Brasil: Uma nação incompleta
Esta é a análise que faz o economista Eleutério Prado, quando procurou apresentar de modo mais amplo essa compreensão da história econômica do Brasil no artigo “A quase estagnação da economia capitalista no Brasil”. Para escrevê-la, foram combinados os estudos empíricos de Adalmir Marquetti sobre a evolução da taxa de lucro com as lições de economia brasileira de Luiz Filgueiras.
Abaixo, segue sugestão de leitura de Prado com a finalidade de apresentar as razões de fundo pelas quais nunca houve de fato um projeto de desenvolvimento capitalista verdadeiramente nacional no Brasil. Neste escrito, o autor de uma conhecida História do plano real procura mostrar, renovando a tese da inexistência de burguesia nacional, que o Brasil nunca chegou a se constituir como uma nação completa, ou seja, um país com classe dominante e dominada bem integradas, voltado para o próprio desenvolvimento, de modo independente em relação ao imperialismo norte-americano principalmente.
Brasil: Uma Nação Incompleta
Luiz Filgueiras
A partir do século XVI, quando da transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, e até o século XIX, formaram-se os Estados Nacionais que viriam a se constituir nos ditos países desenvolvidos contemporâneos: Inglaterra, França, Holanda, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Japão etc.
Nesse processo, esses países, comandados por suas respectivas burguesias, se constituíram, de fato, como nações completas: a unidade nacional não se fez apenas com base nos interesses particulares de suas classes dominantes nem abarcou apenas a identidade de idioma, cultural e territorial. No seu desenvolvimento capitalista, esses países, cedo ou tarde, através de revoluções jacobinas ou passivas, também incorporaram parcial e diferenciadamente os interesses das suas classes subalternas. O amálgama desses interesses, muitas vezes conflitantes, veio a constituir os seus respectivos interesses nacionais, referência maior nas suas relações internacionais com outras nações.
As reformas democráticas – do período revolucionário de suas burguesias ou do início da Guerra Fria – consolidaram e cimentaram a identidade e unidade nacionais: reformas agrária e urbana, distribuição da propriedade e da renda, sistemas educacional e de saúde públicos, organização e regulação das relações trabalhistas e do mercado de trabalho etc. Em suma, nesses países, a nação e os interesses nacionais foram produtos de uma soldagem político-econômico-social dirigida por suas respectivas burguesias – que não eliminou as classes sociais, desigualdades e contradições do capitalismo, mas que conseguiu articular variados interesses, muitas vezes opostos, constituindo sob a sua hegemonia um sentimento comum de solidariedade e, portanto, de nação e interesses nacionais. Contudo, a partir dos anos 1990, com a hegemonia das finanças e o neoliberalismo, e o consequente aumento da desigualdade, essa solidariedade está fraturada.
No Brasil, a constituição de sua burguesia, após a independência, principalmente a partir de 1850 com a produção cafeeira, se apoiou na grande propriedade fundiária e no trabalho escravo. A diversificação de seus capitais para a indústria, nas duas últimas décadas do século XIX, já com trabalhadores assalariados imigrantes, excluiu a grande massa de negros e mestiços saídos da escravidão ou que vegetavam em torno dela. Já no século XX, após a Revolução Passiva de 1930, a sua fração industrial, aos poucos se tornou hegemônica e impulsionou, apoiada e dirigida pelo Estado, a industrialização por substituição de importações. No entanto, como ocorreu desde a independência, essa burguesia não promoveu qualquer ruptura com os grandes proprietários (latifundiários e oligarquias agrárias regionais).
Essa associação Estado-burguesia brasileira, a partir de meados desse século (Governo JK), foi subvertida com entrada de capitais estrangeiros, que ocuparam os principais segmentos (de ponta) da indústria do país. Nesse novo arranjo (Estado-capitais multinacionais-capital nacional), a burguesia local, parte mais frágil do tripé, foi cada vez mais se associando, direta e indiretamente, aos capitais estrangeiros; a sua sobrevivência e os seus interesses passaram a se apoiar, e a se identificar cada vez mais, no e com os interesses externos. Esses, por sua vez, se internalizaram, econômica e politicamente; passaram a se fazer representar em partidos políticos, associações e na grande mídia. O Golpe Militar de 64 consolidou politicamente esse processo.
