“Fatos alternativos”! Esta enigmática expressão tornou-se mundialmente conhecida no dia seguinte à posse do novo presidente norte-americano, Donald Trump, quando sua assessora especial, Kellyanne Conway, recorreu à ela para tentar justificar, apesar das evidências em contra, porque a cerimônia de transmissão de cargo, no dia 20/1, teve mais espectadores que nos casos de antecessores do atual inquilino da Casa Branca.

No jargão norte-americano “alt facts” é uma adaptação de outra expressão recente, “alt right”, cuja tradução literal seria “direita alternativa” mas que no vocabulário dos seguidores de Trump passou a significar “nova direita”. Nenhum membro da nova equipe de governo dos Estados Unidos explicou em detalhes o que entendem por “fatos alternativos” mas interpretando o uso que está sendo dado à expressão pelos assessores de Trump fica claro que estão se referindo a “fatos” que corroboram a versão da Casa Branca.

A imprensa dos Estados Unidos recebeu a estratégia comunicacional dos “fatos alternativos” com um misto de ironia e perplexidade, porque começou a se delinear um contexto extremamente complexo na forma como a imprensa produz notícias e na maneira como os governantes lidam com a realidade política. Até agora havia uma coincidência mínima entre os tomadores de decisões políticas e os editores dos principais jornais, revistas, telejornais e sites noticiosos online nos Estados Unidos. As duas partes se entendiam quando lidavam com dados, fatos e eventos.

Mas Trump e sua equipe resolveram romper com este consenso propondo fatos alternativos, ou seja, fatos que não integram a visão da imprensa convencional e são fruto de representações da realidade, criadas pela nova equipe da Casa Branca. Poder-se-ia dizer que a “direita alternativa” está tentando criar uma “realidade alternativa”, o que em termos das teorias sobre visão de mundo não é um absurdo na medida em que cada pessoa percebe a realidade que a cerca de uma forma própria e diferente.

Acontece que a diversidade de percepções está vinculada a preocupação com uma visão complexa do mundo, ou seja, não há uma única verdade. Para os adeptos dos “fatos alternativos” há apenas uma verdade, a deles, um posicionamento que gera conflitos e até guerras mundiais. O que Trump e sua equipe estão tentando impor é uma visão própria do mundo em que os Estados Unidos estão inseridos.

Ganhando no grito, literalmente

Isto nos leva inevitavelmente a um choque de visões do mundo, cujo desenlace dependerá fundamentalmente do conflito estratégias de comunicação, o que coloca a imprensa no centro do confronto. É bom lembrar que estamos na era da chamada pós-verdade, onde o que entendíamos por verdade agora depende mais da propagação maciça de versões do que da veracidade dos fatos, dados e eventos. Quem gritar mais alto, com mais frequência e com maior alcance, passa a ser considerado arauto da verdade.

Este é o grande calcanhar de Aquiles de Donald Trump. Ele tem o poder político mas não controla a mídia. Por isto transformou as redes sociais, em especial o Twitter, na sua grande plataforma de comunicação, onde pode dizer o que quer, do jeito que quer e quando quiser, sem ter que passar pelo controle de editores.

O que provavelmente veremos em breve é um agravamento dos confrontos entre a imprensa convencional e as redes sociais. Se o antagonismo era até agora apenas por questões financeiras ligadas à sustentabilidade de empresas jornalísticas, agora passa a ser também um problema politico. A imprensa norte-americana se apresenta como um bloco homogêneo, com estratégias definidas. Trump e os adeptos dos “fatos alternativos” usam as redes sociais, onde a heterogeneidade é um fator estrutural.

É impossível dizer agora quem acabará prevalecendo. No momento o bloco da imprensa norte-americana está em vantagem porque ainda é hegemônico na disseminação de suas “verdades”, que por sua vez são a principal matéria-prima do boca-a-boca nas redes sociais. Mas Trump e a “direita alternativa” agora controlam boa parte do governo mais poderoso do mundo, cuja capacidade de criar “fatos alternativos” é imensa, principalmente porque os veículos de comunicação norte-americanos sempre dependeram muito da informação oficial.

