. Como se vê, é tudo uma questão ideológica, sim.

Mas o projeto vitorioso nas urnas não foi o liberal. Foi o seu oposto, ou seja, aquele permeado pela ideologia nacional desenvolvimentista, antiprivatista e defensor de um Estado forte. Repetindo: o projeto do Estado mínimo carregado com sua ideologia neoliberal foi derrotado nas urnas e, portanto, rejeitado pela maioria do povo.

Não se quer dizer com isso que a análise técnica é algo menor ou mesmo insignificante. Oposto a isso, esse estudo é fundamental para balizar e aperfeiçoar os rumos da política em curso. De fato, a exigência de conteúdo local deve ser elaborada com vínculos consistentes com a política industrial existente. Não pode ser uma exigência baseada apenas em boas intenções ou arroubos nacionalistas.

Nesse sentido, as limitações, equívocos ou fragilidades dessa política de apoio ao conteúdo local devem ser superadas justamente pelo caminho da política, sobretudo a industrial. A depender somente do mercado, certamente seremos tragados por aqueles países que adotaram essas mesmas medidas de estímulo algumas décadas antes que o Brasil, tal como a Coréia do Sul, citada no artigo.

Em outras palavras, não se pode jogar a água suja da banheira com o bebê dentro. Os apontamentos feitos pelo TCU devem servir para se aprimorar a política de conteúdo local e não para exterminá-la. Essa é, aliás, a Missão Institucional deste órgão: “Induzir o melhor uso da tecnologia da informação no aprimoramento dos serviços públicos”.

Por acaso não é o tal serviço público “um conjunto de atividades e serviços ligadas à administração estatal através de seus agentes e representantes, mas também exercida por outras entidades, mesmo que particulares, sempre visando promover o bem-estar à disposição da população”? E justamente a geração de empregos é outro fator muito importante que não foi levado em consideração pelo mencionado estudo e que muito contribui para o “bem-estar” da população.

É sempre de bom alvitre lembrar que não há nenhum registro na história do capitalismo (e muito menos do socialismo) de um país que tenha desenvolvido sua indústria sem políticas protecionistas e pesados subsídios à produção local. Caso queiramos de fato nos libertar do tal complexo de vira-latas e desenvolvermo-nos a patamares mais elevados, sobretudo nas áreas mais sensíveis e estratégicas da indústria moderna, devemos pagar certo preço por esse investimento, tal como os demais países industrializados pagaram.

Mesmo sendo fato, “um navio-plataforma totalmente construído em um estaleiro brasileiro custar 33% mais do que a mesma embarcação feita no Golfo do México”, é igualmente verdadeiro que esse estaleiro brasileiro, sucateado ao longo de décadas pelos ideólogos liberais, está cobrando agora o preço por esse abandono. E a menos que queiramos ficar eternamente dependentes de comprar navios de outros países – o que certamente será muito mais danoso ao país – mais cedo ou mais tarde teremos que pagar essa conta.

A não ser que um determinado governo seja ideologicamente contrário à nossa soberania nacional, sempre será necessária a devida flexibilidade para se fazer ajustes com relação às eventuais “mudanças no mercado internacional do petróleo”, sem com isso abrir mão de uma política energética nacional que privilegie o conteúdo local.

Luciano Rezende Moreira é Professor do Instituto Federal Fluminense e Diretor de Temas Ecológicos e Ambientais da Fundação Maurício Grabois.