Terceirização revela a alma senhorial da elite escravagista brasileira
A aprovação na Câmara dos Deputados do texto-base do Projeto de Lei que autoriza o trabalho terceirizado para qualquer tipo de atividade é um golpe frontal na classe trabalhadora. Atinge a estrutura social erguida ao longo do século XX e início do século XXI, amalgamada com sangue; para erguê-la, muitos foram presos, torturados e não poucos assassinados. Enfrentou-se ditaduras e os métodos truculentos, brutais, da direita brasileira para que os trabalhadores tivessem um mínimo de dignidade na relação capital-trabalho.
A terceirização revela a alma da direita brasileira. Ela tira a máscara da hipocrisia dos que tentam tergiversar quando assuntos que mexem com o cotidiano da sociedade são debatidos e mostra com nitidez a memória da elite senhorial associada à Coroa Portuguesa que historicamente se formou por aqui, beneficiária do trabalho escravo por quase 400 anos dos poucos mais de 500 anos da nossa história oficial. Uma elite que, não por acaso, é definida como branca, por ser legatária do escravagismo, conceito que ela tenta desqualificar por atingi-la em cheio.
Até Cândido, Poliana e a Velhinha de Taubaté encontrariam dificuldades em acreditar que a terceirização significa a modernização das relações de trabalho. Em bom português, é uma empulhação que troca o futuro pelo passado. Ou por outra: deixa evidente que a luta política feroz da ideologia direitista para que o século XIX nunca termine no Brasil é para valer. Ainda temos por aqui a dominação de oligarcas que consideram desacato, ofensa pessoal mesmo, o fato de serem tratados como iguais.
Produtivismo versus distribuitivismo
Nos governos de FHC, essa lógica era explícita; dizia-se abertamente que ao enfraquecer o trabalho o capital seria atraído mais facilmente. Já no seu discurso da primeira posse, em janeiro de 1995, o presidente neoliberal prometeu acabar com a “era Vargas”. E, ao longo do seu reinado, fez do Brasil um dos recordistas mundiais de desregulamentação trabalhista. FHC, na verdade, radicalizou um processo iniciado com o golpe militar de 1964, quando as bases das relações entre capital e trabalho instituídas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 começaram a ser atacadas.
Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, os mais destacados formuladores da política econômica do regime militar, publicaram, em 1974, um livro chamado “A Nova economia brasileira” no qual não deixaram dúvidas sobre o que estava em jogo quando os militares golpistas assaltaram o poder. Segundo eles, o dilema produtivismo versus distribuitivismo precisava de uma imediata solução. “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram.
O bolo da tecnocracia privada
O modelo seguido, evidentemente, foi o produtivista, que tornou-se conhecido quando Delfim Netto afirmou que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. O seu pré-requisito básico era garantir força de trabalho barata, incluindo nesse conceito, além do achatamento salarial, o enfraquecimento dos sindicatos e a “flexibilização” das leis trabalhistas. Ao definir os aumentos salariais como uma das principais causas da inflação, os gestores do modelo estabeleceram uma austera política salarial — como se viu ao longo desse tempo, principalmente com o salário mínimo — e a precarização do vínculo empregatício. Ou seja: o bolo cresceu e os trabalhadores não sentiram sequer o seu cheiro.
A ordem estabelecida em 1964 também inaugurou a gestão econômica do país por uma tecnocracia privada, que representa os negócios das corporações dentro do governo, tendência que se acentuou na “era FHC” e cujos preceitos ideológicos norteiam o atual governo golpista. Mas ela é, há muito tempo, desmascarada de forma consistente — já em 1981, no livro “O Brasil pós-milagre”, Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão anti-social.”
Completa subordinação
O resultado mais nítido dessa imposição é o alargamento da enorme distância entre patrão e empregado, em termos econômicos e políticos. Poucos países ostentam uma distinção social tão marcada como a nossa. A elite brasileira, que sempre viveu sob a proteção do Estado, de modo fisiológico e clientelista, não aceita outra posição do restante da população senão a completa subordinação. E os governos quase sempre estiveram ao seu serviço, criando fontes de lucros e, não raro, pagando suas contas.
Lembremos que quando Luis Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República, em 2003, havia no país muita gente sem trabalho e sem o que comer. Aproximadamente 57% da População Economicamente Ativa (PEA) estavam na informalidade, sem carteira de trabalho, férias, descanso semanal remunerado, Fundo de Garantia e Previdência Social. Esses dados — além de muitos outros — são imprescindíveis para esclarecer o conjunto dos trabalhadores o que de fato representa a permanente luta do capital contra as conquistas trabalhistas.
Essa proposta de terceirização agora novamente aprovada havia sido enviada ao Congresso pelo governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) em 1998. Fora aprovada pela Câmara dos Deputados e, ao passar pelo Senado, sofreu alterações. De volta à Câmara, o texto aguardava desde 2002 a análise final dos deputados. Em 2015, a Câmara aprovou outro projeto, com o mesmo teor, durante a gestão do ex-presidente da Casa Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O texto foi enviado para análise do Senado, mas ainda não foi votado. Agora, ressuscitaram o projeto de FHC, que vai na alma dos trabalhadores, destruindo o vínculo legal da relação capital-trabalho, inclusive no âmbito da representação sindical, fragmentando as categorias profissionais.
Locupletação patronal
Concretamente, esse debate tem de começar pelo conceito amplamente difundido pela direita de que o conflito entre capital e trabalho é uma questão individual. A lei, segundo esse preceito, não pode se sobrepor à realidade do “mercado”. O Estado não pode determinar quais são os interesses dos trabalhadores e como eles devem ser exercidos. E as diferenças entre patrões e empregados devem ser negociadas, não legisladas. É a ideia cristalina do neoliberalismo, que privilegia o individual em relação ao coletivo. Seus interesses estão por trás do cinismo utilizado pela mídia para difundir a tese de que tanto um poderoso executivo de uma multinacional quanto um operário ou uma operária têm as mesmas condições de negociar a duração do período de férias, o tempo da licença-maternidade e o pagamento do 13º salário.
Na economia, a linguagem cifrada em geral tem o objetivo de ofuscar as verdadeiras intenções de uma determinada política. E as mudanças globais, com o fim do campo socialista que fez emergir a hegemonia neoliberal, têm ajudado enormemente o recrudescimento dos ataques aos direitos sociais e trabalhistas. Em todo o mundo capitalista pulsa a lógica dos conglomerados econômicos, regidos pelos mecanismos da finaceirização, que tem na locupletação patronal seu principal elemento. Criam-se vazios legais para, no vácuo do poder público, escravizar os trabalhadores. A terceirização tem essa única finalidade.