No dia a dia, pouco se fala sobre prisão. Quando este assunto é pautado, em geral, se comenta sobre a violência que aflige os cárceres. Nas últimas semanas, se tornou lugar comum nos meios de comunicação notícias sobre rebeliões em presídios de diversos estados do país devido ao rompimento de relações entre grandes facções criminosas. Entretanto, em que pese o fato de os principais veículos de comunicação quase sempre tratarem como problema central das unidades prisionais a existência dessas facções, os bastidores do sistema prisional apontam para outra direção.

O público alvo central do sistema de justiça criminal abrange um conjunto de características que constitui o perfil socialmente identificável como sendo o do criminoso. Pessoas jovens, com baixa escolaridade, negras ou pardas, moradoras de periferias e de baixa renda que, por não apresentarem as imunidades institucionais da classe média e da classe alta, possuem mais chances de serem detidas, processadas e condenadas. O sistema de justiça criminal reforça um perfil já socialmente estigmatizado.  

Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN, 2014)[1], 27% das pessoas presas em junho de 2014 o foram por situações consideradas tráfico de drogas. Destaca-se que a Lei 11.343/2006 não deixa clara a distinção entre traficante e usuário. É o agente policial quem define se a pessoa abordada pode ser identificada como traficante ou como usuária de drogas. De fato, o traficante se tornou nas últimas décadas o inimigo número um das ações de segurança pública, de modo que as medidas relacionadas desde a abordagem policial até a condenação a uma pena privativa de liberdade estão permeadas pela perspectiva de guerra às drogas.

A maioria das prisões por tráfico é oriunda de ronda policial e não de ações de inteligência, seja das polícias civis seja da polícia federal. O alvo dessas ações quase sempre são pequenos vendedores ou usuários, que contempla o perfil descrito acima, não sendo em geral pessoas com funções de comando e gerência nesta atividade. Nesse sentido, a grande logística do tráfico de drogas não é afetada, até mesmo porque é comandada por grupos que apresentam imunidade de classe e, por óbvio, não estão na mira do sistema de justiça.

Entre outros aspectos, formam o cenário de boa parte das prisões brasileiras: dependências mal arquitetadas, construções mal conservadas, áreas sem iluminação e ventilação, sujeira generalizada, celas superlotadas, escassez de atividades de trabalho e estudo, péssima alimentação, ausência de atendimento de saúde, falta de acesso à justiça e parca distribuição de materiais de higiene e limpeza. Todo esse quadro é uma afronta direta à legislação nacional, bem como às normativas internacionais que o Estado brasileiro se comprometeu a seguir.

Há estabelecimentos nos quais os órgãos do Estado não apresentam qualquer gerência sobre o seu funcionamento. Os agentes da administração penitenciária permanecem apenas em uma ou outra área da unidade, quase sempre na seção administrativa, não chegando a manter contato direto com as pessoas presas. Assim, são os presos quem literalmente abrem e fecham as grades da prisão. Eles se autorregulam, criando regras comportamentais extralegais, senão, ilegais, que ocasionam situações de extrema violência. A opinião pública, induzida e reforçada por ações midiáticas, é enfática em responsabilizá-los, como se os presos fossem “seres animalescos” que pautam todas as suas relações pela força. No entanto, torna-se fundamental apontar que os órgãos do Estado são os responsáveis diretos pelo o que ocorre nas prisões, tendo a obrigação de administrar os estabelecimentos e averiguar todas as circunstâncias relacionadas às pessoas sob sua custódia.

Nos locais em que não é diretamente omisso, o Estado é presente, sobretudo, através da truculência. Faz parte do dia a dia das prisões agentes penitenciários e diretores que humilham, agridem e extorquem as pessoas presas, gerando situações de tortura. Mais grave, não são raros os lugares nos quais os próprios agentes da administração carcerária incitam situações de violência entre os presos, como rebeliões, por exemplo. Além disso, cada vez mais se tornam frequentes as inspeções de forças especiais do próprio sistema prisional ou de batalhões especiais da Polícia Militar nas unidades, gerando um clima de forte tensionamento entre as pessoas presas. É inconteste que a conduta adotada, não raramente, por alguns agentes nestes procedimentos gera uma forte subjugação do individuo, ao ponto de serem quebrados e rasgados objetos dos presos dentro das celas, inclusive livros e artigos religiosos. Os resultados dessas ações podem ter como consequências presos feridos, senão, mortos.  