Estratégia política para desafiar o jornalismo

O presidente eleito dos Estados Unidos Donald Trump não é o primeiro político a usar a desinformação para encurralar adversários e seduzir eleitores, mas ele é seguramente quem a oficializou como estratégia prioritária de comunicação nas semanas que antecedem a mudança de governo na nação mais poderosa do planeta.

Desinformação é o processo pelo qual uma notícia falsa, parcialmente falsa, conceitos distorcidos ou fatos fora de seu contexto são sistematicamente difundidos por personalidades públicas e pela imprensa gerando a percepção de que são informações confiáveis entre os consumidores de informações.

Não é um processo novo, pois sempre existiu na política, nos negócios e na diplomacia como uma forma de tentar mudar a forma como as pessoas veem personalidades, fatos, dados e eventos. Quem mais se aproximou do fenômeno atual foi o chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels que eternizou a frase: “uma mentira repetida milhares de vezes vira uma verdade”.

Donald Trump vem seguindo este preceito ao pé da letra, tanto que nas semanas anteriores às eleições norte-americanas do dia 8 de novembro, a sua assessoria de comunicação inundou a internet com 8,9 milhões de micro mensagens na rede Twitter, mais da metade das quais produzidas por robôs eletrônicos e 55% delas disseminavam notícias falsas favoráveis ao então candidato republicano.

Mesmo depois de vencer as eleições, quando todos esperavam que Trump fosse moderar a sua retórica conservadora, ele continuou a fazer afirmações altamente contestáveis sobre meio ambiente, diplomacia mundial, comércio internacional e liberdade de expressão na imprensa e na internet. O sucessor de Barack Obama não se preocupa com o fato de suas declarações serem consideradas levianas por especialistas econômicos, políticos liberais e pesquisadores acadêmicos. Muito menos dá importância às consequências previsíveis e assustadoras da desorientação informativa entre os leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de redes sociais.

A maioria esmagadora da nova equipe republicana que assumirá a Casa Branca em janeiro aparenta confiar cegamente na máxima de Goebbels, tanto que o fenômeno batizado pela imprensa norte-americana como fake news (notícia falsa) passou a ser uma obsessão tanto dos jornais, telejornais como dos principais empresários da internet. Os grandes conglomerados da imprensa norte-americana e também do resto do mundo estão cada vez mais preocupados com a disseminação do fenômeno fake news porque ele atinge o cerne do negócio do jornalismo. A generalização da dúvida é uma consequência da irresponsabilidade quase criminosa de Donald Trump, e seus seguidores,  em distorcer fatos, estatísticas, conceitos e eventos.

Numa época caracterizada pela super abundância de informações e déficit de instrumentos para avaliar credibilidade, fica fácil aos políticos, empresários e tomadores de decisões usar o recurso da notícia descontextualizada porque a maior probabilidade é a de que ela não será contestada. Trata-se de um delito com alta chance de impunidade.

Delito com alta chance de impunidade

A descontextualização e distorção de dados tem sido um recurso quase corriqueiro entre políticos, governantes e empresários com a cumplicidade da imprensa, quando há coincidência de interesses entre os seus protagonistas. Esta situação não gerou consequências graves até agora porque os grandes grupos econômicos da mídia tinham um monopólio quase total da forma como a realidade era apresentada ao público. Na falta de versões alternativas, as fake news viravam verdade incontestável, até que algum fato histórico posterior, eventualmente,  desfizesse a versão original.

Mas esta situação está mudando rapidamente e o fenômeno desinformação na era Trump é talvez seja o prenúncio de que ainda enfrentaremos muitos problemas no futuro de médio e curto prazo. A responsável pela mudança e a internet porque ela permitiu que os indivíduos passassem a expressar seus pontos de vista à margem da mídia convencional, especialmente nas redes sociais. É um fenômeno comportamental (mudança de hábitos e rotinas) mas que já tem desdobramentos na política e começa a atingir a imprensa.