Como sócia menor do imperialismo, a burguesia brasileira – que após a abolição, tinha excluído a massa de ex-escravos do mercado de trabalho; que já não havia realizado a reforma agrária quando da Revolução de 1930; que havia resistido ao início da regulação das relações trabalhistas promovida por Getúlio Vargas (não estendida ao trabalhador rural) – sempre se apoiou em relações trabalhistas autoritárias e na superexploração do trabalho. Por isso, a possibilidade de constituir uma nação sob a sua liderança inviabilizou-se completamente; daí, ao longo da República, as sucessivas tentativas de golpe de Estado ou sua efetivação de fato – como a ditadura de 1964-1984 e o atual golpe ainda em andamento, iniciado com o impeachment da Presidente Dilma Roussef.
O caráter dependente do capitalismo brasileiro – dependência tecnológica e financeira – e de sua burguesia – dependência cultural e política –, ambos organicamente vinculados ao imperialismo, é a razão fundamental do Brasil ser uma nação incompleta e excludente: a superexploração e o autoritarismo (heranças da escravidão) estão no DNA da grande burguesia brasileira, que hegemoniza as suas demais frações e dá a direção a essa classe como um todo. É isso que permite a enorme e permanente transferência de renda e da riqueza produzida no país para as nações imperialistas e, como contrapartida, a existência de uma assombrosa desigualdade na sociedade brasileira.
Incapaz de propor um projeto nacional hegemônico inclusivo, essa burguesia cosmopolita – depois de conviver, contrariada, por alguns anos com uma pequena melhora dos “de baixo” – tramou e executou mais um golpe em 2016. Em associação com o imperialismo e impulsionada pela crise mundial do capitalismo de 2008, aproveitou-se dos impactos desta na economia brasileira e de alguns erros de política econômica, – enganando, momentaneamente, parte do povo brasileiro, com a instrumentalização do falso e seletivo combate à corrupção; tendo por aliados a mídia corporativa e parte do ministério público e do judiciário, também identificados com o imperialismo.
A recente greve-locaute dos caminhoneiros é consequência direta da forma como essa burguesia cosmopolita colocou no poder os seus prepostos e como ela trata os negócios do Estado brasileiro: depois de congelar por vinte anos os gastos correntes do Governo Federal para servir às finanças, efetivou uma reforma trabalhista que retrocede as relações trabalhistas a antes de 1930, aprovou uma lei que permite a terceirização de mão-de-obra para todas as fases do processo produtivo, tentou realizar uma reforma da previdência para o capital financeiro (derrotada até agora), retomou o regime de concessão para a exploração do petróleo para entregar parte importante do pré-sal às multinacionais e modificou a política de preços da Petrobrás – esta última, motivo central da deflagração do movimento de caminhoneiros e da greve dos petroleiros.
Em suma, a burguesia brasileira, cosmopolita e antinacional, já deu provas, ao longo da história, que não tem capacidade, nem desejo, de incluir os “de baixo” em um projeto nacional que ultrapasse seus próprios interesses corporativos de classe; não consegue construir uma hegemonia que, ao incorporar demandas populares, consiga constituir a nação brasileira. Por isso, esta só poderá se tornar uma nação completa sob a direção política do povo brasileiro: consciente, crítico, organizado e mobilizado pelos seus interesses, para além das redes sociais. Assim como no passado, a escolha que está posta continua sendo entre a construção de uma nação verdadeira ou a exclusão social e a barbárie.
Filgueiras é Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Doutor em Teoria Econômica pela UNICAMP e Pós-Doutorado em Política Econômica pela Universidade Paris XIII. Autor do livro “História do Plano Real” (Editora Boitempo: 2000, São Paulo; última edição em 2016) e coautor do livro “Economia Política do Governo Lula” (Editora Contraponto: 2007, RJ).