Há que se apontar também para as precárias condições de trabalho e para a baixa remuneração dos profissionais que atuam nas prisões, bem como para a sua má qualificação.  Para além de frágeis, pouco aprofundadas e distantes do cotidiano prisional, as formações ministradas aos agentes são voltadas quase que exclusivamente para o uso da força contra as pessoas presas. Adicionalmente, muitas administrações penitenciárias não formulam protocolos de atuação, de forma que os profissionais pautam suas ações em conhecimentos de companheiros de trabalho mais experientes ou com base no que acreditam ser o “certo”. Com isso, são frequentes as situações de violência entre os funcionários e os presos, sendo que a tortura marcam cotidianamente o cárcere.

Para além destes pontos, as famílias dos presos, sobretudo as mulheres, são constantemente violadas durante as visitas às unidades prisionais. A pena estipulada ao preso é basicamente estendida à sua família. Isso fica claro, por exemplo, durante os procedimentos de revistas vexatórias realizadas nas entradas das unidades prisionais. Em geral, as mulheres são obrigadas a se despir e a fazer movimentos corporais humilhantes diante de agentes penitenciários.

O Relator Especial da ONU sobre Tortura, Juan Mendez, condenou as práticas de revistas vexatórias, recomendando a abolição desses procedimentos nas unidades prisionais brasileiras. Apesar de terem sido proibidas recentemente em alguns estados do país, essas revistas ainda são realizadas nos estabelecimentos carcerários, afetando a manutenção de relações familiares e afetivas durante a privação de liberdade de uma pessoa. De fato, segundo a Defensoria Pública de São Paulo, em 2013, de cada 10.000 visitantes em prisões paulistas, apenas uma apreensão foi realizada a partir da revista vexatória, o que demonstra o quanto esses procedimentos são inócuos, além de extremamente violadores[2].

Além disso, ao não fornecer de maneira adequada os itens de higiene, limpeza e alimentação, as famílias – e, novamente, em especial as mulheres – recebem o ônus de garantir que seus parentes presos tenham materiais básicos durante a privação de liberdade.

Ensejam também fortes preocupações outras clivagens de gênero relacionadas ao ambiente prisional, já que as mulheres presas quase sempre apresentam suas necessidades negligenciadas pelo Estado. Os estabelecimentos de privação de liberdade femininos são geralmente meras adaptações de antigas construções carcerárias voltadas aos homens, estando em péssimo estado infraestrutural e pouco adequadas às mulheres. Adicionalmente, não são disponibilizados às presas materiais de higiene suficientes. Inclusive, recentemente foi amplamente divulgada nas redes sociais uma campanha de arrecadação de absorventes íntimos às presas, dada sua parca distribuição no sistema prisional feminino.

Os direitos das gestantes e lactantes privadas de liberdade são também sistematicamente violados, visto que há normas nacionais e internacionais cujas prescrições determinam que essas mulheres poderiam cumprir suas penas em âmbito domiciliar. Ao contrário disso, grávidas e lactantes permanecem privadas de liberdade em condições altamente degradantes. Nessa linha, deve-se registrar o fato de muitas mulheres presas darem à luz algemadas. Ao invés de gerar consternação, situações como essa são tratadas como triviais no Brasil.

Por sua vez, o público LGBT sofre violências constantes durante o encarceramento, pois são poucos os estados nos quais há políticas voltadas a esse grupo de pessoas. Quando existentes, essas ações, em geral, pouco escutam os sujeitos alvo da política e muitas vezes geram mais violações que soluções.

