Mais de 350 mortes e um número ainda maior de feridos, vítimas do maior atentado terrorista desde o 11 de setembro. A magnitude dos números, por si só, não consegue explicar a distribuição desigual da visibilidade dos atentados terroristas na mídia ocidental. Para entendermos por que algumas vidas parecem importar mais do que outras, precisamos ser mais específicos, localizando o atentado geograficamente e falando sobre cor, classe e religião.

Situada no continente africano, historicamente invisibilizado pelas narrativas dominantes, a Somália foi concebida como física e imaginariamente remota do Ocidente, já que palco de conflitos clânicos associados com sociedades primitivas e atrasadas. A abstração dos números de vítimas do duplo atentado não consegue captar a singularidade desse outro 11 de setembro experimentado por corpos pobres, negros e periféricos que se situam na interseção de múltiplas formas de discriminação. O recente veto migratório de Trump sugere, ainda, um outro fio nessa teia de discriminações: o fato dos somalis serem, em sua maioria, muçulmanos, assim como os outros cinco países alvos do veto.

Desde 1991, quando o ditador Siad Barre foi deposto dando origem a uma guerra civil e a uma crise de fome, a Somália tem se revelado incapaz de reconstruir um Estado centralizado e minimamente estável. A normalização da violência se faz sentir, especialmente, no sul agrícola que abastece o país, mas que, paradoxalmente, é habitado por somalis tradicionalmente marginalizados da vida política nacional. Em razão de sua ancestralidade africana e diferentemente da maioria dos somalis que se dizem descendentes dos árabes, esses povos do Sul estiveram expostos a uma série de discriminações no seio da sociedade somali, agravadas pela introdução de categorias racistas europeias durante a colonização italiana. Alvos, no começo da década de 90, de saques e expropriações, são essas populações agrícolas que se encontram hoje sob o controle da milícia islâmica radical Al-Shabaab.

O contexto de violência cotidiana e de precariedade institucional da Somália pós-Barre forneceu o caldo para a emergência do terrorismo. A Al-Shabaab, formada por muitos jovens que cresceram nesse ambiente de instabilidade e de repúdio às intervenções estrangeiras, ganhou força a partir de 2006. Na ocasião, a Al-Shabaab era apenas uma facção radical no marco da União das Cortes Islâmicas (UCI) que assumiu o poder em Mogadíscio durante seis meses, sendo expulsa por meio de uma invasão da Etiópia, balizada pelos Estados Unidos, em prol do fraco governo transitório criado em 2004. Nesse momento, enquanto a UCI foi dissolvida e os seus principais líderes moderados buscaram refúgio nos países vizinhos, a Al-Shabaab radicalizou seu discurso e práticas, emergindo como a principal força de resistência ao governo etíope, que só se retirou do país em 2009, sendo substituído por forças de paz da União Africana (AMISOM). Munida de uma orientação nacionalista voltada para a expulsão do invasor estrangeiro e contra o governo transitório por ele sustentado, a Al-Shabaab se tornou, a partir de então, mais atrativa junto aos somalis, que passaram a se filiar voluntariamente à resistência e a treinar em campos que proliferavam no espaço desgovernado do sul da Somália. Se, por um lado, essa ocupação do sul agrícola, baseada tanto em consentimento como em coerção, ajudou a milícia a se robustecer economicamente, por outro lado, ela passou a contar com uma fonte adicional de recursos advinda do terrorismo transnacional. O estreitamento dos laços com a Al-Qaeda, reconhecido oficialmente em vídeo em 2012, e o decorrente aumento do número de estrangeiros, inclusive ocidentais, que se juntaram à Al-Shabaab, se tornou uma faca de dois gumes. Ainda que tal aliança tenha conferido à milícia maiores recursos, ela passou a comprometer sua orientação nacionalista em favor do objetivo global da guerra contra o Ocidente. O apoio local, que havia sido garantido tanto pela repulsa ao domínio estrangeiro entre os somalis do Sul como pelo mínimo de ordem e serviços fornecidos pela milícia na região, correu o risco de se deteriorar e passou a ser assegurado cada vez mais através do emprego da ameaça e do uso da força.

A emergência da Al-Shabaab contribuiu para selar de vez a mudança de enfoque da comunidade internacional em relação à Somália, já prenunciada em 1992 pela Batalha de Mogadíscio. Na ocasião, dois helicópteros norte-americanos foram derrubados e instantaneamente a mídia passou a exibir imagens de corpos de soldados norte-americanos mortos sendo arrastados pelas ruas de Mogadíscio enquanto, ao mesmo tempo, silenciava sobre os mais de trezentos mortos do lado somali. O senador do Texas, Phil Gramm, declarou que aquelas pessoas arrastando corpos americanos não pareciam tão famintas.  Aos poucos, a pretensão de “salvar” os somalis da fome deu lugar ao desejo de “vingar”, de vingar Mogadíscio. A expectativa era a de que a nova guerra contra o terror iniciada após o 11 de setembro de 2001 pudesse reparar as fraquezas que os Estados Unidos expuseram ao mundo na Somália. De fato, Osama Bin Laden declarou em 1996 que quando um soldado norte-americano é arrastado pelas ruas de Mogadíscio, a impotência dos Estados Unidos torna-se evidente. A humilhação das tropas norte-americanas diante de uma nação africana tida pela mídia ocidental como “atrasada” abalou a imagem de vigor alcançada pelos Estados Unidos com o fim da Guerra Fria e subsequente vitória na Guerra do Golfo em 1991.