Richard Florida, um pesquisador da Universidade de Toronto e professor da Universidade de Nova Iorque publicou semana passada um estudo analisando o mapa dos resultados das últimas eleições presidenciais norte-americanas e chegou a uma conclusão preocupante: Trump perdeu na maioria das grandes cidades mas ganhou maciçamente nos pequenos condados do interior dos Estados Unidos, mostrando que sua mensagem carregada de fake news foi captada pelo eleitor das pequenas cidades que reagiram pelas redes sociais assumindo um protagonismo inexistente até agora.

As areas em vermelho indicam condados onde Trump ganhou. Em azul, vitória de Hillary Clinton. Fonte Flickr
Segundo Florida, emergiu uma nova cara dos Estados Unidos, contrariando a imagem bem-comportada do público urbano, fidelizado pela grande imprensa. A mudança do discurso político e da agenda pública norte-americana não é obra só das esquisitices e provocações de Trump mas é a manifestação de uma opinião pública que não encontrava formas de se expressar até agora.

A internet está mudando a geografia política, não só dos Estados Unidos, mas em muitos outros países, da Europa, por exemplo, graças ao surgimento de novos fluxos informativos, que rompem o monopólio noticioso dos grandes grupos midiáticos globalizados. Ao que tudo indica não é um fenômeno episódico, mas sim algo que veio para ficar porque está ancorado numa realidade que não era mostrada pela grande imprensa.

Uma era de incertezas

Teoricamente seria um fato promissor porque diversifica a oferta informativa mas como em toda a grande mudança social, econômica e política, há um período inicial onde a incerteza, insegurança e desorientação predominam. Esta é a fase que estamos começando a viver.

Tudo indica que assistiremos nos próximos anos a uma dramática disputa pelo controle do discurso político e da agenda pública de debates. Será uma batalha onde a principal arma será a informação porque é ela que influi na forma como as pessoas veem políticos, partidos, governos, empresas e movimentos insurrecionais, entre eles o terrorismo. E nesta batalha o fenômeno das fake news ocupará um lugar destacadíssimo, como mostrou a eleição norte-americana de novembro.

Isto cria um contexto extremamente complexo para o exercício do jornalismo. A preocupação óbvia seria dar ênfase total à checagem de fatos (fact checking) mas a alternativa não é tão simples assim e nem vai permitir resultados imediatos. É praticamente impossível verificar a veracidade do avassalador volume de informações públicas diariamente na internet. Só a rede Facebook incorpora diariamente 4 petabytes de dados publicados por seus clientes. 83% dos líderes mundiais postam regularmente micro-mensagens no Twitter, cujos usuários publicam 6 mil tuites por segundo, em média. São números assustadores.

Além do volume outro complicador é a complexidade das informações inseridas na internet. Não é mais possível fazer avaliações sumárias do tipo certo ou errado, verdadeiro ou falso. Ao jogar volumes, agora já incalculáveis, de informações na web, a avalancha informativa multiplicou a quantidade de versões sobre um mesmo número, fato ou evento, o que complica e alonga o processo de verificação de credibilidade pelos jornalistas.

Ainda nem começamos a estruturar estratégias de ação para a checagem de fatos, mas pelo volume e complexidade das informações a serem verificadas parece inevitável uma descentralização e segmentação, envolvendo não apenas os jornalistas mas boa parcela da sociedade.

Fake news ou slow news

Todo o bate boca em torno do fenômeno fake news ( noticia falsa) pode acabar levando a mudança de um dos comportamentos mais arraigados na cultura jornalística, o do imediatismo, ou seja da preocupação em ser o primeiro a publicar uma notícia. Pesquisadores do jornalismo, especialistas em comunicação e estrategistas políticos estão chegando a conclusão de que a correria pelo furo noticioso dificulta a checagem de dados, fatos e eventos tanto nas redações online como entre os editores independentes em blogs jornalísticos.