Diante de todo esse cenário apresentado, é muito grave o fato de os casos de tortura ocorridos nas prisões brasileiras não serem devidamente investigados, sendo o Estado o perpetrador central dessas práticas. Em regra, tais situações são banalizadas no ambiente carcerário e em outras circunstâncias, sendo comum escutar que não existe mais tortura no Brasil, como se esta prática tivesse ocorrido apenas nos porões da Ditadura Civil-Militar. Muito distante disso, os aspectos mencionados demonstram que a tortura é praticada diariamente nos cárceres brasileiros, seja por ação, seja por omissão dos agentes públicos, não recebendo, de maneira geral, o tratamento devido.

Ao custodiar uma pessoa, o Estado deveria garantir condições para que a prisão não ocasionasse um sofrimento maior do que o já gerado pela privação de liberdade. Diametralmente contrário a isso, o Estado provoca uma espécie de sanha punitiva em que o foco não é a prevenção ao crime e, sim, a vingança pela conduta cometida por uma pessoa. A pena se torna, então, a inflição consciente da dor (Nils, 2011)[3]. Para além da administração penitenciária, outros órgãos do sistema de justiça criminal, como o Ministério Público e o Poder Judiciário, têm, por lei, um papel fundamental na execução penal, devendo, por exemplo, fiscalizar sistematicamente as unidades prisionais. No entanto, muito aquém desta tarefa, tais órgãos permanecem em boa medida alheios ao que se passa dentro dos cárceres do País e, inclusive, chegam a legitimar tais violações.

De fato, a cultura institucional preponderante nestas esferas do sistema de justiça criminal se pauta pelo recrudescimento penal. Não é novidade que o Brasil é um dos países que mais encarcera no mundo. O DEPEN (2014) apontou que, entre 2008 e 2014, o Brasil aumentou seus índices de encarceramento em 33%. Já os Estados Unidos, país com maior população prisional do mundo, diminuiu neste mesmo período o encarceramento em 8%, seguido da China em 9% e da Rússia em 24%. Ou seja, o Brasil está na contramão da tendência mundial no que se refere ao aprisionamento. Mais grave que isso, há o uso abusivo da prisão provisória, de modo que, conforme esse mesmo estudo do DEPEN, 41% das pessoas presas em todo país não têm condenação. Em outras palavras, o Brasil prende muito e, ainda, prende mal, estabelecendo a privação de liberdade como regra geral, não como exceção.

Simultaneamente ao fato de ser punitivista e seletivo, o sistema de justiça cria uma redoma em torno de si que dificulta qualquer intervenção ou questionamento social. Com isso, mesmo que afrontem diretamente às normas, muitas decisões judiciais e muitas ações do Ministério Público permanecem incontestadas. De acordo com a pesquisa Julgando Tortura (2015)[4], os órgãos do sistema de justiça, sobretudo o Ministério Público e Poder Judiciário, atuam com rigor na apuração de casos de violência doméstica denunciados como tortura, mas não o fazem da mesma forma quando se tratam de ocorrências envolvendo agentes públicos como agressores, evidenciando falta de esforços por parte desses órgãos em apurar, processar e julgar esses casos.

Nesse sentido, longe de pensar em uma profunda reforma institucional, estes órgãos demandam mais privilégios, visando, sobretudo, a manutenção do seu status. Uma das consequências disso seria um distanciamento do Judiciário e do Ministério Público das populações historicamente vulneráveis, prejudicando a reversão do quadro altamente desigual e violador do País. Em suma, todo o cenário desenhado acima se reforça ainda mais a cada dia.

Nos últimos tempos, há uma série de projetos de emendas constitucionais e de leis que propõem o endurecimento das políticas, inclusive no campo dos direitos humanos. Áreas como saúde, educação e assistência social sentirão com severidade as consequências dessas propostas, principalmente com a possível aprovação no Senado Federal do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 241. Se estas áreas, tão sensíveis em nossa sociedade, sofrerão os impactos de tais medidas, o que dizer do campo penal, cujas propostas que se apresentam são igualmente preocupantes e correspondem à ampliação dos riscos de maior incidência de violências institucionais, sobretudo da tortura.