O olhar caritativo das audiências ocidentais do início da década de 90, que assistiam, via CNN, imagens da fome e das intervenções humanitárias conduzidas pelas Nações Unidas e pelos Estados Unidos, rapidamente se ajustou às dinâmicas do pós-11 de setembro, se transformando num olhar assustado com um pais associado ao terrorismo e à pirataria. Nesse novo contexto, Estados “falidos” como o Afeganistão passaram a ser os alvos preferenciais da guerra contra o terror liderada pelos Estados Unidos. A Somália que, naquele momento, ocupava o primeiro lugar no index dos Estados falidos, passou a ser entendida como um terreno fértil para a proliferação de terroristas capazes de exportar instabilidade para os demais Estados.

O presidente Trump parece seguir esse espírito de vingança e de busca de redenção em relação à derrota sofrida em Mogadíscio. Desde o começo do ano, o presidente quadriplicou a presença de tropas no país, parcialmente voltadas para treinar o Exército somali, mas também para conduzir operações antiterroristas. Em março, partes da Somália foram declaradas “áreas de hostilidades ativas”, conferindo flexibilidade para os Estados Unidos conduzirem ataques preventivos sem maiores preocupações com a morte de civis. Essa escalada da violência resultou, em maio, na primeira morte de um combatente norte-americano desde a Batalha de Mogadísicio, reabrindo, desse modo, feridas não cicatrizadas. Em agosto, forças especiais dos Estados Unidos em conjunto com tropas locais, entraram em Bariire, fortaleza da Al-Shabaab, ocasionando a morte de dez civis, entre os quais três crianças. A partir de então, anciãos locais da cidade prometeram vingança ao Estado somali, cujo presidente, conhecido como “Farmajo”, cidadão somali-norte-americano, é visto como cúmplice dos interesses dos Estados Unidos. Esses assassinatos, por sua vez, reacenderam as memórias históricas de luta contra o colonizador italiano e, também, contra a ONU e os Estados Unidos, vistos, em 1992, como os novos colonizadores. De fato, em 1992, o Secretário Geral da ONU, Boutros-Ghali, chamou a atenção para a crescente percepção entre os somalis de que a ONU seria uma organização “invasora” e um mês depois, o acadêmico somali Said Samatar aconselhou os Estados Unidos a evitarem dar qualquer impressão de que estariam desejando recolonizar o país. As forças interventoras rapidamente começaram a ser associadas aos velhos colonizadores. A manutenção do ciclo de vingança iniciado em 1992 abre a guarda justamente para a atração do discurso de aversão aos ditos neocolonizadores, que encontra amplo respaldo junto à população somali, sobretudo no sul do país.

De fato, o não reconhecimento da autoria dos atentados tem sido interpretado como um sinal de que a Al-Shabaab subestimou o número de mortes de civis inocentes, com consequências para a sua reputação junto aos somalis e para o seu desejo de conquistar corações e mentes. A perda da legitimidade da Al-Shabaab pode gerar o efeito nefasto de aproximar ainda mais a milícia do terrorismo transnacional para compensar essa perda de apoio local. Essa aproximação pode gerar novas divisões na organização, já que o Estado Islâmico disputa com a Al-Qaeda o apoio da milícia somali e tem encontrado alguma ressonância, sobretudo entre os membros mais jovens da Al-Shabaab. A resiliência da Al-Shabaab, por meio de uma guerra de guerrilhas conduzida desde o sul do país, dificilmente será combatida com mais drones e desejo por vingança alimentado por uma série de preconceitos que historicamente incidem sobre a sociedade somali, mas apenas quando todos os somalis se sintam parte ativa do processo de construção do seu Estado, como já acontece embrionariamente na Somalilândia, no norte da Somália, autoproclamada independente em 1991, que desfruta de relativa estabilidade, mas que ainda assim não é reconhecida pela comunidade internacional.

Os duplos atentados ocorridos no último dia 14 de outubro não podem ser entendidos sem referência a esse olhar de medo, de suspeita e de discriminação que passou a recair sobre toda a Somália. No ano passado, por exemplo, o Quênia manifestou o desejo de fechar Dadaab, o maior campo de refugiados do mundo, criado em 1991 para abrigar somalis que fugiam da guerra civil, sob o pretexto de que o campo era uma ameaça para sua segurança porque abrigava alguns dos extremistas islâmicos da Al-Shabaab. As políticas de Trump, do veto migratório aos ataques ofensivos, também parecem embasadas por tal imaginário. Por fim, a insistência da comunidade internacional em se referir a uma única Somália caótica e desgovernada e em não reconhecer a independência de outras regiões autônomas e relativamente estáveis, como a Somalilândia, silencia a possibilidade de que outras formas de organização política, que incorporam práticas locais, que não reproduzem fielmente o modelo ocidental e que são projetadas a partir do desejo das suas comunidades, possam ser bem-sucedidas.

*Marta Fernandez é diretora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio

Publicado em Le Monde Diplomatique