Confusão e contradições na América apocalíptica de Trump
“Qual é o seu trabalho?” Gritou-me uma senhora afro-americana, bem no meio da Union Station, na capital do país. Obviamente, foi uma pergunta retórica, já que ela respondeu quase imediatamente à sua própria pergunta: “Não há empregos!”
O Sr. Floyd foi assassinado por policiais perversos e sádicos. A economia está a entrar em colapso, pelo menos para os pobres e a classe média. A pandemia COVID-19 é como uma montanha-russa, para cima e para baixo, sem fim à vista.
As pessoas estão confusas, enquanto o governo está cada vez mais agressivo. Grande parte das chamadas “mídias progressistas” não se comportam progressivamente. O racismo às vezes é combatido com novos tipos de racismo. Movimentos anti-racistas são periodicamente infiltrados por grupos de extrema-direita, como testemunhei em Minneapolis.
O governo dos EUA está basicamente atacando países como a China, Venezuela e Irã. Não apenas verbalmente, mas militarmente. E a razão pela qual nosso mundo não está no meio da Terceira Guerra Mundial, ainda, é por causa da tremenda contenção e sabedoria dos adversários dos EUA.
Mas o país está sem empregos, sem política coerente de como lutar contra o COVID-19 e sem unidade nacional no momento do desastre. O que tenho testemunhado até agora foram algumas ações limitadas e inconsistentes por parte dos governos (federal e estaduais), bem como a confusão resultante de soluções tímidas e inconsistentes. Bem ao contrário do que verifiquei na Ásia, seja em países socialistas como a China e o Vietnã, mas também em nações distantes do socialismo como a Tailândia, Coreia do Sul, Filipinas.
Basta uma rápida verificação da realidade e fica claro que o sistema dos EUA fracassou, completa e claramente: 30 milhões de pessoas desempregadas desde o início da pandemia. Três milhões de infectados e provavelmente, agora, muito mais. Mais de 130 mil cidadãos americanos perderam a vida (1). Claro, tudo depende de como é calculado o número total de vítimas. Mesmo assim, não importa como seja feito – mesmo que os números mais baixos estejam corretos os Estados Unidos são o país mais afetado do planeta, o que é lamentável considerando que ainda é um dos mais ricos.
A administração Trump está, é claro, ciente de tudo isto e, apenas alguns meses antes das eleições presidenciais, procura desesperadamente alguém para culpar por este enorme desastre nacional. O presidente e seus homens apontam o dedo freneticamente em todas as direções: da China à Organização Mundial da Saúde. Do Partido Comunista da China, ao presidente Maduro, aos governadores dos Estados Unidos e àqueles poucos membros “desobedientes” na mídia que ainda ousam, pelo menos ocasionalmente, desafiar a narrativa oficial.
As teorias de conspiração são abundantes. Manifestações e protestos ocorrem por todo o país. Na cidade de Nova York, a taxa de homicídios aumentou. Sirenes uivam. As pessoas proferem clichês: “Siga o dinheiro”, ouço por toda parte.
A quem culpar? Um regime inepto? Um Capitalismo desatualizado, monstruoso? As grandes empresas? O sistema de educação de baixíssima qualidade? As pessoas não sabem. Enquanto isto, os “falsos profetas” prosperam.
O governo, os meios de comunicação de massa, bem como a grande maioria dos chamados meios de comunicação ditos “progressistas” (não confundir com a mídia de esquerda, que quase não existe nos Estados Unidos), culpam a China socialista, a Rússia, o Irã e outros países de orientação independente.
Esta é claramente uma luta política. A pandemia existe, mas para a Casa Branca nada mais é que um ruído de fundo. O regime dos EUA luta pela sua sobrevivência. Trump está em confronto com vários países estrangeiros, os que têm uma ideologia realmente de esquerda.
Muito está em jogo. Toda a sobrevivência do sistema está agora em questão. Se esse terrível esquema desmoronasse, o mundo inteiro se alegraria; isso o beneficiaria. Mas a maioria dos norte-americanos perderia. Mesmo aqueles que gostam de se pintar como “progressistas” ou “diferentes” ou “também vítimas”. E assim, existem milhares de conspirações destinadas a desacreditar a fúria que se seguiu à morte do Sr. Floyd. E existem inúmeras teorias sobre as origens da pandemia, bem como a sua gestão ou, mais precisamente, má gestão.
Tanto para Trump quanto para seus oponentes do Partido Democrata, é absolutamente essencial desacreditar moral e socialmente países muito mais bem-sucedidos como China, Rússia e até Cuba.
Um tsunami monstruoso de propaganda foi desencadeado nos Estados Unidos, mas também no Reino Unido. É sem precedentes e avassalador. Vozes alternativas são silenciadas. A censura, mesmo entre as chamadas publicações ocidentais “alternativas”, é à prova de bala. E tudo aconteceu literalmente durante a noite. Há apenas dois ou três meses, os meus ensaios costumavam sair em pelo menos 20 grandes outlets nos Estados Unidos e Canadá, agora são no máximo cinco que ousam. Meu ângulo internacionalista de esquerda não mudou em nada. Mas suas verdadeiras cores foram expostas. Porém, o meu trabalho tem obtido grande apoio em países não ocidentais. Isso diz muito sobre a situação!