Nessa linha, é importante destacar as seguintes medidas em cena: a redução da maioridade penal; o aumento do tempo de prisão e de internação de adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa; a lei antiterrorismo; a admissão da execução da pena após condenação em segunda instância; o recrudescimento da política de drogas; e a privatização das prisões. Todas essas ações vêm sendo elencadas como essenciais para reverter os problemas de segurança pública que diariamente assolam o País. No entanto, ao contrário disso, como apontam estudiosos da questão prisional, gerariam efeitos drásticos à intensificação do encarceramento no Brasil, assim como o agravamento da criminalização das populações mais vulneráveis.

Dentro desse contexto, há que se ter precaução em relação aos possíveis rumos a serem trilhados pelo Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado em 2013. Esse Sistema Nacional é composto, entre outros órgãos, pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O Mecanismo Nacional, órgão autônomo, composto por peritos independes, está em funcionamento desde o início de 2015. O Comitê Nacional, por sua vez, é formado por doze instituições da sociedade civil e por onze órgãos do poder público federal. Uma das funções do Comitê é mapear casos de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, bem como divulga-los e planejar ações e políticas preventivas. Iniciou suas atividades em meados de 2014 e encerrou o seu primeiro mandato ao final de julho de 2016, já tendo sido realizada a eleição de novos membros. No entanto, até o momento, a nova composição do Comitê Nacional não tomou posse, aguardando a nomeação a ser realizada pela Presidência da República. Em outras palavras, o Comitê Nacional está há mais de três meses sem funcionamento. Inclusive, o Ministério Público Federal já demandou ao Ministério da Justiça e Cidadania à instalação da nova composição do Comitê Nacional.

Outra frente prevista para o fortalecimento do Sistema Nacional é a implementação de Mecanismos e Comitês estaduais, cuja função se orienta para a prevenção à tortura em âmbito estadual. Atualmente, somente dois Mecanismos estaduais foram criados, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, ao passo que 17 estados instituíram seus Comitês estaduais. Ou seja, urge que essa política seja reforçada e ampliada em todo o Brasil.

O que pode se perceber na coxia do cárcere é que a orientação e os rumos adotados pelo Estado brasileiro tendem a agravar ainda mais a situação lamentável em que vive parte significativa da população do país. Aposta-se cada vez mais na lógica policialesca, de encarceramento em massa, de guerra às drogas, bem como no desmonte de políticas e na fragilização delas. O caminho a ser seguido deveria ser justamente o oposto, já que o Estado deveria buscar saídas voltadas à redução da desigualdade e na democratização das instituições. Com isso, todo o cenário de violações projetado acima se desvaneceria, poupando a vida e a dignidade de muitas pessoas.

 

Diversos autores

Bruna Angotti – Antropóloga e Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, representante do IBCCRIM no biênio 2014-2016

Catarina Pedroso – Psicóloga e Perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT)

Fernanda Machado Givisiez – Bacharel em Direito e Perita do MNPCT

Maria Gorete Marques de Jesus – Socióloga e Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, representante do IBCCRIM no biênio 2014-2016

José de Ribamar de Araújo e Silva – Filósofo e Perito do MNPCT

Lucio Costa – Psicólogo e Perito do MNPCT

Thais Lemos Duarte – Socióloga e Perita do MNPCT

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil. 

[1]DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias. INFOPEN – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. 

[2] Informação disponível em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=59457&idPagina=3086. Acessado em 27/10/2016.

[3] CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crimes. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

[4] A pesquisa foi realizada entre maio de 2011 e janeiro de 2015 por um conjunto de organizações, como Conectas Direitos Humanos, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Pastoral Carcerária, IBCCRIM e ACAT Brasil. Teve como objetivos construir um banco de dados de jurisprudência de tortura a partir de acórdãos coletados nos Tribunais de Justiça (TJs) dos estados brasileiros e analisar as decisões e compará-las. O relatório completo foi publicado em janeiro de 2015 e encontra-se disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/06/71c559732e6ec4d229f7e707fdab8700.pdf. Acessado em 27/10/2016.