A solução seria reduzir o ritmo , gastar mais tempo na verificação e contextualização das informações para evitar que o fenômeno das fake news (jargão americano) assuma proporções catastróficas comprometendo ainda mais a credibilidade da imprensa. O imediatismo e o empenha em publicar antes da concorrência sempre foram comportamentos profundamente entranhados na cultura jornalística tradicional. Dar um furo noticioso ainda é, em muitas redações, um atestado de qualidade profissional e um poderoso elemento de marketing publicitário.

Mas a popularização da internet começou a mudar o contexto a partir do momento em que as empresas jornalisticas passaram a ter que concorrer com milhares de amadores responsáveis pela publicação de blogs ou com acesso a redes sociais. Como estão em quase todos os lugares, com smartphones dotados de câmeras, a concorrência se tornou desigual, salvo quando os jornais e TVs competem entre si usando material de amadores.

Mas desde do ano passado, a maratona por um furo jornalístico tornou-se ainda mais complexa com a massificação das redes sociais virtuais, como o Facebook (mais de 1,5 bilhão de usuários em todo o mundo), e o surgimento das notícias falsas, meias verdades ou informações descontextualizadas. A combinação entre leviandade informativa e imediatismo acabou assustando os donos de empresas de comunicação, porque as fake news abalavam a já desgastada confiança do publico em jornais, revistas e telejornais. Os controladores de redes sociais também acabaram contaminados pelo temor de serem acusados de semear a discórdia e a desorientação informativa, enquanto os políticos, os maiores disseminadores de meias verdades pela imprensa, sentiram que podiam acabar dando um tiro no pé, caso a desinformação se generalize.

A situação é realmente preocupante porque o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, já deixou claro que vai governar usando o Facebook e o Twitter. Não é segredo que as redes sociais são mais uma caixa de ressonância do que um centro distribuidor de notícias. Comentários e opiniões predominam sobre informes e análises, o que é natural tendo em vista que a maioria esmagadora dos usuários das redes é formada por indivíduos que desejam dizer o que pensam, pela primeira vez na historia da humanidade. A cacofonia é inevitável, da mesma forma que a desorientação causada pela avalanche de percepções e opiniões individuais.

O fantasma do caos informativo

Os últimos episódios envolvendo Donald Trump levaram empresas jornalísticas de grande porte como Facebook, BBC inglesa e o norte-americano The New York Times intensificar as medidas de controle de veracidade, um esforço para atenuar os efeitos da desinformação. Na Califórnia, os deputados estaduais vão votar uma lei impondo as escolas a ensinar seus alunos como identificar e combater as fake news.

Para a imprensa, a desorientação do publico é uma ameaça porque mina a confiança no que é publicado. Para os donos, passou a ser um mau negócio, num ambiente econômico em que a luta pela sobrevivência corporativa é muito dura e incerta. Para os jornalistas é um desafio porque torna urgente a revisão de rotinas e valores seguidos ao pé da letra por décadas. Num ambiente de boataria permanente ficou perigosíssimo ceder ao impulso do imediatismo na publicação, sabendo-se que já existem sites e softwares especializados em disseminar noticias falsas com todos os requintes de edição jornalística.

Tudo indica que a cautela, indispensável num contexto de incerteza e dúvidas, derrubará as resistências existentes contra a consolidação das slow news, notícias mais pensadas e preocupadas com a credibilidade. O pesquisador australiano Megan Le Masurier foi, em 2016, um dos primeiros a explorar teoricamente o fim do imediatismo e da pressa editorial na imprensa, num artigo acadêmico intitulado What is Slow News? Dois anos antes, o jornalista norte-americano Peter Laufer já tinha publicado um livro no qual combina jornalismo e tendências de consumo para mostrar que o bombardeio de mensagens publicitárias e de reportagens contraditórias só criavam problemas em vez de soluções. Mas o debate sobre a nova tendência informativa não prosperou e só ressurgiu agora quando a perspectiva de um caos informativo ganhou contornos mais nítidos.

Carlos Castilho é jornalista, pós doutorando em comunicação e editor do site do Observatório da Imprensa.