Mas voltando a Trump. Ele ataca países estrangeiros, horrorizado por as pessoas verem o quão otimistas e compassivas algumas nações são. Mas também hostiliza aqueles que agora derrubam estátuas, símbolos de fanáticos ocidentais, responsáveis genocidas, proprietários de escravos e conquistadores. Sem mencionar os trabalhadores da saúde, que se atrevem a pintar um quadro desolador (leia-se: realista) e o exortam a colocar os interesses das pessoas acima dos da economia, em particular do setor privado.
Em 8 de julho de 2020, a CNN relatou:
“Cinco meses após o início de uma pandemia ainda violenta que matou mais de 130 mil americanos, as tensões de longa data entre o presidente Donald Trump e os especialistas em saúde que trabalham no seu governo escalaram de reclamações privadas e desacordos tímidos para uma disputa aberta. O resultado, dizem as pessoas dessas agências, é um novo senso de desmoralização à medida que continuam as suas tentativas de lutar contra uma crise de saúde que ocorre uma vez em cada geração, enquanto simultaneamente se navega segundo os caprichos de um presidente que demonstrou pouco interesse ou compreensão pelo seu trabalho”.
“Que Trump não confia nem segue o conselho de especialistas como o Dr. Anthony Fauci, o maior especialista em doenças infecciosas do país, não é novidade. O presidente não comparece a uma reunião do seu grupo de trabalho contra o coronavírus há meses e, recentemente, as sessões foram realizadas fora da Casa Branca, inclusive quarta-feira na sede do Departamento de Educação. Fauci recebeu instruções para participar na reunião por videoconferência, impedindo-o de participar na conferência de imprensa coletiva. … ”
Nada de novo. Só que até a CNN, um dos porta-vozes do regime, finalmente está a perceber!
É tudo uma questão de espalhar o niilismo, tanto em frentes domésticas como estrangeiras. A China é atacada da maneira mais extrema, irracional e até bizarra pelo presidente Trump e pela sua equipe, mas também pelos seus adversários do Partido Democrata. Depois de vencer a luta contra o COVID-19, a RPC, foi responsabilizada por virtualmente tudo, desde reter dados, influenciar negativamente a OMS e até mesmo pela fabricação do vírus num dos seus laboratórios baseados em Wuhan e depois espalhá-lo por toda parte. A Casa Branca tem-lhe chamado o “vírus chinês”, embora ninguém saiba ainda ao certo, onde realmente se originou. Naturalmente, Pequim e toda a China ficaram indignadas.
Nenhuma das acusações do governo dos EUA foi comprovada. Alegações após alegações foram ridicularizadas pela comunidade médica e científica dos Estados Unidos e, frequentemente, por universidades. Mas o governo já foi longe demais e é claramente incapaz de parar seus próprios ataques. Ignora o ridículo, esperando que sua retórica machista, vulgar e provinciana atraia certos grupos extremistas e crédulos da população e ganhe o segundo mandato.
Analisando a revolta que se seguiu ao assassinato do Sr. George Floyd (que aconteceu ser COVID-19 positivo), falei com dezenas de americanos de todas as raças e posições sociais. A maioria deles ficou indignada com a forma como o governo lida com a epidemia e os distúrbios. Nenhuma pessoa com quem falei realmente culpou a China ou qualquer outro país estrangeiro, diretamente, pela terrível situação nos Estados Unidos.
A retórica anti-chinesa é claramente um futebol político jogado por republicanos e democratas. O mesmo vale para os sentimentos anti-russos, incluindo a depreciação da ajuda externa russa enviada aos Estados Unidos, logo no início da pandemia.
A estratégia do governo dos EUA é simples, alguns diriam primitiva: “Seja o que for que aconteça de terrível dentro do país, basta contra-atacar e culpar os adversários políticos por tudo e, se não se puder, ataquem-se países estrangeiros: China, Rússia, até mesmo Irã ou Venezuela. Ou agências das Nações Unidas, como a OMS. Enviem-se insultos para todos os cantos do mundo e também navios de guerra”.
Muito está errado nos EUA, muito, muito errado. Barracas dos sem teto agora podem ser vistas por todo o centro de Washington D.C. A Casa Branca foi convertida numa fortaleza. E enquanto milhões de americanos marcham, protestando contra o racismo endêmico e a discriminação, o KKK e seus afiliados como os Proud Boys (2), queimam cidades e infiltram-se em legítimas manifestações anti-racistas (algo que irei abordar em breve nos meus ensaios).
As imagens são apocalípticas. A situação é explosiva. Este é um dos momentos mais perigosos da história mundial. Mas, surpreendentemente, não está sendo escrito muito sobre a urgência e a ameaça que nosso planeta enfrenta!
* Jornalista e cineasta nascido em Leningrado (URSS), naturalizou-se cidadão americano
Notas
1 – O artigo foi publicado originalmente no dia 18 de julho. Neste 19 de agosto os EUA registram mais de 170 mil mortos e mais de 5,5 milhões de contaminados por covid-19 (nota da Redação do i21).
2 – Organização neofacista de extrema-direita, composta apenas por homens (nota da Redação do i21).
*Andre Vltchek é Jornalista e cineasta nascido em Leningrado (URSS), naturalizou-se cidadão americano